O Emprazado

They seem''d... unto the last
To... forget the present in the past,
To share between themselves some separate fate
Whose darkness none beside should penetrate.

Byron, Lara

I

No chão a hástia da lança está cravada;
E a luzente armadura
Em troféu se encastela
De em torno da hástia dura.
Brilha, na cinzelada.
Ponderosa rodela,
O antigo emblema heráldico sabido,
Que o nome conhecido
Do senhor dessas armas apregoa.
O elmo emplumado, que brilhante coroa
O soberbo troféu,
Ao vento baloiçando, oco reboa.
Vai sossegada resvalando a lua
No puro azul do céu,
E nas fulgentes lâminas
Caem seus raios trêmulos,
Como o vago lampejo
De luz que surde de encantado brejo,
O pendão enrolado,
Nas misteriosas, variadas cores,
Traz segredo de amores
A ninguém revelado:
Ou, se alguém o entendeu, não no dissera,
Que nessa hora morrera.

II

É a justa amanhã, cavaleiros,
É a justa: acudi a brigar.
Quem ficar na tranqueira estendido,
É sinal que era fraco no amar.
Pois venha já brigar, pois venha já morrer,
Quem diz que tem amor, quem no quer merecer!
Troféu que aí se ergue arrogante,
Um nobre senhor o arvorou:
Quer ser ele o mais fino amante:
Sua bela, a mais bela a jurou.
Quem se atreve a dizer-lhe que não?
Quem se atreve a tocar-lhe no escudo
Com a ponta da lança ou contão?
Quem se atreve? Ninguém. Ficou mudo
O tropel dos guerreiros então.

III

Arreda, arredar, fasta, afastar
Que aí vem, brida solta, correndo
Guerreiro de aspecto tremendo,
Montado num negro corcel.
No escudo não tem mais quartel,
Tenção nem letreiro que diga
A empresa de guerra que siga,
A dama que sirva de amor.
Da guerra de el-rei Almançor
Virá com essas armas sangrando,
Ou foi que na estrada algum bando,
O quis, por má traça, matar?
Não sabe ninguém decifrar
Mistério de tanto segredo...
Chegou ele, – investe sem medo
o altivo troféu do senhor:
Feriu-o no ponto de honor,
Do conto da lança lhe dava,
O escudo insolente voltava
Ao nobre, soberbo campeão...

IV

Em sua tenda de damasco
Bordado de oiro à porfia,
Ali junto às suas armas.
O nobre dono dormia.
Ouviu o golpe atrevido
Que no escudo lhe batia:
Chamou pajens, escudeiros,
Muito à pressa se vestia.
No escudo das suas armas,
O coração lhe dizia
Que um homem só neste mundo
A tocar se atreveria.
Não quer lança nem cavalo,
Seus homens não requeria:
Com a espada nua na mão,
Só, pela tenda saia:
– Aqui estou, diz, que me queres?
E a forte voz lhe tremia...
– A tua vida, emprazado,
Que já passou ano e dia. –

V

Não houve mais falas: o nobre emprazado
Montou na garupa do negro corcel.
Partiram correndo por monte e valado,
O estrondo fazendo de um grande tropel...
Dali a três dias, três noites contadas,
Saiu saimento com grande primor
De além do castelo de Penamacor:
Duas tumbas levava pregadas, fechadas...
Juntava-se o povo de todo o arredor
A ver saimento de tanto primor.
Mas cruz nem caldeira, ninguém na levou:
Sem rezas nem frades, o enterro passou...

VI

Naquele castelo dois irmãos viviam...
Nunca mais os viam.
E a bela condessa
De Penamacor
Dali a um ano é freira professa
Em São Salvador.