A Vitória da Praia

Do mar ruidoso às praias mudo estava
E em laia imprecações desabafava.
Ilíada.

I

Pelas vagas azuis do largo oceano
Com as pandas asas ao galerno vento
Vai nobre armada; —desdobrando ufano,
O verde pavilhão nas altas popas
Treme ao sopro da brisa; e a cento e cento,
O eco repetido,
Reflete pelas águas o estampido
De cem canhões que troam.
—E morre pouco e pouco o som nas vagas;
E a praia é só. A praia —onde inda ecoam
A celeuma dos nautas e o zumbido
De multidão confusa —só, calada,
Erma ficou; e nas alpestres fragas
Apenas se ouve a bulha compassada
Da ressaca, gemendo e murmurando,
Com que a maré das praias se despede,
Foge e volta, queixosa recuando:
Qual amante em custosa despedida,
Que adeus já disse e adeus —e retrocede,
Nem partir sabe, que é partir com a vida.

II
E a praia é só. —Não só: nesse penedo
Que em torno tapeçou alga ramosa,
Um vulto vejo ainda; mudo, quedo,
Com os olhos longos na planície aquosa;
Disseras que o feriu com o mago dedo
De Hipócrates a sombra misteriosa,
Que numa estátua sua o transformara,
E só a vida nos olhos lhe deixara.
Como que lhe caiu desfalecida
A esquerda sobre uma harpa desmontada,
E, com a destra longa e estendida
Para o extremo horizonte, aponta à armada
Que a velas cheias singra, e desferida
De amigo vento, corre empavesada:
Debuxa o rosto magoado peito,
De estranho menestrel é o trajo e aspecto.

III

Mas lá se move, e em pé sobre a alta roca,
Como inspirado súbito
De espirito fatídico,
Com a trêmula mão nas cordas toca
Da harpa, que em sons responde inda mais trêmulos.
Que, alto e alto crescendo, agudos vibram,
E entre pena e saudade e glória e mágoas,
Assim coavam nas frementes águas:

IV

Alva pomba de esperança,
Voga na arca misteriosa;
Que no dia da bonança,
Quando a enchente procelosa
À voz do Eterno parar,
Penhor da nova aliança,
Tu a nós hás de voltar.
Sobre a lodosa voragem
Que inda cobre meio mundo,
Deixa o corvo negro, imundo
Sua sede de carnagem
Em cadáveres fartar.
Para a pombinha mimosa
Há de chegar o seu dia;
E quando a flor d''alegria
Na oliveira despontar,
Com o raminho de esperança
Penhor da nova aliança,
Tu a nós hás de voltar.

V

Mas que altivo baixel vai singrando
Pelo esteiro da armada leal,
Nem as Quinas do luso arvorando,
Nem a Cruz do país de Cabral?
Que anuncia esse infausto pendão,
Estandarte de morte aziago?
Foge, foge, ó Maria, à traição;
São as cores da nova Cartago.
Não o vês de cruor salpicado
Tremular com essas nódoas fatais?
É o sangue à traição derramado,
É o sangue dos teus mais leais.
—Não se lavam do Nilo na glória
Essas manchas de opróbrio e de horror;
E emudece o clarim da Vitória
Da Terceira ao gemido clamor.

VI

Cartago desleal, embalde atroam
Teus Hanons, teus Amílcares traidores
O incrédulo foro que povoam
Turba de vis, venais declamadores,
E à tua plebe estúpida os pregoam
Da república os fortes defensores:
Essa nódoa jamais hás de lavá-la,
E o universo em seu dia há de vingá-la.
Seu dia há de chegar: já desvendados
Se espantam do tão longo sofrimento
Os povos oprimidos e ultrajados;
Já seguem com o ansioso pensamento
Ao Cipião do oriente, alvoroçados
O invocam contra Aníbal fraudulento,
E folga o mundo ao contemplar pressago
Nas ruinas de Bizâncio as de Cartago.

