Capítulo XV

Retrato de um franciscano que não foi para o depósito da Terra Santa, nem consta que
esteja na Academia das Belas-Artes. — Vê-se que a lógica de Fr. Dinis se não parecia
nada com a de Condillac. — as suas opiniões sobre o liberalismo e os liberais. — Que o
poder vem de Deus, mas como e para quê. — Que os liberais não entendem o que é
liberdade e igualdade; e o para que eram os frades, se fossem. — Prova-se, pelo texto, que o
homem não vive só de pão, e pergunta-se o de que vivia então Fr. Dinis.

Quem era Frei Dinis?
Disse-o ele: — um homem que se fizera frade, já velho e cansado do mundo,
que vestira o hábito num tempo em que a mofa, o escárnio e o desprezo
seguiam aquela profissão; que o sabia, que o conhecia e que por isso mesmo o
afrontara.

Destes raros e fortes caracteres aparecem sempre na agonia das grandes
instituições para que nenhuma pereça sem protesto, para que de nenhum
pensamento durável e consagrado pelo tempo se possa dizer que lhe faltou
quem o honrasse na hora derradeira por uma devoção nobre, gloriosa e digna
do alto espírito do homem: — que o homem é uma grande e sublime criatura
por mais que digam filósofos.

Tal era Fr. Dinis, homem de princípios austeros, de crenças rígidas, e de uma
lógica inflexível e teimosa: lógica, porém, que rejeitava toda a análise, e que,
forte nas grandes verdades intelectuais e morais em que fixara o seu espírito,
descia delas com o tremendo peso de uma síntese aspérrima e opressora que
esmagava todo o argumento, destruía todo o raciocínio que se lhe punha de diante.
Condillac chamou à síntese método de trevas: Fr. Dinis ria-se de Condillac... e
eu parece-me que tenho vontade de fazer o mesmo.

O despotismo, detestava-o como nenhum liberal é capaz do aborrecer; mas as
teorias filosóficas dos liberais, escarnecia-as como absurdas, rejeitava-as como
perversoras de toda a ideia sã, de todo o sentimento justo, de toda a bondade
praticável. Para o homem em qualquer estado, para a sociedade em qualquer
forma não havia mais leis que as do decálogo, nem se precisavam mais
constituições que o Evangelho: dizia ele. Reforçá-las é supérfluo, melhorá-las
impossível, desviar delas monstruoso. Desde o mais alto da perfeição
evangélica, que é o estado monástico, há regras para todos ali, e não falta
senão observá-las.

Não sei se esta doutrina não tem o quer que seja de um certo sabor
independente e livre, se não cheira o seu tanto à confiança herética dos
reformistas evangélicos. O que sei é que Fr. Dinis a professava de boa-fé, que
era católico sincero, e frade no coração.

Segundo os seus princípios, poder de homem sobre homem, era usurpação
sempre e de qualquer modo que fosse constituído. Todo o poder estava em
Deus — que o delegava ao pai sobre o filho, daí ao chefe da família sobre a
família, daí para um desses sobre todo o Estado; mas para o reger segundo o
Evangelho e em toda a austeridade republicana dos primitivos princípios cristãos.
Assim fora ungido Saul, e nele todos os reis da terra — sem o que, não eram reis.
Tudo o mais, anarquia, usurpação, tirania, pecado — absurdo insustentável e
impossível.

E sobre isto também não disputava, que não concebia como: era dogma.
Nas aplicações, sim, questionava, ou antes, arguia, com a sua lógica de ferro.
As antigas leis, os antigos usos, os antigos homens, não os poupava mais do
que aos novos. A tirania dos reis, a cobiça e a soberba dos grandes, a
corrupção e a ignorância dos sacerdotes, nunca houve tribuno popular que as
açoitasse mais sem dó nem caridade.
O princípio, porém, da monarquia antiga, defendia-o, já se vê, por verdadeiro,
embora fossem mentirosos e hipócritas os que o invocavam.

