CAPÍTULO XXXVII

A Graça e a sua bela fachada gótica. — Sepultura de Pedr''Álvares Cabral. — Outro
barão que não é dos assinalados. — Igreja do Santo Milagre. — Belos medalhões
moçárabes. — De como, chegando o prior e o juiz, houve o A. vista do Santo Milagre, e
com que solenidades. — Monumento da muito alta e poderosa princesa a infanta D. Maria
da Assunção. — Casa onde sucedeu o milagre, convertida em capela de estilo filipino. — O
homem das botas e o que tem ele que haver com o Santo Milagre de Santarém. —
Admirável e graciosa esperteza da regência do Rossio. — Aaroun-el-Arraschid: e teoria dos
governos folgazões, os melhores governos possíveis. — Volta o paládio escalabitano de
Lisboa para Santarém.

Inclinamos o nosso caminho para a esquerda, e fomos passar diante do
arrendado e elegante frontispício gótico da Graça. A ausência de não sei que
regedor, ou insignificante personagem de igual importância que tem as chaves
da igreja e convento, nos fez perder toda a esperança de visitar a sepultura de
Pedr''Álvares Cabral que ali jaz, assim como outras belas e interessantes
antiguidades de não menor preço.
Fomos seguindo até casa do barão de A., outro ilegítimo, porque não pertence
aos barões assinalados
Que, sem passar além da Taprobana,
No velho Portugal edificaram
Novo reino que tanto sublimaram.
Encontrámo-lo pronto a acompanhar-nos, e a presidir, como juiz da
irmandade que é, à grande cerimónia da exposição e ostensão do Santo
Milagre.
Juntos descemos à igreja, que é perto.
A igreja pequena e do pior gosto moderno por dentro e por fora. Notável não
tem nada senão uns quatro medalhões de pedra lavrada com bustos de
homens e mulheres em relevo que visivelmente pertenceram a edificação
antiga, e que atualmente estão incrustados na tosca alvenaria do cruzeiro.
Os bustos são de puro e finíssimo lavor gótico, altos de relevo e desenhados
com uma franqueza que se não encontra em esculturas muito posteriores.
São talvez relíquias da primitiva igreja do Santo Milagre que nas sucessivas
reedificações se têm ido conservando. Abençoado seja o escrupuloso que as
salvou deste último melhoramento que houve no desgraçado e desgracioso
templo: o que não há muitos anos por certo.
Chamo gótico ao lavor daquelas cabeças porque é a frase vulgar e imprópria
usada de toda a gente: segundo já observei noutra parte, com mais exação se
devera dizer moçárabe.