VII

Assim cantava o peregrino vate
Nos rochedos do exílio; e as ermas praias
Da inóspita Cartago ressoavam
Com os respeitosos sons que n''harpa troa
Fremente indignação. Medonha entanto
Em derredor a cerração crescia,
E as grossas gotas raras que despedem
As tumescentes nuvens, os lampejos
Que a mais e mais, de perto e perto amiúdam,
Anunciavam tremenda tempestade
Que a instantes vai a desabar no pego.

VIII

Eis súbito, onde as nuvens mais opacas,
Mais pejadas do fluido se mostram
Que só a Franklin subjugar foi dado,
Rompe e em golpes de luz no céu fulgura
Raio, que segue horríssono estampido
De trovão, de eco em eco reboando
Por céus e mares, longo e longo... Os seios
Das nuvens se rasgaram; e entre o vívido,
Flutuante clarão de mil relâmpagos,
Do atônito vate avulta aos olhos
Assombrosa visão. Num corcel branco
Da cor da láctea-via lhe aparece
Um cavaleiro ancião; lúcidas armas
De espelhado-brilhante ferro o vestem;
Descem-lhe as alvas, venerandas barbas
Até ao peito, onde a cruz de ouro, pendente
Do equestre colar, sobre o aço fulge;
Na esquerda o Real pendão de Ourique ostenta,
E ponderosas chaves traz na destra,
Que aperta, e cuidadoso olha e segura.
Tal às margens do Tejo iria outrora
A Toledo em briosa romaria
Da lusitana lealdade o símbolo;
Tal de Martim-de-Freitas nos figura
O vivo imaginar, aspecto e forma.

IX

Suspende as notas do despeito iroso,
Brada o celeste cavaleiro ao vate:
Cessa o fúnebre canto doloroso,
E na harpa lusitana os sons antigos
Acorda da vitória;
Hinos entoa de triunfo e glória.
Inda há sangue do meu por essas veias
Da gente portuguesa; extinto ainda
Não foi o santo amor da liberdade
Que os lusitanos peitos incendia,
Nem o timbre da honra e lealdade
Que entre os povos da terra os distinguia.
No meio desse pego (e com a bandeira
Apontou para o último ocidente)
Numa isolada rocha, que a fogueira
Das subterrâneas furnas sempre ardente
De contínuo rescalda, a derradeira
Leal falange intrépida e valente
Com sangue inimigo e seu tinge o oceano,
E a nódoa lava ao nome lusitano.

X

Olha, e verão teus olhos o alto feito
A alta glória dos teus. — Disse, e brandindo
Na destra a lança, para o Oeste acena:
No côncavo do escudo as férreas chaves
Deram tremendo som. O eco dos mares
O repetiu, e a negra tempestade
Emudeceu ante ele; as nuvens fogem.
Os brados do trovão sumidos morrem,
E a derradeiro lampejar dos raios,
Como eles, desparece o cavaleiro,
Um sulco d''alva luz até o horizonte
Descrevendo nos cens: — e qual nas cenas
Súbito corre a tela, e ostenta aos olhos,
Por feiticeira maravilha de arte,
As terras longes e apartados povos
Que além-mares, que além desertos jazem;
Tal aos olhos do vate deslumbrados
O magnífico aspecto se descobre
De uma ilha vicejante e pampinosa,
Que ante ele, qual Delos, se oferece,
Ou qual ao domador das iras cruas
Do fero Adamastor a dos Amores.

XI

Alcantiz bravos derredor a cercam;
E nos erguidos cumes pitorescos
De seus montes vegeta em morna cinza,
De mal extintas crateras em torno,
Todo o luxo de Flora e de Pomona,
Que ao lourejar de Ceres dá realce
E com os tirsos de Baco se mistura.
O tempestuoso Atlântico lhe quebra
Nas ouriçadas pontas dos rochedos
Que em orla a cingem; e onde em amplo seio
Mais à larga lhe é dado entrar na praia,
Sobre a pálida areia em rolos bate
E em alva franja se desfaz de espuma.

