Oscar
(Imitação de Ossian)

I

Árida em torno a mim a natureza
Só descalvadas penedias broncas.
Só crespo, alvo regelo me descobre:
Dorme a vegetação nos troncos secos.
Morre no leito congelado e rio...
Toda repousa em lúgubre silêncio
A vida de universo, – em frio espasmo
Da existência parou cansada a máquina.
Desabrida estação! quanto a minha alma
Se embebe na mudez de teus horrores!
Todo e vigor se me acolheu do corpo,
Ao coração no peito; – a alma compressa
Ressalta e pula às regiões etéreas.

II

Veloz imaginar, nas asas tuas
Eis-me librado! pelos ares vago
E espaços vingo de alongados mares,
Desço na terra e poiso... Oh! qual me cerca
Enrevesada cerração confusa!
É mundo isto que vejo, é terra ainda
Esta que piso?... Não descobrem olhos
Mais que nuvens e horror, trevas e caos...
Lá se adelgaça um pouco a névoa grossa:
Vejo ouriçar-se pontiagudas penhas
Hirtas de abrolhos a alvejar com a neve...
Lá caí de chofre em catadupa, e soa
Horrendamente, com fragor tremendo
Torrente imensa na soidão do vale:
Ei-la sombria se devolve e espraia
Pela extensão de um lago...

III

... De além vejo
Vir pelos topes dos fronteiros montes
Grave e pausado silencioso velho
Em vagaroso passo caminhando.
Longa dos ombros ao talar lhe desce
Alva, comprida túnica: na destra
Traz uma hástia de lança farpeada.
E pendente da esquerda uma harpa antiga
Onde o vento ressoa em ocos ecos.

IV

Gemeu de os escutar o ancião dos tempos,
E de profunda mágoa lhe soluça
O peito descarnado. Ei-lo que a toma
Nas mãos trementes, e lhe apalpa as cordas
Esbambeadas do vento, e desmontadas
Do longo correr de anos. Já se afina,
Já troa altivos sons em modo lúgubre
Mas desusado e novo. Oh, que de Tura
É este o vate, Ossian este é por certo.

V

Não me enganei; era de Ossian a sombra,
E assim cantou:
– Oscar, Dermid são mortos:
No florescer de esperançosos anos,
Ceifou amor cruel tão caras vidas.
Caruth é pai de Oscar, Carute os chora,
E a morte dos mancebos infelizes
Conta ao filho de Alpin. – Por que, diz ele,
Por que abrir-me de novo a fonte ao pranto,
Por que outra vez o peito me laceras?
Filho de Alpin, porque a pedir-me volves
A triste narração daquela morte?
Oscar, Oscar, meu filho!... Ai, destes olhos
Já se afogou a luz no mar das lágrimas:
Só a memória das desgraças minhas
Dentro no coração inda não morre
Como hei de eu outra vez voltar minha alma
Aquela história fúnebre... a essa morte
Do maior dos heróis? – Chefe dos bravos,
Nunca mais te verei, Oscar, meu filho?

VI

Ah, desapareceu de sobre a terra,
Qual no meio da horrenda tempestade
O astro da noite, como o Sol brilhante
Quando pejada cerração de nuvens,
Que das águas se elevam, se condensa,
E as crespas, fuscas rochas de Ardanider
Com o negro manto pálida rebuça.
E eu triste, eu só no solitário albergue
Definho, a pouco e pouco, em mágoa, e Seco,
Qual erme antigo da escabrosa Morven
Que árido vento despojou dos ramos,
E que, ao mais leve sussurrar do Norte,
Quase vacila e cai, – Chefe dos bravos,
Nunca mais te verei, Oscar, meu filho?

VII

Não cai, filho de Alpin, no campo o bravo
Como a erva do campo: a sua espada
Fuma primeiro do inimigo sangue;
Antes de sucumbir, tremendo rompe
Com a morte ao lado, os batalhões cerrados
Das boatos orgulhosas. Mas, ó filho,
Mas tu, meu caro Oscar, mas tu morreste
Sem que inimigo algum fosse, a teus golpes,
Na região da morte anunciar-te.
Tinta no sangue a tua lança, oh triste!
Do teu amigo foi...
Um só nos peitos
Oscar, Dermid um coração só tinham:
juntos iam ceifar da guerra aos campos,
E sua estreita amizade era mais forte
Que o aço da armadura que os vestia.
Entre ambos, sempre unidos rias batalhas,
Marchava a morte sempre: juntos ambos
Caíam de rondão sobre o inimigo,
Quais dois rochedos que dos topes de Arven
Se despegam e caem na terra e jazem.
Suas espadas fumegavam sempre
Do sangue dos mais fortes gotejando
E só de ouvir seus nomes, enfiavam
De pálido terror bravos guerreiros.
E quem, senão Dermid, a Oscar semelha,
E quem, senão Oscar, Dermid iguala?

