CAPÍTULO XXIX

Doçuras da vida. — Imaginação e sentimento. — Poetas que morreram jovens e poetas que
morreram velhos. — Como são escritas estas viagens. — Livro de pedra. Criança que
brinca com ele. — Ruínas e reparações. — Ideia fixa do A. em coisas de arte e literárias.
— Santa Iria ou Irene, e Santarém. — Romance de Santa Iria. — Quantas santas há
em Portugal deste nome?
Este sonhar acordado, este sonhar poético diante dos sublimes espetáculos da
natureza, é dos prazeres grandes que Deus concedeu às almas de certa
têmpera. Doce é gozar assim... mas em que doçuras da vida não predomina
sempre o ácido poderoso que estimula! Tirai-lho, fica a insipidez; deixai-lho,
ulcera por fim os órgãos: o gozo é mais vivo porque a ação do estímulo é mais
sentida... mas a ulceração cresce, o coração está em carne viva... agora o prazer
é martírio.
Infeliz do que chegou a esse estado!
Bem-aventurado o que pode graduar, como Goethe, a dose de anfião que
quer tomar, que poupa as sensações e a vida, e economiza as potências da sua
alma! Nesses porém é a imaginação que domina, não o sentimento. Byron,
Schiller, Camões, o Tasso morreram novos; matou-os o coração. Homero e
Goethe, Sófocles e Voltaire acabaram de velhos: sustinha-os a imaginação,
que não despende vida porque não gasta sensibilidade.
Imaginar é sonhar, dorme e repousa a vida no entretanto; sentir é viver
ativamente, cansa-a e consome-a.
Isto é o que eu pensava — porque não pensava em nada, divagava —
enquanto aqueles versos do Fausto me estavam na memória, e aquela saudosa
vista do Tejo e das suas margens diante dos olhos.
Isto pensava, isto escrevo; isto tinha na alma, isto vai no papel: que doutro
modo não sei escrever.
Muito me pesa, leitor amigo, se outra coisa esperavas das minhas VIAGENS,
se te falto, sem o querer, a promessas que julgaste ver nesse título, mas que eu
não fiz decerto. Querias talvez que te contasse, marco a marco, as léguas da
estrada? palmo a palmo, as alturas e as larguras dos edifícios? algarismo por
algarismo, as datas da sua fundação? que te resumisse a história de cada pedra,
de cada ruína?
Vai-te ao padre Vasconcelos; e quanto há de Santarém, peta e verdade, aí o
acharás em amplo fólio e gorda letra: eu não sei compor desses livros, e
quando soubesse, tenho mais que fazer.
Só tenho pena de uma coisa, é de ser tão desastrado com o lápis na mão;
porque em dois traços dele te dizia muito mais e melhor do que em tanta
palavra que por fim tão pouco diz e tão mal pinta.
Santarém é um livro de pedra em que a mais interessante e mais poética parte
das nossas crónicas está escrita. Rico de iluminuras, de recortados, de florões,
de imagens, de arabescos e arrendados primorosos, o livro era o mais belo e o
mais precioso de Portugal. Encadernado em esmalte de verde e prata pelo
Tejo e pelas suas ribeiras, fechado a broches de bronze pelas suas fortes
muralhas góticas, o magnífico livro devia durar sempre enquanto a mão do
Criador se não estendesse para apagar as memórias da criatura.
Mas esta Nínive não foi destruída, esta Pompeia não foi submergida por
nenhuma catástrofe grandiosa. O povo de cuja história ela é o livro, ainda
existe; mas esse povo caiu em infância, deram-lhe o livro para brincar, rasgouo,
mutilou-o, arrancou-lhe folha a folha, e fez papagaios e bonecas, fez
carapuços com elas.
Não se descreve por outro modo o que esta gente chamada governo, chamada
administração, está fazendo e deixando fazer há mais de século em Santarém.
As ruínas do tempo são tristes mas belas, as que as revoluções trazem ficam
marcadas com o cunho solene da história. Mas as brutas degradações e as
mais brutas reparações da ignorância, os mesquinhos consertos da arte
parasita, esses profanam, tiram todo o prestígio.