XII

A espaços, e uns sobre outros torreando,
Baluartes avultam, e alto ondeia
Á matutina brisa, na hástia erguido
Das nobres Quinas o estandarte antigo.
Rara nebrina cobre em parte o resto:
E à sombra dela, empavesada frota
Vai na enseada penetrando a furto...
—Quinas também arvora; mas infame
Quebra de bastardia a meio parte
O glorioso escudo; e o sangue fresco
Na alvura da bandeira lhe ressumbra...
—Que sudário de mortos a disseras
Numa armada de sombras defraldado
A aziago vento nos pegões da Stige.

XIII

Deu sinal a atalaia na alta torre,
E as negras becas dos canhões romperam
O crebro fuzilar; os ares cortam,
Cruzam-se as pelas que de morte silvam;
E os ecos das pacíficas montanhas
Pasmam dos sons de guerra que repetem.
Nas naus desaba o rápido granizo
Do saltante pelouro; e o crebro estalo
Da palpitante, trépida granada
Ferve de terra e mar.

XIV
Mas já, baixando das erguidas popas
Das alterosas naus, leves esquifes,
Armadas lanchas n''água vão pousando,
E a enseada povoam: lentas descem
As falanges dos bravos, que mal sofrem
Ir ao feito traidor com as mesmas armas
Que leais nos campos de Coruche e Prado
Tanta glória ganharam... Instam cabos,
Blasfemos centuriões, a infames brados
De ameaças, os pungem... Cede à força
O soldado fiel, mas n''alma leva
A tenção fixa de lavar a injúria
No sangue vil do chefe que o desonra.
Movem-se os remos; e, entre o fogo e a morte
Audazes penetrando, à praia abicam;
E braço a braço, peito a peito, encontram
O cidadão com o escravo; —trava a luta
Da perjura traição com a lealdade,
E investe a escravidão com a liberdade.

XV

E quem são esses nobres defensores,
Que, em poder tão pequeno, fixos, quedos
Aguardam seus terríveis agressores,
E imóveis sobre as pontas dos rochedos
Parecem desafiar seus vãos furores?
Ri-lhe a vitória já nos olhos ledos,
Não bate o coração, tranquila é a alma;
E a sorte esperam que lhes traga a palma.
A desmedida força do inimigo
Não parecem contar; ou, se a contaram,
Supõe-se cada qual neste perigo
Que o ânimo ou os braços lhe dobraram
A injúrias tais e tantas dar castigo
Os piedosos destinos lhe outorgaram
E só contam, só veem com a longa esperança
As delícias da próxima vingança.

XVI

Quais injúrias, que afrontas?—Inda ecoa
Do disperso senado nas abóbodas
Caluniosa voz que altiva soa,
E de insultos cobriu a escolha impávida
Da lusa mocidade,
Que armas em vão pediu, e às armas corre
Que lhe vedam traidores,
Combate, vence, onde não vence, morre,
E ensina a seus covardes detratores
Que é mais fiel o cidadão que o escravo,
E que no peito do liberto bravo
A antiga lealdade
Remoça e cresce mais com a liberdade.

XVII

Tu o dize, ó magnânimo guerreiro,
Glória da pátria, em cuja nobre espada
Da aflita Lísia o amparo derradeiro,
A derradeira esperança está firmada:
Dize-o tu, Villaflor, quando primeiro
Assomaste na altura alcantilada,
Que assombros de valor, de patriotismo.
Que milagres não viste de heroísmo!

