O Mar

He seized his harp which he at times could string...
While flew the vessel on her snowy wing.

Child Harold

I

Doce esperança, nume benfazejo,
Vem enxugar-me as lágrimas saudosas
Que em fio destes olhos me deslizam;
Com a ponta do alvo manto ameiga a face
Que o acre ardor do pranto me há crestado,
Vem consolar-me, vem: alenta o peito
Cum fagueiro sorrir desses teus lábios,
Manda-me um raio teu de luz serena
Que o resfriado coração me esqueça.
Oh dos amigos, do meu bem não quero
Que me apagues suavíssima lembrança:
Dize-me só que tornarei a vê-los.
Que dos perigos que em torno me circundam
Hei de inda a salvo descansar com eles,
E já sem medo recontar fadigas
De procelas, de calmas acintosas,
Duras rajadas, furacões tremendos,
E quantos ora me rodeiam males
Que, olhos fitos em ti, vou suportando.

II

Vem, à deusa, da vista enevoada
Sopra-me a cerração de atra saudade:
Deixa-me olhar pela extensão dos mares
E ver no imenso das cerúleas ondas
Afigurar-se a imagem do infinito.
Oh! como é grande a mão da natureza!
Que vastos plainos de ante mim se estendem,
E vão em derredor nos horizontes
Topar com as bases da celeste abóbada!

III

Vai-se aclarando agora o firmamento
E azulando-se o mar com a luz nascente
Do primeiro, tenuíssimo crepúsculo.
Ei-la que assoma, despontando apenas
Com os róseos dedos, a formosa aurora
Vem brandamente a desparzir no polo
As roxas, lindas flores, rociadas
Do matutino, benfazejo orvalho,
Talvez por mãos dos zéfiros colhidas
Nos jardins Ulisseus, nas brandas veigas
Ao remanso do plácido Mondego...
Talvez ontem ainda a minha amada
Lhe respirasse o lisonjeiro aroma...
Oh! recolhei-as, amorosas filhas
Do plácido Nereu, ide nos colos
Dos tritões namorados, ide ao Tejo
E ao manso rio que engrossaram prantos
Da malfadada Inês, ide, levai-lhas
Aos do meu coração, o amigo, a amante:
Dizei-lhes que eu, eu sou que vos envio.
Que depós vás o coração me foge,
E que só vivo nas memórias deles.
Ide ligeiras, sim, correi, à ninfas...
Mas oh! do pátrio meu Douro sombrio
Ai t não, não vades demandar as praias...
Amargosa e cruel me veda a sorte
Recordá-lo sem dor... Férreas angústias
Lá mísero sofri... lá neste peito
Verteu perversa mão do deus dos males
Quanto fel espremeu do peito às fúrias,
Quanto veneno lhe escumou dos lábios.
A ingrata... Ah! nunca mais me lembre o Douro:
Suas riquezas para si que as guarde.
Suas águas turvas impetuoso as role
Por entre as calvas penedias brutas
Que a lôbrega torrente lhe comprimem:
Vá, que a mim saudades não mas deixa:
Só tormentos me deu, não posso amá-lo...

IV

Esqueçamos memórias que afadigam,
E o espetáculo augusto contemplemos
Desse nascente dia. Com que pompa
Se ergue das ondas o astro luminoso.
Como nos raios se aviventa o lume!
Vai crescendo o fulgor à luz nascente,
Douram-se em derredor os horizontes.
O mar se espelha e reverbera o brilho...

V

Salve, imagem do Eterno! olho do mundo
Que a doce vida no Universo esparzes
Ao teu assomo as delicadas flores
Vão na hástia humilde endireitando as frentes.
Já pela copa às árvores frondosas
Os fechados botões se desabrocham,
Pula na terra germinando e cresce
A encerrada semente, esperança e fito
Do lavrador cansado. Ó terra, e quantos
Quantos encobres ávida mistérios
Que nos teus penetrais obram seus raios!
E mais – por muito tempo a nós vedá-los
Não o imagines, não: vês essa deusa,
Pálido o rosto, os olhos encovados.
Com os ferros curvos que em teu seio embebe
Rasga, franqueia? – É a sórdida cobiça
Que por tuas entranhas laceradas,
As ricas veias dos metais sangrando,
Lá vai cavar os crimes e flagícios
Que hão de enfezar a triste humanidade...

VI

Oh Sol! quanto é sublime nessa esfera
A majestade tua! com que império
Dardejas fogo nos aquosos plainos!
Tua vista só no coração cortado
Do triste viajante alenta a esperança.
E eu, pela espalda de viçoso outeiro
Não te vejo surgir, nem brandamente
Ir-se com os raios teus dourando as messes,
Prateando o arroio, os campos esmaltando...
Não ouço pelos floridos raminhos
Modular filomena as doces queixas,
Nem pastora gentil vejo no prado
Ir conduzindo os alvos cordeirinhos.
Nada, nada descobres a meus olhos...
Só tu e o vasto mar... e a saudade.
Mas há nesta solidão também prazeres:
Para quem?... para o sábio? – O sábio preza
O fasto aparatoso das ciências:
Não vêm soar-lhe aqui da fama os brados,
Nem tanger-lhe os clarins que os evos ganham,
O ambicioso? o avaro? – A todos esses
Estéril é de gozo a soledade.
Quem te ama pois, à solidão dos mares?
O coração singelo, e nunca eivado
Do veneno do crime, nem pungido
Do açacalado espinho dos remorsos.
Por essa imensidão de céus e de águas
Sua alma se dilata e desafoga:
Doce dos olhos lhe devolve o pranto
Com a lembrança dos cândidos amigos;
Prazeres que gozou recorda, e folga,
Novos medita, e em meditá-los goza:
No seio se reclina à natureza,
E deixa às vagas disputar-se o espaço.

