Capítulo XIX

Guerra de postos avançados. Joaninha no bivaque. — De como os rouxinóis do vale se
disciplinaram a ponto de tocar a alvorada e a retreta. — Quem era a «menina dos
rouxinóis», e porque lhe puseram este nome. — A sentinela perdida e achada.

Guerra de postos avançados. Joaninha no bivaque. — De como os rouxinóis do vale se
disciplinaram a ponto de tocar a alvorada e a retreta. — Quem era a «menina dos
rouxinóis», e porque lhe puseram este nome. — A sentinela perdida e achada.

A velha disse aquelas últimas palavras com uma expressão de dor tão
resignada, mas tão desconsolada, que o frade olhou para ela comovido, e
sentiu as lágrimas escurecerem-lhe a vista.
Neste momento Joaninha, que passeava a alguma distância da casa na direção
de Lisboa, acudiu sobressaltada bradando: — «Avó, avó!... tanta gente que aí
vem! soldados e povo... homens e mulheres... tanta gente!»
Era a retirada de onze de Outubro.
— «Deus tenha compaixão de nós!» disse a velha. «O que será, padre?»
— «O que há de ser!» respondeu Fr. Dinis, «o pressentimento que se
verifica; o combate foi decisivo, os constitucionais vencem.»
Com efeito foram aparecendo as tropas que se retiravam, as gentes que
fugiam, e todo aquele confuso e doloroso espetáculo de uma retirada em
guerra civil...
Alguns feridos, que não podiam mais, ficaram na casa do vale entregues à
piedosa guarda e cuidado de Joaninha; dos outros tomou conta Fr. Dinis e os
acompanhou a Santarém.

As tropas constitucionais vinham em seguimento dos realistas, e dali a poucos
dias tinham o seu quartel-general no Cartaxo; D. Miguel fortificava-se em
Santarém, e a casa da velha era o último posto militar ocupado pelo seu
exército.

Não tardou muito que a força toda, todo o interesse da guerra se não
concentrasse naquele, já tão pacífico e ameno, agora tão desolado e turbulento
vale.

Eram os derradeiros dias do Outono, a natureza parecia tomar dó pelo
homem — dar triste e lúgubre decoração de cena ao sanguento drama de
destruição e de miséria que ali se ia concluir. As últimas folhas das árvores
caíam, o céu nublado e negro vertia sobre a terra apaulada torrentes grossas de
água, a cheia alagava os baixos, e as terras altas cobriam-se de ervas maninhas,
os trabalhos da lavoura cessavam, o gado e os pastores fugiam, e os soldados
de um e de outro campo cortavam as oliveiras seculares...
Tudo estava feio e torpe, tudo era ruína, desolação e morte em torno da casa
do vale, agora transformada em quartel e reduto militar.
E que era feito, no meio desta desordem, que era feito da nossa pobre velha,
da nossa interessante Joaninha?

Apenas se estabeleceu a posição dos dois exércitos, Fr. Dinis queria levá-las
para Santarém; mas não foi possível. Instâncias, rogos, ordem positiva, tudo
foi em vão. Pela primeira vez na sua vida, aquela mulher tímida, fraca e
irresoluta, soube ter vontade firme e própria.

— «Aqui nasci», dizia ela, «aqui vivi, aqui hei de morrer. Que importa
como?... Aqui as curtas alegrias, aqui as longas dores da minha vida têm
passado: onde hei de eu ir que possa viver ou morrer senão aqui? Esta casa
sei-a de cor, estas árvores conhecem-me, estes sítios são os últimos que vi, os
únicos de que me lembra: como hei de eu, velha e cega, ir fazer conhecimento
com outros para viver neles?... »

— «E Joaninha nessa idade... no meio dessa soldadesca!» sugeria o frade.
— «Joaninha» tornava ela «Joaninha é uma criança, e tem mais juízo, mais
energia de alma, mais saúde e mais força do que — mulheres não falemos —
do que a maior parte dos homens. Ficaremos aqui, padre, ficaremos aqui
melhor do que em Santarém podemos estar. Deus nos defenderá... »