XVIII

Qual, através de insólito perigo,
Vai de socorro a Dio o Castro forte,
Tal, entre a densa esquadra do inimigo,
O ardido Villaflor, sem medo à morte,
Villaflor dos rebeldes o castigo
E a quem domada não resiste a sorte,
Nas praias de Angra impávido surgira,
E com ele a vitória que o seguira.
E que pensáveis, desleais traidores?
Encontrar só valor? —Têm chefie agora
Da pátria liberdade os defensores:
Na tenda imbele por Briseis não chora
O Aquiles português, e seus furores
Muito sangue leal inulto implora;
Não há convosco Heitor que vos defenda,
E Páris foge da marcial contenda.

XIX

Ei-los! ei-los que estólidos correndo,
Cegos se apressam a encontrar seu fado:
Matai, não deis quartel com gesto horrendo
O chefe canibal brada ao soldado.
Perdoai, perdoai; crime tremendo
É o deles (do herói tal era o brado)
Mas não sigais o exemplo do tirano
Poupai, poupai o sangue lusitano
Trava a peleja: quais leões feridos
Os renegados chefes acometem,
E blasfemando em hórridos bramidos,
Instam com os seus, despojos lhes prometem;
De afrontosos suplícios, que aos vencidos
O vencedor prepara, lhes repetem
Fábulas mil com que o soldado excitam,
E a combater, mau grado seu, o incitam.

XX

Mas não descansa a espada que tempera
Fogo que ardeu no altar da liberdade;
Nos gumes lhe pousou a morte fera,
E nas mãos da briosa mocidade
É raio que fulmina e reverbera,
Raio de honra, valor, de heroicidade,
Que nos rebeldes campeões desfeixa
E em negras cinzas sobre a praia os deixa.

XXI

Um por um caem na contenda inglória,
Desonrados cadáveres,
Troféu ignóbil que desdenha a glória.
Que à corda do patíbulo
Roubou com pejo a espada da vitória.
Soprai do oceano túmido,
Soprai, ó ventos, derramai nos ares
Cinzas que a mão do algoz devia aos mares.
E vós, ilusas vítimas
Da tirania pérfida,
Vinde, acolhei-vos ao amparo amigo
Da bandeira leal:
Soldados, já não há mais inimigo,
Bradai: — Real, Real!
Por Maria, bradai, de Portugal!
Viva Maria e viva a liberdade!
Com lágrimas responde e a brados clama
O soldado corrido e envergonhado.
Nas Aleiras da antiga lealdade
À voz se uniram do herói que os chama,
E bendizendo a mão que os há salvado,
Lavar prometem a manchada fama
No sangue desse monstro de maldade
Que a pátria com o roubado cetro oprime
E involuntários os forçou ao crime.

XXII

Vencidos, vencedores, abraçados,
Todos triunfam na ganhada glória;
Da mesma causa todos são soldados,
E unidos cantam a comum vitória:
Os séculos porvir lerão pasmados
Prodígio tal na lusitana história...
O eco dos mares que repete o canto
Nas vagas se ouve murmurar de espanto.

XXIII

Sonoros rufam trêmulos tambores;
Os bravos batalhões, de Ourique entoam,
Em coro marcial, leais clamores;
E as alternadas coplas, que ressoam
Como em resposta, se unem aos clangores
Das trompas,— dos clarins que agudo soam;
Brande-se a espada inda sanguenta e nua,
E a bandeira Real no ar flutua.

CURO DOS SOLDADOS
Real! Real! Real!
Real por Maria de Portugal!

UMA VOZ

Repita a Terceira as vozes de Ourique
Que ao trono elevaram o filho de Henrique,
E a filha de Pedro ao trono alçarão.

CORO

Maria protege a constituição.

ALGUMAS VOZES

E viva Maria, viva a liberdade!
Miguel é tirano
Feroz, desumano,
Que reinar não há de.

CORO

Real! Real! Real!
Real por Maria de Portugal

UMA VOZ

Sua mão delicada bordou a bandeira
Que altiva tremula na heroica Terceira:
Cantemos, alcemos o invicto pendão.Do mar ruidoso às praias mudo estava
E em laia imprecações desabafava.
Ilíada.