Tal é a geral impressão que me faz esta terra. Almocemos, que já oiço chamar
para isso, e iremos ver depois se me enganei.
Ao almoço a conversação veio naturalmente a cair no seu objeto mais óbvio,
Santarém. D. Afonso Henriques e os seus bravos, S. Frei Gil e o Santo
Milagre, o Alfageme e o Condestável, el-rei D. Fernando e a rainha D.
Leonor, Camões desterrado aqui, Frei Luís de Sousa aqui nascido,
Pedr''Álvares Cabral, os Docens, quase todas as grandes figuras da nossa
história passaram em revista. Por fim veio Santa Iria também, a madrinha e
padroeira desta terra, cujo nome aqui fez esquecer o de romanos e celtas.
Quem tem uma ideia fixa, em tudo a mete. A minha ideia fixa em coisas de
arte e literárias da nossa península são as xácaras e romances populares. Há
um de Santa Iria.
Porque é a Santa Iria da trova popular tão diferente da Santa Iria das legendas
monásticas?
A trova é esta, segundo agora a retifiquei e apurei pela colação de muitas e
várias versões provinciais com a ribatejana ou bordalenga, que em geral é a
que mais se deve seguir (*).
[(*) Nota do Autor: Nas notas à ADOZINDA, vol. I do «Romanceiro», nota N, citei diferentemente
esta copla pela imperfeita lição de um Ms. do Minho, único que tinha à mão.]

Estando eu à janela com a minha almofada,
Minha agulha de ouro, o meu dedal de prata;
Passa um cavaleiro, pedia pousada
O meu pai lha negou: quanto me custava!
— «Já vem vindo a noite, é tão só a estrada...
Senhor pai, não digam tal da nossa casa,
Que para um cavaleiro que pede pousada
Se fecha esta porta à noite cerrada.»
Roguei e pedi — muito lhe pesava!
Mas eu tanto fiz que por fim deixava.
Fui-lhe abrir a porta, muito contente entrava;
Ao lar o levei, logo se assentava.
Às mãos lhe dei água, ele se lavava:
Pus-lhe uma toalha, nela se limpava.
Poucas as palavras, que mal me falava,
Mas eu bem sentia que ele me mirava.
Fui a erguer os olhos, mal os levantava
Os seus lindos olhos na terra os pregava.
Fui-lhe pôr a ceia, muito bem ceava
A cama lhe fiz, nela se deitava.
Dei-lhe as boas-noites, não me replicava:
Tão má cortesia nunca a vi usada!
Lá por meia-noite que me eu sufocava,
Sinto que me levam com a boca tapada...
Levam-me a cavalo, levam-me abraçada,
Correndo, correndo sempre à desfilada.
Sem abrir os olhos, vi quem me roubava;
Calei-me e chorei — ele não falava.
Dali muito longe que me perguntava
Eu na minha terra como me chamava.
— «Chamavam-me Iria, Iria a fidalga
Por aqui agora Iria, a cansada .»
Andando, andando, toda a noite andava;
Lá por madrugada que me atentava...
Horas esquecidas comigo lutava;
Nem forcas nem rogos, tudo lhe mancava.
Tirou do alfange... ali me matava;
Abriu uma cova onde me enterrava.
No fim de sete anos passa o cavaleiro,
Uma linda ermida viu naquele outeiro.
— «Que ermida é aquela, de tanto romeiro?»
— «É de Santa Iria, que sofreu marteiro.»
— «Minha Santa Iria, o meu amor primeiro,
Se me perdoares, serei teu romeiro.»
— «Perdoar não te hei de, ladrão carniceiro,
Que me degolaste que nem um cordeiro.»
Ou houve duas santas deste nome, ambas de aventurosa vida e que ambas
deixassem longa e profunda memória da sua beleza e martírio — o de que não
tenho a menor ideia — ou nos escritos dos frades há muita fábula da sua
única invenção deles que o povo não quis acreditar: aliás é inexplicável a
singeleza desta tradição oral.
Tão simples, tão natural é a narração poética do romance popular, quanto é
complicada e cheia de maravilhas a que se autoriza nas recordações
eclesiásticas.
O caso é grave, fique para novo capítulo.