Chegou o prior, o senhor juiz deu as suas ordens, vieram uns poucos de
irmãos com tochas, distribuíram-nos a cada um de nós a sua, e
processionalmente nos dirigimos à porta lateral do altar-mor, da qual se sobe,
por uma escada assaz larga e cómoda, à espécie de camarim que está paralelo
com o mais alto do trono em que perpetuamente se conserva o grande paládio
santareno.
Subimos, acompanhados do prior em sobrepeliz e estola; chegados ao alto,
ajoelhámos em roda dele que subiu para uns degrauzinhos, abriu, com a chave
dourada que trazia pendente ao pescoço, uma como porta de sacrário, depois
ajoelhou, incensou, voltou a ajoelhar, disse alguns versetos a que respondeu o
sacristão, e finalmente tirou do seu repositório uma espécie de âmbula de ouro
de fábrica antiga, mas não mais antiga que o décimo sexto, ou décimo quinto
século, quando muito.
Depois de nos inclinarmos e receber a bênção que o padre nos deitou com a
relíquia, foi-nos permitido erguer-nos, e chegar perto para ver e observar.
Entre uns cristais já bem velhos e embaciados se descobre com efeito o
pequeno vulto amarelado-escuro que piedosamente se crê ser o resto da
partícula consagrada que a judia roubara para os seus feitiços.
Escuso de contar a história do Santo Milagre de Santarém que toda a gente
sabe. O bom do prior, ex-frade trino gordo e bem conservado, não nos
perdoou o menor ponto dela, que tivemos de ouvir com a maior compunção.
Encerrada outra vez a âmbula com as mesmas solenidades, entrámos em
conversação com o prior.
Naquele mesmo camarim junto à devota relíquia se conservaram, por espaço
de cinco ou seis anos, se bem me recordo do que o bom do pároco nos
contou, os restos mortais da senhora infanta D. Maria da Assunção, que
falecera em Santarém nos últimos meses da ocupação daquela vila pelas forças
realistas. O cadáver, mal embalsamado e com más drogas, foi metido num
caixão de folha-de-flandres. Em pouco tempo a corrupção estragou e rompeu
a folha, e uma infeção terrível apestava a igreja. Sofreu-se isto anos,
representou-se ao Governo por vezes, mas nenhuma resolução se pôde obter.
Até que afinal, declarando o prior que, se não mandavam tomar conta
daqueles tristes restos da pobre princesa, ele se via obrigado a metê-los na
terra, foi-lhe respondido que fizesse como entendesse; e ele entendeu que os
devia sepultar no cruzeiro da igreja, como fez, do lado da epístola, isto é, à
direita.
E aí jaz em sepultura rasa, sem mais distinção nem epitáfio, a muito alta e
poderosa princesa D. Maria, filha do muito alto e poderoso príncipe D. João o
VI, rei de Portugal, imperador do Brasil, e da conquista e navegação, etc.
Assim é o mundo, as suas grandezas e as suas glórias!
A visita ao Santo Milagre não é completa sem se ir ver a casa onde ele se
operou. Conservou-se ela por alguns séculos em grande veneração, e em mil
seiscentos e tantos se converteu por fim em capela. Hoje está abandonada,
chove em toda ela, e apenas tem uma má porta que a defende das incursões
dos animais. Pena e desleixo grande, porque é elegante e graciosa a capelinha,
lavrada de bons mármores, no melhor gosto do décimo sétimo século, de
renascença já muito adiantado no clássico: é um verdadeiro tipo do estilo
filipino, que tanto predomina nessa época em toda a Península.
A história do Santo Milagre de Santarém muitas vezes tem andado ligada com
a história do reino; e já neste século, no tempo da Guerra da Independência,
veio prender com um dos factos mais importantes, e também com a mais
curiosa e cómica aventura de que em Lisboa há memória.
Aludo nada menos que ao «homem das botas». E perdoem-me as senhoras
beatas a irreverência aparente, que bem sabem não ser eu de motejar com as
coisas sérias e santas. Mas o facto é que a história do Santo Milagre está ligada
com a célebre história do «homem das botas».
Saiba pois o leitor contemporâneo, e saiba a posteridade, para cuja instrução
principalmente escrevo este douto livro, que pela invasão de Massena, o
grande paládio escalabitano foi mandado recolher a Lisboa, e aí se conservou
alguns anos até muito depois da completa retirada dos franceses.
Passado todo o perigo de que o exército invasor roubasse — ou profanasse
— que era o mais provável — a santa relíquia, começou a reclamá-la o senado
e o povo santareno, e a mostrar muito pouca vontade de lha restituir o senado
e povo olissiponense. Era uma questão de entre Alba e Roma que dava séria
preocupação aos refletidos numas da regência do Rossio.
Em poucas perplexidades tão graves se viu aquele pobre governo que tantas
teve, e de quase todas se saiu tão mal.
Não assim desta, que a evitou com o mais inesperado e admirável estratagema,
digno de ornar os maravilhosos faustos do grande Aaroun-el-Arraschid, ou de
qualquer outro príncipe de bom humor, desses poucos felizes que em felizes
tempos reinaram a brincar, e zombaram com o seu povo, mas fazendo-o rir.
Pois, senhores, apertada se via a regência destes reinos com a restituição do
Santo Milagre que era de justiça fazer-se a Santarém, mas que Lisboa recusava,
e ameaçava impedir. Temia-se alboroto no povo.
Não sei de quem foi o alvitre, mas foi de maganão de bom gosto; e bom gosto
teve também o Governo no aceitar e aproveitar. Para o dia em que o Santo
Milagre devia sair de Lisboa Tejo acima, e que se esperava fosse com grande
solenidade e pompa eclesiástica — fez-se anunciar por cartazes que um
Fulano de Tal passaria o rio, de Lisboa a Almada, numas botas de cortiça nas
quais se teria direito e enxuto, navegando a pé sem mais embarcação, vela
nem remo.
A logração era gorda e grande; melhor e mais depressa foi engolida. No dia
aprazado despovoou-se a capital, e uns em barcos, outros por navios, outros
por essas praias abaixo, tudo se encheu de gente de todas as classes, e todos
passaram o melhor do dia à espera do «homem das botas».
No entanto, muito sorrateiramente embarcava o Santo Milagre no seu barco
de água-arriba, e navegava com vento e maré para as ditosas ribeiras de
Santarém.
Ninguém o viu sair, nem soube notícias dele em Lisboa senão quando
constou da sua chegada a Santarém, e das grandes festas que lhe fizeram
aqueles saudosos e devotos povos ribatejanos.
Os Aarouns-el-Arraschids do Rossio riram de socapa: e nunca tão
inocentemente se riu governo algum de ter enganado o povo.
Nós celebrámos a história como ela merecia, e fomos jantar à Alcáçova, para
irmos de tarde ver a Ribeira, e procurar os vestígios do seu ínclito alfageme.