I

Pelas vagas azuis do largo oceano
Com as pandas asas ao galerno vento
Vai nobre armada; —desdobrando ufano,
O verde pavilhão nas altas popas
Treme ao sopro da brisa; e a cento e cento,
O eco repetido,
Reflete pelas águas o estampido
De cem canhões que troam.
—E morre pouco e pouco o som nas vagas;
E a praia é só. A praia —onde inda ecoam
A celeuma dos nautas e o zumbido
De multidão confusa —só, calada,
Erma ficou; e nas alpestres fragas
Apenas se ouve a bulha compassada
Da ressaca, gemendo e murmurando,
Com que a maré das praias se despede,
Foge e volta, queixosa recuando:
Qual amante em custosa despedida,
Que adeus já disse e adeus —e retrocede,
Nem partir sabe, que é partir com a vida.

II

E a praia é só. —Não só: nesse penedo
Que em torno tapeçou alga ramosa,
Um vulto vejo ainda; mudo, quedo,
Com os olhos longos na planície aquosa;
Disseras que o feriu com o mago dedo
De Hipócrates a sombra misteriosa,
Que numa estátua sua o transformara,
E só a vida nos olhos lhe deixara.
Como que lhe caiu desfalecida
A esquerda sobre uma harpa desmontada,
E, com a destra longa e estendida
Para o extremo horizonte, aponta à armada
Que a velas cheias singra, e desferida
De amigo vento, corre empavesada:
Debuxa o rosto magoado peito,
De estranho menestrel é o trajo e aspecto.

III

Mas lá se move, e em pé sobre a alta roca,
Como inspirado súbito
De espirito fatídico,
Com a trêmula mão nas cordas toca
Da harpa, que em sons responde inda mais trêmulos.
Que, alto e alto crescendo, agudos vibram,
E entre pena e saudade e glória e mágoas,
Assim coavam nas frementes águas:

IV

Alva pomba de esperança,
Voga na arca misteriosa;
Que no dia da bonança,
Quando a enchente procelosa
À voz do Eterno parar,
Penhor da nova aliança,
Tu a nós hás de voltar.
Sobre a lodosa voragem
Que inda cobre meio mundo,
Deixa o corvo negro, imundo
Sua sede de carnagem
Em cadáveres fartar.
Para a pombinha mimosa
Há de chegar o seu dia;
E quando a flor d''alegria
Na oliveira despontar,
Com o raminho de esperança
Penhor da nova aliança,
Tu a nós hás de voltar.

V

Mas que altivo baixel vai singrando
Pelo esteiro da armada leal,
Nem as Quinas do luso arvorando,
Nem a Cruz do país de Cabral?
Que anuncia esse infausto pendão,
Estandarte de morte aziago?
Foge, foge, ó Maria, à traição;
São as cores da nova Cartago.
Não o vês de cruor salpicado
Tremular com essas nódoas fatais?
É o sangue à traição derramado,
É o sangue dos teus mais leais.
—Não se lavam do Nilo na glória
Essas manchas de opróbrio e de horror;
E emudece o clarim da Vitória
Da Terceira ao gemido clamor.

VI

Cartago desleal, embalde atroam
Teus Hanons, teus Amílcares traidores
O incrédulo foro que povoam
Turba de vis, venais declamadores,
E à tua plebe estúpida os pregoam
Da república os fortes defensores:
Essa nódoa jamais hás de lavá-la,
E o universo em seu dia há de vingá-la.
Seu dia há de chegar: já desvendados
Se espantam do tão longo sofrimento
Os povos oprimidos e ultrajados;
Já seguem com o ansioso pensamento
Ao Cipião do oriente, alvoroçados
O invocam contra Aníbal fraudulento,
E folga o mundo ao contemplar pressago
Nas ruinas de Bizâncio as de Cartago.