VIII

Dargo, o valente Dargo, a quem na guerra
Ninguém nunca jamais não viu as costas,
Dargo a seus golpes sucumbiu tremendos.
Como o dia ao nascer, mais bela ainda,
Era do morto herói a bela filha,
Doce como brilhar da branca lua.
Tinham seus olhos o luzir de estrelas
Que através de chuvosa nuvem fulgem:
Na Primavera a suspirar da brisa
Mais suave não é que o seu bafejo;
Recém-geada nas manhãs, a neve
Que se ondeia alvejando nas estevas,
De seu cândido seio é froixa imagem.
Viram-na os dois heróis, e ambos a amaram;
Adorava-a cada um como a sua glória;
Possui-la ou morrer ambos queriam.
Porém da bela o coração rendido
A Oscar ficou, a Oscar toda se entrega:
Já cega beija a mão que o pai matara,

IX

E Dermid disse a Oscar: – Ouve-me; eu amo,
O filho de Caruth, amo essa bela,
Sei que o seu coração por ti só bate,
Mas a minha paixão nem isso a apaga:
Oscar, rasga este peito, é meu amigo,
Seja a tua espada que me livre dela.
– Quê! tingir no teu sangue a minha espada!
– E quem, se Oscar não for, há de atrever-se,
E quem é digno de tirar-me a vida?
Morrendo por tua mão, morro com glória,
E eu quero a morte, amigo, mas honrada.
– Pois bem, cruel Dermid, empunha o ferro,
E às mãos de seu amigo Oscar expire.

X

De Brano junto às margens combateram,
Tingiu-lhe o sangue as ondas fugitivas,
E sangue a relva que lhas borda em torno.
Dermid caiu... num último sorriso
De morte o doce amigo saudando.
– Filho de Diaran – Oscar bradava:
Fui eu que te matei, Dermid, eu, ímpio!
Tu que no mais ferido das pelejas
Não sucumbiste nunca, agora, amigo,
Hei de te eu ver assim morrer sem glória!...

XI

Disso, e a mágoa quebrou-lhe a voz no peito:
Vagoroso se afasta, e ao triste objeto
Vai de seu triste amor. Ela no rosto
Lhe leu a intensa dor que o atormenta,
E disse: – Oscar, que nuvem tão pesada
Escurece a tua alma?
– A minha fama
Perdi-a hoje, apagou-se a minha glória.
Sabes, filha de Dargo, a nomeada
Que eu tinha entre os archeiros: ouve agora.
De erguido tronco suspendido o escudo
Estava de Gondur, Condur o bravo
Que num combate minha mão prostrara.
Tentei de o traspassar com minhas frechas,
E em vãos esforços se me foi o dia.
– Pois bem! tentá-lo-ei eu menor? lhe volveu ela.
Sabem as minhas mãos também vibrá-lo
Esse arco destruidor da tua glória.
Muitas vezes meu pai folgou de ver-me
Sempre certas cravar as frechas no alvo.

XII

Partem. Trás do broquel Oscar se oculta...
Rápida a seta sibilando voa
Das mãos da bela para o seio amante.
– “Arco ditoso” moribundo exclama
Já todo em sangue o campeão dos montes:
Oh adorada mão! eu te agradeço.
Quem fora digno de enviar-me às sombras,
Ao filho de Caruth quem se atrevera
Senão a filha do valente Dargo?
Ah! seja inteiro este favor, querida!
Leva-me ao pé do meu amigo, e deixa-me,
Que morrerei em paz. – “Oscar”, responde
A donzela: “e eu não sou filha de Dargo?
Eu sei também morrer como tu.” – Disse,
E o belo seio atravessou num ferro:
Corre o sangue... ela treme e caiu morta.

XIII

Juntos descansam do ribeiro à margem:
Cobre-lhe a campa a movediça copa
De um álamo frondoso. Ao meio-dia
Desce o gamo fugaz do alto do monte
E aí vem pascer à sombra, enquanto as chamas
Ardem no firmamento, e todo envolto
Nas alvas, longas roupas o Silêncio
Era derredor dos próximos outeiros
Reina em toda a mudez da natureza.

XIV

Assim cantava o caledônio vate;
E de seu canto as derradeiras notas
Ainda em meu ouvido ressoavam
Quando um raio de sol de luz criadora
No aposento me entrou, e a névoa toda
De Escócia dissipou, – libertou-me alma
De não sei que opressão, e me devolve
Aos doces climas da risonha Elísia.