Capítulo XXVIII

Depois de muito procurar acha enfim o autor a igreja de Santa Maria de Alcáçova. —
Estilo da arquitetura nacional perdido. — O terramoto de 1755, o marquês de Pombal e o
chafariz do Passeio Público de Lisboa. — O chefe do partido progressista português no
alcácer de D. Afonso Henriques. — Deliciosa vista dos arredores de Santarém observada
de uma janela da Alcáçova, de manhã. — É tomado o autor de ideias vagas, poéticas,
fantásticas como um sonho. — Introdução do Fausto. — Dificuldade de traduzir os versos
germânicos nos nossos dialetos romanos.

Depois de muito procurar entre pardieiros e entulhos, achámo-la enfim a
igreja de Santa Maria de Alcáçova. Achámos, não é exato: ao menos eu, por
mim, nunca a achava, nem queria acreditar que fosse ela quando ma
mostraram. A real colegiada de Afonso Henriques, a quase catedral da
primeira vila do reino, um dos principais, dos mais antigos, dos mais
históricos templos de Portugal, isto?... esse igrejório insignificante de
capuchos? mesquinha e ridícula massa de alvenaria, sem nenhuma arquitetura,
sem nenhum gosto! risco, execução e trabalho de um mestre pedreiro de
aldeia e do seu aprendiz! É impossível.