VII

Assim cantava o peregrino vate
Nos rochedos do exílio; e as ermas praias
Da inóspita Cartago ressoavam
Com os respeitosos sons que n''harpa troa
Fremente indignação. Medonha entanto
Em derredor a cerração crescia,
E as grossas gotas raras que despedem
As tumescentes nuvens, os lampejos
Que a mais e mais, de perto e perto amiúdam,
Anunciavam tremenda tempestade
Que a instantes vai a desabar no pego.

VIII

Eis súbito, onde as nuvens mais opacas,
Mais pejadas do fluido se mostram
Que só a Franklin subjugar foi dado,
Rompe e em golpes de luz no céu fulgura
Raio, que segue horríssono estampido
De trovão, de eco em eco reboando
Por céus e mares, longo e longo... Os seios
Das nuvens se rasgaram; e entre o vívido,
Flutuante clarão de mil relâmpagos,
Do atônito vate avulta aos olhos
Assombrosa visão. Num corcel branco
Da cor da láctea-via lhe aparece
Um cavaleiro ancião; lúcidas armas
De espelhado-brilhante ferro o vestem;
Descem-lhe as alvas, venerandas barbas
Até ao peito, onde a cruz de ouro, pendente
Do equestre colar, sobre o aço fulge;
Na esquerda o Real pendão de Ourique ostenta,
E ponderosas chaves traz na destra,
Que aperta, e cuidadoso olha e segura.
Tal às margens do Tejo iria outrora
A Toledo em briosa romaria
Da lusitana lealdade o símbolo;
Tal de Martim-de-Freitas nos figura
O vivo imaginar, aspecto e forma.

IX

Suspende as notas do despeito iroso,
Brada o celeste cavaleiro ao vate:
Cessa o fúnebre canto doloroso,
E na harpa lusitana os sons antigos
Acorda da vitória;
Hinos entoa de triunfo e glória.
Inda há sangue do meu por essas veias
Da gente portuguesa; extinto ainda
Não foi o santo amor da liberdade
Que os lusitanos peitos incendia,
Nem o timbre da honra e lealdade
Que entre os povos da terra os distinguia.
No meio desse pego (e com a bandeira
Apontou para o último ocidente)
Numa isolada rocha, que a fogueira
Das subterrâneas furnas sempre ardente
De contínuo rescalda, a derradeira
Leal falange intrépida e valente
Com sangue inimigo e seu tinge o oceano,
E a nódoa lava ao nome lusitano.

X

Olha, e verão teus olhos o alto feito
A alta glória dos teus. — Disse, e brandindo
Na destra a lança, para o Oeste acena:
No côncavo do escudo as férreas chaves
Deram tremendo som. O eco dos mares
O repetiu, e a negra tempestade
Emudeceu ante ele; as nuvens fogem.
Os brados do trovão sumidos morrem,
E a derradeiro lampejar dos raios,
Como eles, desparece o cavaleiro,
Um sulco d''alva luz até o horizonte
Descrevendo nos cens: — e qual nas cenas
Súbito corre a tela, e ostenta aos olhos,
Por feiticeira maravilha de arte,
As terras longes e apartados povos
Que além-mares, que além desertos jazem;
Tal aos olhos do vate deslumbrados
O magnífico aspecto se descobre
De uma ilha vicejante e pampinosa,
Que ante ele, qual Delos, se oferece,
Ou qual ao domador das iras cruas
Do fero Adamastor a dos Amores.

XI

Alcantiz bravos derredor a cercam;
E nos erguidos cumes pitorescos
De seus montes vegeta em morna cinza,
De mal extintas crateras em torno,
Todo o luxo de Flora e de Pomona,
Que ao lourejar de Ceres dá realce
E com os tirsos de Baco se mistura.
O tempestuoso Atlântico lhe quebra
Nas ouriçadas pontas dos rochedos
Que em orla a cingem; e onde em amplo seio
Mais à larga lhe é dado entrar na praia,
Sobre a pálida areia em rolos bate
E em alva franja se desfaz de espuma.

