Capítulo IX

Prolegómenos dramático-literários, que muito naturalmente levam, apesar de alguns rodeios,
ao retrospeto e reconsideração do capítulo antecedente. — Livros que não deviam ter título, e
títulos que não deviam ter livro. — Dos poetas deste século. Bonaparte, Rothschild e Sílvio
Pélico. — Chega-se ao fim destas reflexões e à ponte da Asseca. — Tradução portuguesa
de um grande poeta. — Origem de um ditado. — Junot na ponte da Asseca. — De como
o A. deste livro foi jacobino desde pequeno. — Enguiço que lhe deram. — A duquesa de
Abrantes. — Chega-se enfim ao Vale de Santarém.

Vivia aqui há coisa de cinquenta para sessenta anos, nesta boa terra de
Portugal, um figurão esquisitíssimo que tinha inquestionavelmente o instinto
de descobrir assuntos dramáticos nacionais — ainda, às vezes, a arte de
desenhar bem o seu quadro, de lhe grupar, não sem mérito, as figuras: mas, ao
pô-las em ação, ao coloridas, ao fazê-las falar... boas-noites! era sensaboria
irremediável.

Deixou uma coleção imensa de peças de teatro que ninguém conhece, ou
quase ninguém, e que nenhuma sofreria, talvez, representação; mas rara é a
que não poderia ser arranjada e apropriada à cena.

Que mina tão rica e fértil para qualquer mediano talento dramático! Que belas
e portuguesas coisas se não podem extrair dos treze volumes — são treze
volumes e grandes! — do teatro de Énio-Manuel de Figueiredo! Algumas
dessas peças, com bem pouco trabalho, com um diálogo mais vivo, um estilo
mais animado, fariam comédias excelentes.

Estão-me a lembrar estas:

«O Casamento da Cadeia» — ou talvez se chame outra coisa, mas o assunto é
este. — Comédia cujos caracteres são habilmente esboçados, funda-se naquela
a nossa antiga lei que fazia casar da prisão os que assim se supunha poderem
reparar certos danos de reputação feminina.
«O Fidalgo da sua Casa», sátira muito graciosa de um tão comum ridículo o
nosso.»

«As Duas Educações», belo quadro de costumes: são dois rapazes, ambos
estrangeiramente educados, um francês, outro inglês, nenhum português. E
eminentemente cómico, frisante, ou, segundo agora se diz à moda, «palpitante
de atualidade».

«O Cioso», comédia já remoçada da antiga comédia de Ferreira e que em si
tem os germes todos da mais rica e original composição.
«O Avaro Dissipador», cujo só título mostra o engenho e invenção de quem
tal assunto concebeu: assunto ainda não tratado por nenhum de tantos
escritores dramáticos de nação alguma, e que é todavia um vulgar ridículo,
todos os dias encontrado no mundo.

São muitas mais, não fica nestas, as composições do fertilíssimo escritor que,
passadas pelo crivo de melhor gosto, e animadas sobretudo no estilo, fariam
um razoável repertório para acudir à míngua dos nossos teatros.
Uma das mais sensabores porém, a que vulgarmente se haverá talvez pela mais
sensabor, mas que a mim mais me diverte pela ingenuidade familiar e
simpática do seu tom magoado e melancolicamente chocho, é a que tem por
título «Poeta em Anos de Prosa».

E foi por esta, foi por amor desta que me eu deixei descair na digressão
dramático-literária do princípio deste capítulo; pegou-se-me à pena porque se
me tinha pregado na cabeça; e ou o capítulo não saía, ou ela havia de sair
primeiro.

Poeta em anos de prosa! Oh! Figueiredo, Figueiredo, que grande homem não
foste tu, pois imaginaste este título que só ele em si é um volume! Há livros, e
conheço muitos, que não deviam ter título, nem o título é nada neles.
Faz favor de me dizer de que serve, o que significa o «Judeu Errante» posto
no frontispício desse interminável e mercatório romance que aí anda pelo
mundo, mais errante, mais sem fim, mais imorredouro que o seu protótipo?
E há títulos também que não deviam ter livro, porque nenhum livro é possível
escrever que os desempenhe como eles merecem.

«Poeta em Anos de Prosa» é um desses.
Eu não leio nenhuma das raras coisas que hoje se escrevem verdadeiramente
belas, isto é, simples, verdadeiras, e por consequência sublimes, que não
exclame com sincero pesadume cá de dentro: «Poeta em Anos de Prosa»!
Pois este é século para poetas? Ou temos nós poetas para este século?...
Temos sim, eu conheço três: Bonaparte, Sílvio Pélico e o Barão de Rothschild.
O primeiro fez a sua Ilíada com a espada, o segundo com a paciência, o
último com o dinheiro.
São os três agentes, as três entidades, as três divindades da época.
Ou cortar com Bonaparte, ou comprar com Rothschild, ou sofrer e ter
paciência com Sílvio Pélico.
Todo o que fizer de outra poesia — e de outra prosa também — é tolo...
Vieram-me estas muito judiciosas reflexões a propósito do capítulo
antecedente desta a minha obra-prima; e lancei-as aqui para instrução e
edificação do leitor benévolo.
Acabei com elas quando chegámos à ponte da Asseca.

Esquecia-me dizer que daqueles três grandes poetas só um está traduzido em
português — o Rothschild: não é literal a tradução, agalegou-se e ficou muito
suja de erros de imprensa, mas como não há outra...
Ora donde veio este nome da Asseca? Algures aqui perto deve de haver sítio,
lugar ou coisa que o valha, com o nome de Meca; e daí talvez o admirável
rifão português que ainda não foi bem examinado como devia ser, e que
decerto encerra algum grande ditame de moral primitiva: «andou por Seca
(Asseca?) e Meca e olivais de Santarém» — Os tais olivais ficam mesmo à
frente. É uma etimologia como qualquer outra.