VII

Insondável mistério! eu curvo a frente
Humildosa ante o Ser que te governa,
Ó mar, alto pregão da voz do Eterno.
Teus rugidores sons na tempestade
Aclamam seu poder: e o teu silêncio
Na mudez majestosa testemunha
Sua grandeza imensa. O homem se perde
No arcano de tuas leis: e os séculos passam.
Correm os anos, dias se apressuram,
Fogem as horas, os instantes, voam.
E em derredor do círculo dos tempos
Suam, no curto espaço da existência.
Um depós outro, humanos sabedores
Sem o menor colher de teus segredos.

VIII

Qual te imagina o pai deste universo
Que, aglomerando multiformes massas,
Lhe deras ser primeiro: qual... – Mas onde,
Fraqueza de homens, não levaste o homem
Quando, lutando a mesquinhez do engenho
Com a imensidão dos seres, o desvaira!
És elo da cadeia da existência,
Pensador animal! a altiva fronte
Sobre o pó do teu nada abate e humilha:
Vive essa vida, saboreia o favo
Que na vida te deu a natureza:
No instinto do teu bem segue a virtude,
Dentro do coração lá tens um livro,
Nesse cumpre estudar, esse aprendê-lo...

IX

Que manso vai, com as velas enfunadas
Do amigo sopro de galerno vento.
O ligeiro baixei, varrendo as ondas
Não cobre o manto azul do céu sereno
Nem o pardo menor de nuvem fusca:
E mal encrespa a superfície às águas
De amena viração doce bafejo.
Folgam de em torno os mudos nadadores,
Enquanto sequioso o marinheiro
Ou no traidor anzol lhe esconde a morte,
Ou no farpão certeiro lha dardeja.
E ele que mal vos fez? A natureza
Não lhe deu como a vás também a vida!
Ouço que me responde o despeitoso
Brado fatal do ríspido britano:
– E teu estado, à natureza, a guerra...
Cumpre a destruição às leis da vida
E na longa cadeia da existência
Convêm... Que intentas desvairada musa?
Os que a divina mão selou mistérios
Queres sondá-los? Apoucado e breve
Se estende além de nós o vasto mundo;
E mui perto os limites escasseiam
Dos humanos curtíssimos sentidos...

X

Como está leite o mar! Não, mais serenas
As namoradas vagas não folgavam
Quando a meiga, belíssima Ericina
Do espúmeo gérmen ressurgiu formosa.
Mar, do teu seio a deusa dos amores
Veio adoçar os fados do universo,
Dar a vida ao prazer, prazer à vida,
E o dulcíssimo favo do deleite
Espremer, derramá-lo na existência.

XI

Que, mal a frente airosa ergueu das ondas
E as descuidadas tranças mal enxutas
Pelos ombros de neve debruçadas
Arredou com alva mão dos olhos negros,
Do seio lindo voluptuosas chamas
Súbito os mares rápidas lavraram:
Corre o fogo divino e delicioso,
E o reino inteiro de Netuno abrasa.
As bonançosas, acalmadas ondas,
Beijando as curvas praias, vem na terra
O incentivo depor de etéreos gozes.
Voa a flama subtil ao céu e aos astros;
Não sabido prazer no Olimpo os numes
Sentem no coração banhar-lho em gosto.

XII

Nasceu Vênus gentil, folgai: com ela
Vêm os amores e as despidas Graças.
As rosas do deleite desparzindo
Na alvoraçada esfera. Em bando alegre
Jocos, risos brincões de em torno a cercam,
Ávidos beijos, lúbricos revoam,
Correm alados sôfregos desejos:
E as verdes roupas desprendendo ao vento,
De alva amendoeira coroada a frente,
Ante eles todos a Esperança os guia.
Ferve o granizo das douradas setas
Que alígeros frecheiros vão tirando,
Nuvem de corações corre a entregar-se.
E nos laços gentis prender contentes
A mui pesada, inútil liberdade.

XIII

Oh! que banhar de goste delicioso!
Que afogar de prazer homens e numes!
Como derrote o gelo da indiferença
Ante a divina, abrasadora chama!
Como se espraia pela vida o gosto!
Como à existência os vínculos se estreitam!
Come por eles da cadeia eterna
O ser se alonga, reproduz e aviva!
Mar! que venturas te não deve o mundo...

XVI

Filha das ondas Citereia bela,
Maga deusa de amor, oh! não consintas,
Oh! não consintas que o teu vate anseie,
Sofra em teu reino despregados Euros
Torcer-lhe o rumo, desvairar-lhe a proa
E cavar-lhe de em terno as grossas vagas.
É teu império o mádido oceano...
E no mundo que há que teu não seja?
Tu cum sorriso as fúrias lhe assossegas,
Cum sé faqueiro olhar as iras ornas
Lhe quebras docemente e lhas abrandas:
Que esse que outrora pelo virgem pego
Ousou primeiro confiar-se aos ventos
Teu amparo o salvou, teu meigo auxílio
lhe abonançou as cérulas campinas...
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