Quanto às doutrinas constitucionais, não as entendia, e protestava que os seus
mais zelosos apóstolos as não entendiam tão pouco: não tinham senso
comum, eram abstrações de escola.
Agora, do frade é que me eu queria rir... mas não sei como.
O chamado liberalismo, esse entendia ele. «Reduz-se» dizia «a duas coisas,
duvidar e destruir por princípio, adquirir e enriquecer por fim: é uma seita
toda material em que a carne domina e o espírito serve; tem muita força para
o mal; bem verdadeiro, real e perdurável, não o pode fazer. Curar com uma
revolução liberal um país estragado, como são todos os da Europa, é sangrar
um tísico: a falta de sangue diminui as ânsias do pulmão por algum tempo,
mas as forças vão-se, e a morte é mais certa.»

Dos grandes e eternos princípios da Igualdade e da Liberdade dizia: «Em eles
os praticando deveras, os liberais, faço-me eu liberal também. Mas não há
perigo: se os não entendem! Para entender a liberdade é preciso crer em Deus,
para acreditar na igualdade é preciso ter o Evangelho no coração».
As instituições monásticas eram, no seu entender e no seu sistema, condição
essencial de existência para a sociedade civil — para uma sociedade normal.
Não paliava os abusos dos conventos, não cobria os defeitos dos monges,
acusava mais severamente que ninguém a sua relaxação; mas sustentava que,
removido aquele tipo da perfeição evangélica, toda a vida cristã ficava sem
norma, toda a harmonia se destruía, e a sociedade ia, mais depressa e mais sem
remédio, precipitar-se no golfão do materialismo estúpido e brutal em que
todos os vínculos sociais apodreciam e caíam, e em que mais e mais se isolava
e estreitava o individualismo egoísta — última fase da civilização exagerada
que vai tocar no outro extremo da vida selvagem.

Tais eram os princípios deste homem extraordinário que juntava para uma
erudição imensa o profundo conhecimento dos homens e do mundo em que
tinha vivido até a idade de cinquenta anos.
Como e porque deixava ele o mundo? Como e porque, um espírito tão ativo e
superior se ocupava apenas do obscuro encargo de guardião do seu convento
— cargo que aceitara por obediência — e quase que limitava as suas relações
fora do claustro àquela casa do vale onde não havia senão aquela velha e
aquela criança?

Apesar da sua rigidez ascética, prendia esse espírito por alguma coisa a este
mundo? Aquele coração macerado do cilício dos pensamentos austeros e
terríveis do eterno futuro, consumido na abstinência de todo o gozo, de todo
o desejo no presente, teria acaso, viva ainda bastante, alguma fibra que
vibrasse com recordações, com saudades, com remorsos do passado?
No seu convento ele não tinha senão uma cela nua com um crucifixo por
todo adorno, um breviário por único livro. Naquela só família que conversava,
havia, já o disse, a velha cega e decrépita, Joaninha com quem apenas falava, e
um ausente, um rapaz de quem há dois anos quase que se não sabia. Em intrigas
políticas, em negócios eclesiásticos, em coisa mais nenhuma deste
mundo não tinha parte. De que vivia, pois, este homem — homem que certo
não era daqueles que vivem só de pão?
E este era dos poucos textos latinos que ele repetia, este o tema predileto dos
raros sermões que pregava: non in solo pane vivit homo. Nem só de pão vive o homem.
Vivia então de alguma outra coisa este homem; e a meditação e a oração não
lhe bastavam, porque ele saía do seu convento e não ia pregar nem rezar...
todas as sextas-feiras era certo na casa do vale à mesma hora, do mesmo
modo...

Ali estava, pois, alguma parte da vida do frade que de todo se não desprendera
da terra, e que, por mais que ele diga, lhe faltava castrar ainda por amor do
céu.
É que meio século de viver no mundo deixa muita raiz que não morre assim.
E talvez é uma só a raiz, mas funda, e rija de febra e de seiva, que as folhas
morrem, os ramos secam, o tronco apodrece, e ela teima a viver.
Saibamos alguma coisa dessa vida.