Ela

Oui, mon âme se plait à secouer ses chaines
Déposant le fardeau dos misères humaines,
Laissant errer mes sens dans ce monde des corps,
Au monde des esprits je monte sans efforts.

De Lamartine, Méd.

I

Eu caminhava só e sem destino
No deserto da vida,
Na alma apagada a luz, e o desatino
Na vista esmorecida:
E afastava de mim, que me empeciam
No caminhar adiante.
Os prazeres dos homens que sorriam,
E a turba delirante
De seus empenhos vãos. – Aos que gemiam
Sorria eu de inveja...
Quem pudera gemer!... mas arredava
Esses também: não seja
Traição a sua dor? – Eu caminhava
Só, triste, só, sem luz o sem destino,
A vista esmorecida,
A alma gasta, apagada, e ao desatino
No deserto da vida.

II

Olhava para o céu, não via estrela,
Nem eu buscava norte:
Que importava o guiai da luz mais bela,
Se das trevas da morte
Se enevoavam meus olhos, que a não via?...
Morte de alma que morre
De enfade e dissabor... e seca e fria
Pesando jaz no coração! – aí corre
O sangue com a vida:
A vida que é da terra, a bruta, a grossa,
Que, da outra desprendida.
Caiu nessa existência absurda, insossa,
Que é durar só, andar, cansar cem ela...
E eu ia desta sorte,
Olhava para o céu, não via estrela,
Nem eu buscava norte.

III

A aurora para mim não tinha flores,
Nem o Sol resplendores
E a morte-luz da lua, que é tão bela.
– Lembra-me inda de vê-la! –
Branquejava-me só come um sudário
Que ondeia ao vento vário,
Pendão de espectro que por noite fria
Vão a alguma aziaga remaria.
Os campos arrelvados,
Que de longe me riam, matizados
De viçosas boninas,
Em chegando, eram áridas campinas,
Gandras salgadas e ermas,
De uma areia alvacenta e nua, – enfermas
E feias de avistar
Como terras malditas... – Oh! nem flores
Não tinha que esfolhar
A aurora para mim, nem resplendores
O Sol que derramar.

IV

E sentei-me cansado num rochedo
Triste como eu e só,
No meio deste vale de degredo,
De lágrimas e dó.
Caiu-me a frente sobre as mãos pesada,
95
E meditei comigo:
Não é melhor pôr fim a esta jornada
E pousar no jazigo?
Vagar, peregrinar sem fim, sem termo,
Som causa, sem esperança,
Só nas cidades, abafando no ermo,
Faminto na abastança,
Morto na vida, e só, só, só!... – Quem dera,
Quem me dera uma dor
Das que eu sentia dantes quando era,
Quando ímpio e sem temer
Bradava ao céu: Fatal presente de alma
Que tanto, tanto sento!
Puniu-me Deus: coalhou-se era podre calma
O oceano fervente
Das paixões tempestuosas de meu peito;
As velas lassas batem,
Balouça o baixel tome e desconfeito,
E, nas cordas que latem
De impaciente preguiça, balanceia
A vida que me assola.
Oh! quem já naufragara num rochedo
Ermo como eu, e se
No meio destes mares de degredo,
De lágrimas e dói!

V

Que é de anjo que, ao gerar da minha vida,
Recebeu a palavra preferida
Da boca do Senhor,
O verbo criador
Que me deu alma e ser? o guarda, o guia
Que, desde esse momento,
Em fiel companhia
Habitar veio o coração que enchia.
De minha mãe, banhá-lo de contento,
De amor e de ternura?
O que depois, na tímida candura
De minha tão ingênua puberdade,
Quando os olhos sequiosos de ventura
Se ergueram a pedir felicidade
A primeira mulher que viram bela,
Mas guiou cora piedade
Para es olhos daquela
Que amei quase com a símplice inocência
Com que amei minha mãe?... Pobres amores!
Sem fogo, sem veemência,
Mas suaves e brandos como as flores...
Como elas, desbotaram à luz viva
Com que, na quadra estiva.
Dardeja o Sol – e a terra há sede, sede
Que orvalhos não apagam
Quer torrentes onde a água se não mede,
E que, a afogar, saciam quando alagam...
...................................
...................................
Ai! esse anjo onde está que a minha vida
Da boca do Senhor
Recebeu na palavra preferida.
No verbo criador?

