CAPÍTULO XXXVIII

Jantar nos reais paços de Afonso Henriques. — Sautés e salmis. — Desce o A. à Ribeira
de Santarém em busca da tenda do Alfageme. — A espada do Condestável. —
Desapontamento. — O salão elegante. Dissipam-se as ideias arqueológicas. Os fósseis. —
Tudo melhor quando visto de longe. — O baile público. — Soirée de piano obrigado. —
Teatro. Desafinações da prima-dona. Sífilis incurável das traduções. Destempero dos
originais. — A xácara de rigor, o subterrâneo e o cemitério. — Sublime galimatias do
ridículo. — A bela e necessária palavra «galimatias». — Se as saudades matam. —
Perigo de aplicar o escalpelo ou a lente ao mais perfeito das coisas humanas. — De como a
lógica é a mais perniciosa de todas as incoerências.

Esperava-nos com efeito em casa do nosso bom hóspede, nos régios paços de
Afonso Henriques, um esplêndido jantar a que assistiram quase todos os
cavalheiros da terra. — Não quero dizer as notabilidades, por ser palavra
peralvilha a que tenho invencível zanga. — As iguarias de legítima escola
portuguesa, não menos saborosas e delicadas por aparecerem estremes de
sautés e salmis estrangeirados. Brilhavam sobretudo os produtos das duas
grandes vindimas rivais, do Ribatejo e Ribadouro. Foi largo e alegre o jantar.
Acabámos tarde, montámos logo a cavalo, e pela porta de Atamarma
descemos à Ribeira; era quase sol-posto quando lá chegámos.

É o subúrbio democrático da nobre vila, hoje o rico e o forte dela. Faz
lembrar aquelas aldeias que se criaram à sombra dos castelos feudais e que,
libertas, depois, da opressora proteção, cresceram e engrossaram em
substância e força: o castelo, esse está vazio e em ruínas.
Por aqui se faz quase todo o comércio da Estremadura e Beira com o
Alentejo. Os habitantes laboriosos e ativos conservam os antigos brios e
independência do carácter primitivo: é a única parte viva de Santarém.
Cruzámos a povoação em todos os sentidos, procurando rastrear algum
vestígio, confrontar algum sítio onde pudéssemos colocar, pela mais atrevida
suposição que fosse, a tenda do nosso alfageme com as suas espadas bem
«corregidas», as suas armaduras luzentes e bem postas — e o jovem
Nun''Álvares passeando ali por pé, ao longo do rio — como diz a crónica —
namorado daquela perfeição de trabalho, e dando a «correger» a bela espada
velha do seu pai ao rústico profeta que tantos vaticínios de grandeza lhe fez,
que o saudou condestável, conde de Ourém e salvador da sua pátria.
Nada pudemos descobrir com que a imaginação se iludisse sequer, que nos
desse, com mais ou menos anacronismo, uma leve base tão-somente para
reconstruirmos a gótica morada do célebre cutileiro-profeta que a história
herdou das crónicas romanescas, e hoje o romance outra vez reclama da
história.

Em Santarém há poucas casas particulares que se possam dizer
verdadeiramente antigas; na Ribeira, nenhuma. As emplastagens e replastagens
sucessivas têm anacronizado tudo. É uma feliz expressão do Sr. conde de
Raczynski bem aplicada por ele ao estado de quase todos os nossos
monumentos, esta de anacronismo.
Mas ali, na vila alta ou Marvila, no Santarém propriamente dito, há os
templos, os conventos, a cerca das muralhas que todavia conservam a
fisionomia histórica da terra; aqui nem isso há.
Voltei completamente desapontado da Ribeira, isto é, da sua pedra e cal: gosto
imenso da sua gente.
Outra surpresa de muito diferente género nos esperava à noite em Marvila, no
elegante salão da B. de A. com quem fomos tomar chá.
Em meio das ruínas e desconforto daqueles desertos e mortos pardieiros
circunstantes, ir encontrar uma casa em plena florescência de civilização e de
vida; ver a amabilidade e a elegância fazendo graciosamente as honras dela —
por mais que se devesse esperar — sempre espanta à primeira vista: parecia
golpe de varinha de condão.
Em tão agradável e jovem companhia todas as ideias arqueológicas se
desvaneceram, apesar de dois ou três fósseis que ali apareciam para se não
perder de todo a cor local talvez.