A ponte da Asseca corta uma várzea imensa que há de ser um vasto paul de
Inverno: ainda agora está a dessangrar-se em água por toda a parte.
É notável na história moderna este sítio. Aqui num recontro com os nossos,
foi Junot gravemente ferido, ferido na cara. «Il ne sera plus beau garçon», disse
o parlamentário francês que veio, depois da ação, tratar, creio eu, de troca de
prisioneiros ou de coisa semelhante. Mas enganou-se o parlamentário; Junot
ainda ficou muito guapo e gentil-homem depois disso.
Tenho pena de nunca ter visto o Junot nem o Maneta (*) , as duas primeiras
notabilidades que ouvia clamar como tais e cujos nomes conheci... Enganome:
conheci primeiro o nome de Bonaparte.

[(*) Nota do Autor: Chamavam assim por escárnio, em Portugal, ao general Loison
a quem faltava um braço.]

E lembra-me muito bem que nunca me persuadi que ele fosse o monstro
disforme e horroroso que nos pintavam frades e velhas naquele tempo.
Imaginei sempre que, para excitar tantos ódios e malquerenças, era necessário
que fosse um bem grande homem.
Desde pequeno que fui jacobino; já se vê: e de pequeno me custou caro. Levei
bons puxões de orelhas do meu pai por comprar na feira de São Lázaro, no
Porto, em vez das gaitinhas ou dos registos de santos, ou das outras
bugigangas que os mais rapazes compravam... não imaginam o quê... um
retrato de Bonaparte.

«Foi enguiço» — diria uma senhora do meu conhecimento que acredita neles:
foi enguiço que ainda se não desfez e que toda a vida me tem perseguido.
Quem me diria quando, por esse primeiro pecado político da minha infância,
por esse primeiro tratamento duro, e — perdoe-me a respeitada memória do
meu santo pai! — injustíssimo, que me trouxe o mero instinto das ideias
liberais, quem me diria que eu havia de ser perseguido por elas toda a vida!
que apenas saído da puberdade havia de ir a essa mesma França, à pátria
desses homens e dessas ideias com que a minha natureza simpatizava sem
saber porquê, buscar asilo e guarida?

Não vi já quase nenhum daqueles que tanto desejara conhecer: as ruínas do
grande império estavam dispersas; os seus generais mortos, desterrados, ou
trajavam interesseiros e cobardes as librés do vencedor.
De todas as grandes figuras dessa época a que melhor conheci e tratei foi uma
senhora, tipo de graça, de amabilidade e de talento. Pouco foi o nosso trato,
mas quanto bastou para me encantar, para me formar no espírito um modelo
de valor e merecimento feminino que me veio a fazer muito mal.
Custou depois a encher aquela altura que se marcou...

Eis aqui como eu fiz esse conhecimento.
Ainda o estou vendo, coitado! o pobre C. do S., nobre, espirituoso, cavalheiro,
fazendo-se perdoar todos os seus prejuízos de casta, que tinha como ninguém,
por aquela polidez superior e afabilidade elegante que distingue o verdadeiro
fidalgo (estilo antigo); ainda o estou vendo, já sexagenário, já mais que
«cidevant jeune homme», o pescoço entalado na inflexível gravata, os pés
pegando-se-lhe, como os de Ovídio, ao limiar da porta — não que lhos
prendessem saudades, senão que lhos paralisava a caquexia incipiente — mas
o espírito jovem a reagir e a teimar.

— «Vamos!», disse ele, «hoje estou bom, sinto-me outro: quero apresentálo
a madame de Abrantes. Está tão velha! Isto de mulheres não são como nós,
passam muito depressa.»

E o desgraçado tremiam-lhe as pernas, e sufocava-o a tosse.
Tomámos uma «citadine», e fomos com efeito à nova e elegante rua chamada
não impropriamente a Rua de Londres, onde achámos rodeada de todo o
esplendor do seu ocaso aquela formosa estrela do império.
Não quero dizer que era uma beleza; longe disso. Nem bela nem jovem, nem
airosa de fazer impressão era a duquesa de Abrantes. Mas em meia hora de
conversação, de trato, descobriam-se-lhe tantas graças, tanto natural, tanta
amabilidade, um complexo tão verdadeiro e perfeito da mulher francesa, a
mulher mais sedutora do mundo, que involuntariamente se dizia a gente no
seu coração: «Como se está bem aqui!»

Falámos de Portugal, de Lisboa, do império — da Restauração, da revolução
de Julho (isto era em 1831), de M. de Lafayette, de Luís Filipe, de
Chateaubriand — grande amigo dela — , do Sacré Coeur e das suas elegantes
devotas (*) — falámos artes, poesia, política... e eu não tinha ânimo para
acabar de conversar...

[(*)Nota do Autor: O convento que tem este nome em Paris é casa de educação
de meninos nobres e recolhimento de senhoras também.]

Benévolo e paciente leitor, o que eu tenho decerto ainda é consciência, um
resto de consciência: acabemos com estas digressões e perenais divagações
minhas. Bem vejo que te deixei parado à minha espera no meio da ponte da
Asseca. Perdoa-me por quem és, dêmos de espora às mulinhas, e vamos que
são horas.

Cá estamos num dos mais lindos e deliciosos sítios da terra: o vale de
Santarém, pátria dos rouxinóis e das madressilvas, cinta de faias belas e de
loureiros viçosos. Disto é que não tem Paris, nem França nem terra alguma do
Ocidente senão a nossa terra, e vale bem por tantas, tantas coisas que nos
faltam.