Capítulo X

Vale de Santarém. — Namora-se o A. de uma janela que vê por entre umas árvores. —
Conjeturas várias a respeito da dita janela. — Semelhança do poeta com a mulher
namorada, e inquestionável inferioridade do homem que não é poeta. — Os rouxinóis. —
Reminiscência de Bernardim Ribeiro e das suas saudades. — De como o A. tinha quase
completo o seu romance, menos um vestido branco e uns olhos pretos. — Saem verdes os
olhos com grande admiração e pasmo o seu. — Verificam-se as conjeturas sobre a
misteriosa janela. — A menina dos rouxinóis. — Censura das damas muito para temer,
crítica dos elegantes muito para rir. — Começa o primeiro episódio desta Odisseia.

Vale de Santarém. — Namora-se o A. de uma janela que vê por entre umas árvores. —
Conjeturas várias a respeito da dita janela. — Semelhança do poeta com a mulher
namorada, e inquestionável inferioridade do homem que não é poeta. — Os rouxinóis. —
Reminiscência de Bernardim Ribeiro e das suas saudades. — De como o A. tinha quase
completo o seu romance, menos um vestido branco e uns olhos pretos. — Saem verdes os
olhos com grande admiração e pasmo o seu. — Verificam-se as conjeturas sobre a
misteriosa janela. — A menina dos rouxinóis. — Censura das damas muito para temer,
crítica dos elegantes muito para rir. — Começa o primeiro episódio desta Odisseia.

O Vale de Santarém é um destes lugares privilegiados pela natureza, sítios
amenos e deleitosos em que as plantas, o ar, a situação, tudo está numa
harmonia suavíssima e perfeita: não há ali nada grandioso nem sublime, mas
há uma como simetria de cores, de sons, de disposição em tudo quanto se vê e
se sente, que não parece senão que a paz, a saúde, o sossego do espírito e o
repouso do coração devem viver ali, reinar ali um reinado de amor e
benevolência. As paixões más, os pensamentos mesquinhos, os pesares e as
vilezas da vida não podem senão fugir para longe. Imagina-se por aqui o Éden
que o primeiro homem habitou com a sua inocência e com a virgindade do
seu coração.

À esquerda do vale, e abrigado do Norte pela montanha que ali se corta quase
a pique, está um maciço de verdura do mais belo viço e variedade. A faia, o
freixo, o álamo entrelaçam os ramos amigos; a madressilva, a mosqueta
penduram de um a outro as suas grinaldas e festões; a congossa, os fetos, a
malva-rosa do valado vestem e alcatifam o chão.
Para mais realçar a beleza do quadro, vê-se por entre um claro das árvores a
janela meio aberta de uma habitação antiga mas não delapidada — com certo
ar de conforto grosseiro, e carregada na cor pelo tempo e pelos vendavais do
sul a que está exposta. A janela é larga e baixa; parece mais ornada e também
mais antiga que o resto do edifício que todavia mal se vê...
Interessou-me aquela janela.
Quem terá o bom gosto e a fortuna de morar ali?
Parei e pus-me a namorar a janela.
Encantava-me, tinha-me ali como num feitiço.
Pareceu-me entrever uma cortina branca... e um vulto por detrás... Imaginação
decerto! Se o vulto fosse feminino!... era completo o romance.
Como há de ser belo ver pôr o Sol daquela janela!...
E ouvir cantar os rouxinóis!...
E ver raiar uma alvorada de Maio!...

Se haverá ali quem a aproveite, a deliciosa janela?... quem aprecie e saiba gozar
todo o prazer tranquilo, todos os santos gozos de alma que parece que lhe
andam esvoaçando em torno?
Se for homem, é poeta; se é mulher, está namorada.
São os dois entes mais parecidos da natureza, o poeta e a mulher namorada:
veem, sentem, pensam, falam como a outra gente não vê, não sente, não
pensa nem fala.
Na maior paixão, no mais acrisolado afeto do homem que não é poeta, entra
sempre o seu tanto da vil prosa humana: é liga sem que se não lavra o mais
fino do seu ouro. A mulher não; a mulher apaixonada deveras sublima-se,
idealiza-se logo, toda ela é poesia; e não há dor física, interesse material, nem
deleites sensuais que a façam descer ao positivo da existência prosaica.
Estava eu nestas meditações, começou um rouxinol a mais linda e desgarrada
cantiga que há muito tempo me lembra de ouvir.
Era ao pé da dita janela!
E respondeu-lhe logo outro do lado oposto; e travou-se entre ambos um
desafio tão regular, em estrofes alternadas tão bem medidas, tão acentuadas e
perfeitas, que eu fiquei todo dentro do meu romance, esqueci-me de tudo
mais.

Lembrou-me o rouxinol de Bernardim Ribeiro, o que se deixou cair na água
de cansado.
O arvoredo, a janela, os rouxinóis... àquela hora, o fim da tarde... que faltava
para completar o romance? Um vulto feminino que viesse sentar-se àquele
balcão — vestido de branco — oh! branco por força... Afrente descaída sobre
a mão esquerda, o braço direito pendente, os olhos alçados ao céu... De que
cor os olhos? Não sei, que importa! é amiudar muito de mais a pintura, que
deve ser a grandes e largos traços para ser romântica, vaporosa, desenhar-se
no vago da idealidade poética...
— «Os olhos, os olhos...» disse eu pensando já alto, e todo no meu êxtase,
«os olhos... pretos.»
— «Pois eram verdes!»
— «Verdes os olhos... dela, do vulto da janela?»
— «Verdes como duas esmeraldas orientais, transparentes, brilhantes, sem
preço.»
— «Quê! pois realmente?... É gracejo isso, ou realmente há ali uma mulher,
bonita, e?... »
— «Ali não há ninguém — ninguém que se nomeie hoje, mas houve... Oh!
houve um anjo, um anjo que deve estar no céu.»
— «Bem dizia eu que aquela janela...»
— «É a janela dos rouxinóis.»
— «Que lá estão a cantar.»
— «Estão, esses lá estão ainda como há dez anos... Os mesmos ou outros,
mas a menina dos rouxinóis foi-se e não voltou.»
— «A menina dos rouxinóis! que história é essa? Pois deveras tem uma
história aquela janela?»
— «É um romance todo inteiro, todo feito como dizem os Franceses, e
conta-se em duas palavras.»
— «Vamos a ele. A menina dos rouxinóis, menina com olhos verdes! Deve
ser interessantíssimo. Vamos à história já.»
— «Pois vamos. Apeemo-nos e descansemos um bocado.»
Já se vê que este diálogo passava entre mim e outro dos nossos companheiros
de viagem. Apeámo-nos com efeito; sentámo-nos; e eis aqui a história da
menina dos rouxinóis como ela se contou.
É o primeiro episódio da minha Odisseia: estou com medo de entrar nele
porque dizem as damas e os elegantes da nossa terra que o português não é
bom para isto, que em francês que há outro não sei quê...
Eu creio que as damas que estão mal informadas, e sei que os elegantes que
são uns tolos; mas sempre tenho o meu receio, porque enfim, enfim, deles me
rio eu, mas poesia ou romance, música ou drama de que as mulheres não
gostem, é porque não presta.
Ainda assim, belas e amáveis leitoras, entendamo-nos: o que eu vou contar
não é um romance, não tem aventuras enredadas, peripécias, situações e
incidentes raros; é uma história simples e singela, sinceramente contada e sem
pretensão.
Acabemos aqui o capítulo em forma de prólogo, e a matéria do meu conto
para o seguinte.