Largamente se conversou, de Lisboa principalmente, dos nossos mútuos
amigos, das festas do último Inverno, das probabilidades que se deviam
esperar do futuro.
Ralhámos muito da sociedade portuguesa; exaltámos Paris e Londres e não sei
se Pequim e Nanquim também, e concluímos que antes Tombucto do que a
secante capital do nosso pobre reino. E contudo estávamos com saudades
dela; e concessão daqui, concessão dali, viemos a que não era tão má terra
como isso.
Admirável condição da natureza humana, que tudo nos parece melhor e
menos feio quando visto de longe!
O baile público mais sensabor, detestável de barulho e confusão, em que, para
repousar os olhos num rosto conhecido e agradável, foi preciso furar por
entre centenas de cotovelos bárbaros que se não sabe donde vieram, levar
desalmadas pisadelas do dançante noviço, do deputado recém-chegado, e
botas notícias do novo diretor da Galocha — e, mais horrível que tudo! ver as
absurdas toilettes, os penteados fabulosos, as caras incríveis e as
antediluvianas figuras de tanta mulher feia e desastrada... pois esse mesmo
baile, quando já não é senão reminiscência que acorda no meio do enfado
ronceiro de uma terra de província, parece outro. As luzes, as flores, a música,
toda aquela animação lembra com prazer, o mais esquece, e involuntariamente
se descai um pobre homem a suspirar por ele.

A soirée mais maçante, de piano obrigado, com dueto das manas, polca das
primas e casino das tias velhas — recordada em iguais circunstâncias, também
já não acode à memória senão como uma reunião escolhida e íntima, de fácil e
doce trato... Oh! o verdadeiro prazer da sociedade.
Pois o teatro... Que se lembre alguém, na província, dos martírios que sofreu
o ouvido com os berros da prima-dona, as desafinações do tenor, ou com o
enfadonho ressonar daquela adormecida orquestra de S. Carlos!
A enjoativa tradução de uma comédia da Rua dos Condes, roída de incurável
sífilis, figura-se aveludada de todas as graças do estilo de Scribe.
E o destempero original de um drama plus quam romântico, laureado das
imarcescíveis palmas do Conservatório para eterno abrimento das nossas
bocas! Lá de longe aplaude-o a gente com furor, e esquece-se que fumou todo
o primeiro acto cá fora, que dormiu no segundo, e conversou nos outros, até à
infalível cena da xácara, do subterrâneo, do cemitério, ou quejanda, em que a
dama, soltos os cabelos e em penteador branco, endoidece de rigor, — o galã,
passando a mão pela testa, tira do profundo tórax os três ahs! do estilo, e
promete matar o seu próprio pai que lhe apareça — o centro perde o centro
de gravidade, o barbas arrepela as barbas... (*) e maldição, maldição, inferno!...
«Ah!, mulher indigna, tu não sabes que neste peito há um coração, que deste
coração saem umas artérias, destas artérias umas veias — e que nestas veias
corre sangue... sangue, sangue! Eu quero sangue, porque eu tenho sede, e é de
sangue... Ah! Que pensavas tu? Ajoelha, mulher, que te quero matar...
esquartejar, chacinar!» — E a mulher ajoelha, e não há remédio senão
aplaudir...
[(*)Nota do Autor: Centro e barbas são qualificações e nomes de empregos teatrais.]
E aplaude-se sempre.
E não é de mim que falo, que eu gosto disto: os outros é que se enfastiam e
cansam de tanta barafusta, sempre a mesma...
Mas enfim o que digo é que na província não há tal fastio, que esquece a
canseira, e que nem o sublime galimatias do ridículo dali se percebe.
Peço aos ilustres puritanos que, à força de sublimado quinhentista, têm
conseguido levar a língua à decrepitude para a curar das suas enfermidades
francesas, peço-lhes que me perdoem o galimatias, porque ele é muito mais
português que outra coisa. A célebre oração pro gallo Mathiae deu origem a
esta bela e expressiva palavra, que sim foi procriada em francês, mas hoje
precisamos cá muito mais dela que em parte nenhuma.
Volto já da digressão filológica: tornemos à ótica e à catóptrica.
Grande coisa é a distância!
E dizem que saudades que matam! Saudades dão vida; são a salvação de muita
coisa que, no seu pleno gozo e posse pacífica, pereceria de inanição ou
morreria da opressora moléstia da saciedade.
Por isso eu não gosto de meter o escalpelo no mais perfeito da construção
humana, nem de aplicar a lente ao mais fino e delicado do seu funcionar...
Vamos usando destas palavras que herdámos, sem meter louvados na herança;
não suceda descobrirmos que estamos mais pobres do que se pensava...
vamos repetindo estas frases que nos formularam os nossos antepassados sem
as analisar com muito rigor; não suceda vermos claro de mais que temos
passado a vida a mentir...
Detesto a filosofia, detesto a razão; e sinceramente creio que num mundo tão
desconchavado como este, numa sociedade tão falsa, numa vida tão absurda
como a que nos fazem as leis, os costumes, as instituições, as conveniências
dela, afetar nas palavras a exatidão, a lógica, a retidão que não há nas coisas, é
a maior e mais perniciosa de todas as incoerências.
Não falemos mais nisto, que faz mal, e acabemos aqui este capítulo.