XII

A espaços, e uns sobre outros torreando,
Baluartes avultam, e alto ondeia
Á matutina brisa, na hástia erguido
Das nobres Quinas o estandarte antigo.
Rara nebrina cobre em parte o resto:
E à sombra dela, empavesada frota
Vai na enseada penetrando a furto...
—Quinas também arvora; mas infame
Quebra de bastardia a meio parte
60
O glorioso escudo; e o sangue fresco
Na alvura da bandeira lhe ressumbra...
—Que sudário de mortos a disseras
Numa armada de sombras defraldado
A aziago vento nos pegões da Stige.

XIII

Deu sinal a atalaia na alta torre,
E as negras becas dos canhões romperam
O crebro fuzilar; os ares cortam,
Cruzam-se as pelas que de morte silvam;
E os ecos das pacíficas montanhas
Pasmam dos sons de guerra que repetem.
Nas naus desaba o rápido granizo
Do saltante pelouro; e o crebro estalo
Da palpitante, trépida granada
Ferve de terra e mar.

XIV

Mas já, baixando das erguidas popas
Das alterosas naus, leves esquifes,
Armadas lanchas n''água vão pousando,
E a enseada povoam: lentas descem
As falanges dos bravos, que mal sofrem
Ir ao feito traidor com as mesmas armas
Que leais nos campos de Coruche e Prado
Tanta glória ganharam... Instam cabos,
Blasfemos centuriões, a infames brados
De ameaças, os pungem... Cede à força
O soldado fiel, mas n''alma leva
A tenção fixa de lavar a injúria
No sangue vil do chefe que o desonra.
Movem-se os remos; e, entre o fogo e a morte
Audazes penetrando, à praia abicam;
E braço a braço, peito a peito, encontram
O cidadão com o escravo; —trava a luta
Da perjura traição com a lealdade,
E investe a escravidão com a liberdade.

XV

E quem são esses nobres defensores,
Que, em poder tão pequeno, fixos, quedos
Aguardam seus terríveis agressores,
E imóveis sobre as pontas dos rochedos
Parecem desafiar seus vãos furores?
Ri-lhe a vitória já nos olhos ledos,
Não bate o coração, tranquila é a alma;
E a sorte esperam que lhes traga a palma.
A desmedida força do inimigo
Não parecem contar; ou, se a contaram,
Supõe-se cada qual neste perigo
Que o ânimo ou os braços lhe dobraram
A injúrias tais e tantas dar castigo
Os piedosos destinos lhe outorgaram
E só contam, só veem com a longa esperança
As delícias da próxima vingança.

XVI

Quais injúrias, que afrontas?—Inda ecoa
Do disperso senado nas abóbodas
Caluniosa voz que altiva soa,
E de insultos cobriu a escolha impávida
Da lusa mocidade,
Que armas em vão pediu, e às armas corre
Que lhe vedam traidores,
Combate, vence, onde não vence, morre,
E ensina a seus covardes detratores
Que é mais fiel o cidadão que o escravo,
E que no peito do liberto bravo
A antiga lealdade
Remoça e cresce mais com a liberdade.

XVII

Tu o dize, ó magnânimo guerreiro,
Glória da pátria, em cuja nobre espada
Da aflita Lísia o amparo derradeiro,
A derradeira esperança está firmada:
Dize-o tu, Villaflor, quando primeiro
Assomaste na altura alcantilada,
Que assombros de valor, de patriotismo.
Que milagres não viste de heroísmo!

