Flores sem Fruto

Enquanto fui poeta afrontei-me que mo chamassem; hoje tenho pena
e saudade de o não poder já ser. Era uma viciosa vergonha a que eu
tinha, porque não há melhores nem mais nobres almas que as dos
poetas: agora o conheço bem, desde que o não sou, e que sinto as
picadas das más paixões e dos acres sentimentos da baixeza humana
avisarem-me que está comigo a idade da prosa; – como ao que teve
folgazã e solta mocidade o avisam os primeiros latejos da gota de
que lhe está a velhice a entrar em casa.
Dieta, regularidade e moderação prolongam a juventude do corpo;
mas quando a alma chegou a enrugar-se, não há higiene que a
desfranza. A minha está velha; e a todos os achaques da velhice,
junta essa fatal e matadora saudade do passado. Quanto dera eu por
ver e sentir como via e sentia quando pensava pouco e sentia muito!
Quem me dera ser o louco, o doido, o poeta que eu tinha vergonha
de ser! E de que me serve a reflexão, a experiência, a razão como lhe
chamam, senão: é para ver de outro modo as ilusões da vida, para as
ver do lado feio, torpe, baixo e vulgar, quando eu as via dantes
esmaltadas de todas as cores do íris, belas de toda a poesia que
estava na minha alma, grandes de todas as virtudes que eram no
meu coração!
Ora pois! não sou já poeta; podem-me fazer “almotacé do meu
bairro”, quando quiserem. Forte sensaborão ganhou a pátria! E
custou: que levaram muito tempo e muito trabalho para me
despoetizarem; foram precisos anos de rudes lutas, centos de
desenganos, milhares de desapontamentos para me fazerem
conhecer o mundo como ele é, os homens, como eles são. Cheguei
enfim a isso, e deixei portanto de ser poeta. O meu horto de flores
tão queridas e mimosas, que não davam fruto, mas alimentavam a
vida com seus aromas de benéfica e nutriente exalação, que eram
como aqueloutras flores de que disse Camões:

Contam certos autores
Que, junto da clara fonte
Do Nilo, os moradores
Vivem do cheiro das flores
Que nascem naquele monte;

o meu horto vou plantá-lo de luzerna e beterrabas. E arranquemos
estas flores sem fruto, não as veja algum utilitário que me condene, de
relapso, a ir, de carocha e sambenito poético, arder nalgum auto-defé que
por aí celebrem em honra de Adam Smith ou de João Batista
Say, ou dos outros grandes homens cuja ciência é como a do Horácio
de Shakespeare que não vê “mais coisa nenhuma entre o céu e a
terra do que as que sonha a sua filosofia.”
Não as colhi pois, arranquei-as estas pobres flores que aqui enfeixo
numa triste e última capela para deixar pendurada na minha cruz; e
aí murche e seque ao suão ardente do deserto em que fica, até que
me venham enterrar ao pó dela, aqui onde eu quero jazer junto das
últimas recordações poéticas da minha vida, dos últimos sonhos que
sonhei acordado; e que valem mais do que todas as realidades que
depois tenho visto.
E não cuides, amigo leitor, que eu quero dizer nisto que não fiz
senão versos até agora, que não farei senão prosas daqui em diante.
Por meus pecados, fiz mais prosas que versos, e ajudei a gastar com
elas a mocidade da minha alma e a frescura do meu coração; baixei
de sobejo ao mundo das realidades, quando tinha asas para me
remontar ao ideal, e pairar-me pelas regiões onde viçam as eternas
flores do gênio. Fiz, quando não devia, fiz prosa em anos de versos.
Quem sabe se a estulta vaidade que mo fez fazer então, me não
levará também para o diante a fazer versos em anos de prosa?
Não é minha tenção, mas não o juro; que isto de ser poeta é como ser
embarcadiço: um dia aperta a vontade, comem os desejos por tal
modo, que se vai um homem por esses mares fora, e só no meio do
temporal se lembra de que já não é para semelhantes folias.
Isto porém que nasce espontâneo da alma, que vem, como
ejaculação involuntária de dentro, quando trasborda o coração de
júbilo ou de pena ou de admiração; isto que é o falar do homem
para Deus naquelas frases incoerentes, inanalisáveis pelas
gramáticas humanas, porque são reminiscências da língua dos anjos
que ele soube antes de nascer; isto que se entoa e se canta no
coração, antes o muito mais belo do que o repita a língua, desses
versos não tornarei eu a fazer, porque não posso, porque era mister
que Deus fizesse o milagre de me remoçar a alma: e não o fará.
São pois estas quase absolutamente as últimas coisas líricas que, por
vontade e autorização minha, se publicarão de entre tantíssimas que
fiz e que, pela maior parte, tenho destruído. Não faltará quem diga
talvez que melhor fora que o fizesse a todas. Mas não é essa a
opinião nem a vontade das maiorias que consultei. E já se vê que,
segundo a moda dos tempos, eu consultei as minhas maiorias, e não
fiz caso das outras: às quais todavia – e não à moda do tempo –
deixo o direito salvo para ralhar livremente e como quiserem.
Já se vê bem assim o porquê ponho este título de Flores sem Fruto à
pequena coleção de poesias que aqui vai. Nem todas são de
Primavera estas flores; há de várias estações: fruto é que nenhuma
deu. Deixariam de ser flores poéticas se o dessem.
O nosso Miguel Leitão chamou à sua miscelânea, Ensalada de várias
ervas – e esse príncipe alemão que é tanto moda, e que escreve com
tão desgarrada elegância, pôs a uma das suas coleções de rapsódias
críticas o título italiano de Tutti-ftutti, que significa o mesmo quase.
E não cuidem que este príncipe que cito, com ser príncipe prussiano
também, é o aventureiro que aqui andou há dois anos a rabiscar
sensaborias a respeito da nossa terra, metendo para o saco toda
quanta calúnia e mentira lhe deram os estrangeiros e estrangeirados
que nos devoram e detestam, para as espalhar depois pela Europa, a
fim de que o mundo diga: “Muito favor lhe fazem os opressores
daquele bruto e estúpido Portugal em o governarem a pontapés e
lhe tirarem o último cruzado novo de que ele não sabe usar!”
Bendita seja a nobre e generosa princesa que tratou o bandoleiro
como ele merecia, e que não tolerou diante de si o caluniador da sua
família o da nação que a adotara! Assim fizessem os outros!
Não senhor; Semi-lasso, autor de Tutti-frutti é outra casta de príncipe:
talvez o tratassem mal aqui se ele cá viesse. E não me peja de seguir
o seu exemplo de longe, escolhendo o título que escolhi para esta
miscelânea de reminiscências poéticas.
Mas nem somente são de várias estações, são também de várias e
mui desvairadas espécies estas flores. Ao pé do acanto da lira antiga,
vai o trevo e o goivo que enramavam o alaúde romântico; o nardo, a
manjerona e a mesma rosa da Palestina ousaram crescer entre o loto
e os mirtos da Ática: e não em jardim simétrico, riscado a régua e
compasso como os do século passado, mas de paisagem livre em
que se aproveitaram os descuidos e acidentes da natureza e do
terreno.
Algumas poucas peças políticas leva esta coleção; e delas há que
nem eu já entendo bem; tanto mudaram, em tão poucos anos,
circunstâncias e pessoas que as inspiraram. Mas não as podia tirar
de um livro em que vai consignada a maior ou a melhor parte das
minhas sensações poéticas em toda uma época, e essa a mais
aventurosa, a mais cheia e mais importante da minha vida.

Novembro, 3 – 1843.