VI

Com um longo suspiro derradeiro,
Um longo, último olhar de piedade
Ele me abandonou.
Quando ao festim grosseiro
Me viu sentar nas salas da impiedade.
Quando, ai Deus! blasfemou
Minha boca em palavras consagradas.
E jurou fé e prometeu verdade
A essas imagens vás, falsas, pintadas
Que a torpe necedade
– Do mundo ídolos fez de amor...
– Que amores!
...................................
...................................
Elas, como a sabia vende as flores
Que achou na horta ou no prado,
E as traz, em molhos feitos, ao mercado,
Murchas no viço, pálidas nas cores,
Do atar, do repartir...
Assim vendem, nos bailes e nas festas,
A preço de vaidades e mentir,
De ambiciosas requestas,
O que só tem valor
Quando se dá – e que e dá amor...
...................................
Com esse longo suspiro derradeiro,
Num longo, último olhar de piedade
O anjo me abandonou,
Quando ao festim grosseiro
Me viu sentar nas salas da impiedade.

VII

Eu corri-me, chorei, quebrei a fronte
Na laje dura que soava em oco,
Quando acordei do meu sonhar tão louco,
E vi enlodaçada e soca a fonte
Desse ímpio templo – o do Prazer... Corri-me,
Bradei, chorei, carpi-me,
E tornei a vagar só, sem destino
No deserto da vida,
Na alma apagada a luz, e o desatino
Na vista amortecida.
VIII
E fui a erguer os olhos com despeito
Para o céu, às estrelas cintilantes
Queria perguntar se esta era a vida98
Que me fadavam dantes
Quando me entrou no peito
Esta ânsia, este desejo, esta incendida
Sede fatal de amar...
olhei... e vi o azul de firmamento
Só, sem nenhum brilhar
De estrelas eu de lua...
Mas logo se inundava num momento
Do uma luz alva, doce e resplendente,
Que me entrou toda n alma. A névoa crua
Da terra, mais e mais, se encruecia
E cerrava – que a vista já não via...
Mas tão suavemente
Elevada daquela doce luz
A alma subia, plácida subia...
...................................
Deve subir assim
Abraçada na Cruz,
A alma do justo no bendito dia
Que ao martírio da vida lhe põe fim...
...................................
Já não erguia os olhos com despeito
Para e céu, às estrelas cintilantes
Não perguntava já se esta era a vida
Que me fadavam dantes.

IX

Eu subia, subia... O brilho, a alvura
Da luz mais requintada.
E corno que o meu ser compenetrava.
Então na imensa altura
Vi, claramente vista, a face pura
Da primitiva, etérea Formosura
De que à terra só vai reflexo baço.
Vislumbre froixo, escasso
Que um momento, revela
Na face virginal – e a faz tão bela! –
Esse mistério da eternal Grandeza
Que desde a eternidade.
Antes de todo e ser, fez a beleza.
...................................
Disse a minha alma: Esta é a Formosura
E o que eu sinto, amor...
E eram. Que fiz eu pois até aqui? A impura,
Falsa imagem de um ídolo traidor
Trouxe a alma rendida,
E sem remorso prostitui a vida...

X

O meu amor primeiro,
Único, derradeiro,
Achei-o pois: é Ela. – Ela, um mistério,
Um sonho – um véu caldo
Sobre um símbolo! um mito...
Mas é Ela... Oh! é ela! Eterno império
Lhe foi, desde o princípio, concedido
Em meu ser imortal. Sou, fui... escrito
Está que sou, que fui, que era já dela,
Desde que há ser em mim.
Não tem começo, nunca terá fim
Este amor, que é do céu:
Vida não no acendeu, morte e não gela,
Que não pode morrer – se não nasceu!
No sempiterno seio
Coexistiu com o meu ser:
Neste da vida turbulento enleio
Passará a gemer
Como eu gemo. Mas toda a eternidade
Será nossa, depois, com a Divindade.