XVIII

Qual, através de insólito perigo,
Vai de socorro a Dio o Castro forte,
Tal, entre a densa esquadra do inimigo,
O ardido Villaflor, sem medo à morte,
Villaflor dos rebeldes o castigo
E a quem domada não resiste a sorte,
Nas praias de Angra impávido surgira,
E com ele a vitória que o seguira.
E que pensáveis, desleais traidores?
Encontrar só valor? —Têm chefie agora
Da pátria liberdade os defensores:
Na tenda imbele por Briseis não chora
O Aquiles português, e seus furores
Muito sangue leal inulto implora;
Não há convosco Heitor que vos defenda,
E Páris foge da marcial contenda.

XIX

Ei-los! ei-los que estólidos correndo,
Cegos se apressam a encontrar seu fado:
Matai, não deis quartel com gesto horrendo
O chefe canibal brada ao soldado.
Perdoai, perdoai; crime tremendo
É o deles (do herói tal era o brado)
Mas não sigais o exemplo do tirano
Poupai, poupai o sangue lusitano
Trava a peleja: quais leões feridos
Os renegados chefes acometem,
E blasfemando em hórridos bramidos,
Instam com os seus, despojos lhes prometem;
De afrontosos suplícios, que aos vencidos
O vencedor prepara, lhes repetem
Fábulas mil com que o soldado excitam,
E a combater, mau grado seu, o incitam.

XX

Mas não descansa a espada que tempera
Fogo que ardeu no altar da liberdade;
Nos gumes lhe pousou a morte fera,
E nas mãos da briosa mocidade
É raio que fulmina e reverbera,
Raio de honra, valor, de heroicidade,
Que nos rebeldes campeões desfeixa
E em negras cinzas sobre a praia os deixa.

XXI

Um por um caem na contenda inglória,
Desonrados cadáveres,
Troféu ignóbil que desdenha a glória.
Que à corda do patíbulo
Roubou com pejo a espada da vitória.
Soprai do oceano túmido,
Soprai, ó ventos, derramai nos ares
Cinzas que a mão do algoz devia aos mares.
E vós, ilusas vítimas
Da tirania pérfida,
Vinde, acolhei-vos ao amparo amigo
Da bandeira leal:
Soldados, já não há mais inimigo,
Bradai: — Real, Real!
Por Maria, bradai, de Portugal!
Viva Maria e viva a liberdade!
Com lágrimas responde e a brados clama
O soldado corrido e envergonhado.
Nas Aleiras da antiga lealdade
À voz se uniram do herói que os chama,
E bendizendo a mão que os há salvado,
Lavar prometem a manchada fama
No sangue desse monstro de maldade
Que a pátria com o roubado cetro oprime
E involuntários os forçou ao crime.

XXII

Vencidos, vencedores, abraçados,
Todos triunfam na ganhada glória;
Da mesma causa todos são soldados,
E unidos cantam a comum vitória:
Os séculos porvir lerão pasmados
Prodígio tal na lusitana história...
O eco dos mares que repete o canto
Nas vagas se ouve murmurar de espanto.

XXIII

Sonoros rufam trêmulos tambores;
Os bravos batalhões, de Ourique entoam,
Em coro marcial, leais clamores;
E as alternadas coplas, que ressoam
Como em resposta, se unem aos clangores
Das trompas,— dos clarins que agudo soam;
Brande-se a espada inda sanguenta e nua,
E a bandeira Real no ar flutua.
CURO DOS SOLDADOS
Real! Real! Real!
Real por Maria de Portugal!

UMA VOZ

Repita a Terceira as vozes de Ourique
Que ao trono elevaram o filho de Henrique,
E a filha de Pedro ao trono alçarão.

CORO

Maria protege a constituição.

ALGUMAS VOZES

E viva Maria, viva a liberdade!
Miguel é tirano
Feroz, desumano,
Que reinar não há de.

CORO

Real! Real! Real!
Real por Maria de Portugal

UMA VOZ

Sua mão delicada bordou a bandeira
Que altiva tremula na heroica Terceira:
Cantemos, alcemos o invicto pendão.