Mas era, era essa. A antiga capela real, a veneranda igreja da Alcáçova foi
passando por sucessivos reparos e transformações, até que chegou a esta
miséria.
Perverteu-se por tal arte o gosto entre nós desde o meio do século passado
especialmente, os estragos do terramoto grande quebraram por tal modo o fio
de todas as tradições da arquitetura nacional, que na Europa, no mundo todo
talvez se não ache um país onde, a par de tão belos monumentos antigos
como os nossos, se encontrem tão vilãs, tão ridículas e absurdas construções
públicas e particulares como essas quase todas que há um século se fazem em
Portugal.
Nos reparos e reconstruções dos templos antigos é que este péssimo estilo,
esta ausência de todo estilo, de toda a arte mais ofende e escandaliza.
Olhem aquela empena clássica posta de remate ao frontispício todo
renascença da Conceição Velha em Lisboa. Vejam a emplastagem de gesso
com que estão mascarados os elegantes feixes de colunas góticas da nossa sé.
Não se pode cair mais baixo em arquitetura do que nós caímos quando,
depois que o marquês de Pombal nos traduziu, em vulgar e arrastada prosa, os
rococós de Luís XV, que no original, pelo menos, eram floridos, recortados,
caprichosos e galantes como um madrigal, esse estilo bastardo, híbrido,
degenerando progressivamente e tomando presunções de clássico, chegou nos
nossos dias até ao chafariz do passeio público!
Mas deixar tudo isso, e deixar a igreja da Alcáçova também; entremos nos
palácios de D. Afonso Henriques.
Aqui, pegado com o paredeiro rebocado da capela hão de ser. Por onde se
entra?
Por esta portinhola estreita e baixa, rasgada, bem se vê que há poucos anos,
no que parece muro de um quintal ou de um pátio.
É com efeito aqui; apeemo-nos.
Recebeu-nos com os braços abertos o nosso bom e sincero amigo, atual
possuidor e habitante do régio alcáçar, o Sr. M.P.
Notável combinação do acaso! Que o ilustre e venerando chefe do partido
progressista em Portugal, que o homem de mais sinceras convicções
democráticas, e que mais sinceramente as combina com o respeito e adesão às
formas monárquicas, esse homem, vindo do Minho, do berço da dinastia e da
Nação, viesse fixar aqui a sua residência no alcáçar do nosso primeiro rei,
conquistado pela sua espada num dos feitos mais insignes daquela era de
prodígios!
Entrámos na pequena horta em forma de claustro que une a antiga casa dos
reis com a sua capela. Assim foi sem dúvida noutro tempo: a parede oriental
da igreja é o muro do quintal de um lado, mas as comunicações foram
vedadas provavelmente quando a coroa alienou o palácio e o separou assim
perpetuamente do templo.
Plantada de laranjeiras antigas, os muros forrados de limoeiros e parreiras,
aquela pequena cerca, apesar dos muitos canteiros e alegretes de alvenaria com
que está moirescamente entulhada, é amena e graciosa à vista.
Apresentou-nos o nosso amigo a sua mulher, senhora de porte gentil e grave;
beijámos os seus lindos filhos, e fomos fazer as abluções indispensáveis
depois de tal jornada para nos podermos sentar à mesa.
O palácio de Afonso Henriques está como a sua capela: nem o mais leve, nem
o mais apagado vestígio da antiga origem. Sabe-se que é ali pela bem
confrontada e inquestionável topografia dos lugares, por mais nada...
E que me importam a mim agora as antiguidades, as ruínas e as demolições,
quando eu sinto demolir-me cá por dentro por uma fome exasperada e
destruidora, uma fome vandálica insaciável!
Vamos a jantar.
Comemos, conversámos, tomámos chá, tornámos a conversar e tornámos a
comer. Vieram visitas, falou-se política, falou-se literatura, falou-se de
Santarém, sobretudo das suas ruínas, da sua grandeza antiga, da sua desgraça
presente. Enfim, fomo-nos deitar.
Nunca dormi tão regalado sono na minha vida. Acordei no outro dia ao
repicar incessante e apressurado dos sinos da Alcáçova. Saltei da cama, fui à
janela, e dei com o mais belo, o mais grandioso, e, ao mesmo tempo, mais
ameno quadro em que ainda pus os meus olhos.
No fundo de um largo vale aprazível e sereno, está o sossegado leito do Tejo,
cuja areia ruiva e resplandecente apenas se cobre de água junto às margens,
donde se debruçam verdes e frescos ainda os salgueiros que as ornam e
defendem. Dalém do rio, com os pés no pingue nateiro daquelas terras
aluviais, os ricos olivedos de Alpiarça e Almeirim; depois a vila de D. Manuel
e a sua charneca e as suas vinhas. Daquém a imensa planície dita do Rossio,
semeada de casas, de aldeias, de hortas, de grupos de árvores silvestres, de
pomares. Mais para a raiz do monte em cujo cimo estou, o pitoresco bairro da
Ribeira com as suas casas e as suas igrejas, tão graciosas vistas daqui, a sua
cruz de Santa Iria e as memórias romanescas do seu alfageme.
Com os olhos vagando por este quadro imenso e formosíssimo, a imaginação
tomava-me asas e fugia pelo vago infinito das regiões ideais. Recordações de
todos os tempos, pensamentos de todo o género me afluíam ao espírito, e me
tinham como num sonho em que as imagens mais discordantes e disparatadas
se sucedem umas às outras.
Mas eram todas melancólicas, todas de saudade, nenhuma de esperança!...
Lembraram-me aqueles versos de Goethe, aqueles sublimes e inimitáveis
versos da introdução do Fausto:

Ressurgis outra vez, vagas figuras,
Vacilantes imagens que à turbada
Vista acudíeis dantes. E hei de agora
Reter-vos firme? Sinto eu ainda
O coração propenso a ilusões dessas?
E apertais tanto!... Pois embora! seja:
Dominai, já que em névoa e vapor leve
Em torno a mim surgis. Sinto o meu seio
Juvenilmente trépido agitar-se
Coa maga exalação que vos circunda.
Trazeis-me a imagem de ditosos dias,
E daí se ergue muita sombra amada:
Como um velho cantar meio esquecido,
Vêm os primeiros símplices amores
E a amizade com eles. Reverdece
A mágoa, lamentando o errado curso
Dos labirintos da perdida vida
E me está nomeando os que traídos
Em horas belas por falaz ventura
Antes de mim na estrada se sumiram.

Não me atrevo a pôr aqui o resto da minha infeliz tradução: fiel é ela, mas não
tem outro mérito. Quem pode traduzir tais versos, quem de uma língua tão
vasta e livre há de passá-los para os nossos apertados e severos dialetos
romanos?