Fr. Dinis cedeu: a mesma vaga e indeterminada esperança que animava a
velha, e que a prendia tão fortemente ali, não era estranha ao coração do
frade. Ela não ousava nem aludir de longe a essa esperança, mas sentia-se que
lá a tinha aninhada e escondida para um canto da alma... Aquele neto, aquele
filho da filha querida havia de vir ter à casa em que nascera... por ali havia de
passar, e mais dia menos dia... A velha, repito, nem aludia a tal esperança, mas
sentia-se que a tinha; percebeu-lha Fr. Dinis, e ou a partilhasse também ou
não se atrevesse a contrariar razões que lhe não davam, cedeu e calou-se.
O seu principal temor era a licenciosa soltura dos costumes militares; mas
estava Joaninha menos exposta por se acolher para uma praça de guerra como
Santarém era agora?

Brevemente se viu que a avó tinha acertado. A franca e ingénua dignidade de
Joaninha, o ar grave, a melancolia serena e bondosa da velha impuseram tal
respeito aos soldados, que — graças também à cooperação eficaz do
comandante do posto, um bom e honrado cavalheiro transmontano — elas
viviam tão seguras e quietas na pequena porção da casa que para si
reservaram, quanto em tais circunstâncias era possível viver. Fr. Dinis vinha
regularmente ao vale todas as sextas-feiras, e nenhum outro hábito das suas
vidas se interrompeu.

E pouco a pouco, os combates, as escaramuças, o som e a vista do fogo, o
aspeto do sangue, os ais dos feridos, o rosto desfigurado dos mortos — a
guerra, enfim, em todas as suas formas, com todo o seu palpitante interesse,
com todos os terrores, com todas as esperanças que a acompanham, se lhes
tornou uma coisa familiar, ordinária...

A tudo se habitua o homem, a todo o estado se afaz; e não há vida, por mais
estranha, que o tempo e a repetição dos actos lhe não faça natural.

Todavia de Carlos nem mais uma linha... Pobre velha!
Assim passaram meses, assim correu o Inverno quase todo, e já as
amendoeiras se toucavam das suas alvíssimas flores de esperança, já uma
depois de outra, iam renascendo as plantas, iam abrolhando as árvores; logo
vieram as aves trinando os seus amores pelos ramos... insensivelmente era
chegado o meio de Abril, estávamos em plena e bela Primavera.

A guerra parecia cansada, o furor dos combatentes quebrado; rumores de
intentadas transações giravam por toda a parte.

No o nosso vale as sentinelas dos dois campos opostos, costumadas já a verse
todos os dias, começavam a ver-se sem ódio: começaram por se dizer dos
pesados gracejos de guerra, acabaram por conversar quase amigavelmente.
Muita vez foi curioso ouvi-los, os soldados, discorrer sobre as altas questões
de Estado que dividiam o reino e o traziam revolto há tantos anos. Se as
tratavam melhor os do conselho nos seus gabinetes!

Joaninha que, pouco a pouco, se habituara àquele viver de perigos e
incertezas, de dia para dia lhe ia crescendo o ânimo, aguerrindo-se. Tudo se
afazia àquele estado: até os rouxinóis tinham voltado aos loureiros de ao pé da
casa, e como que disciplinados obedeciam aos toques de alvorada e de retreta,
acompanhando-os do seu cantar animado e vibrante.

A essas horas Joaninha era certa na sua janela — naquela antiga e elegante
janela renascença de que primeiro nos namorámos, leitor amigo, ainda antes
da conhecer a ela. Ali a viam as vedetas de ambos os exércitos, ali se
acostumaram a vê-la com o nascer e o pôr do Sol: ali, muda e queda horas
esquecidas, escutava ela o vago cantar dos seus rouxinóis, talvez absorta em
mais vagos pensamentos ainda...

E dali lhe puseram o nome da «menina dos rouxinóis», pelo qual era
conhecida em ambos os campos: significante e poético apelido com que a
saudavam os soldados de ambas as bandeiras!

E uns e outros respeitavam e adoravam a menina dos rouxinóis. Entre uns e
outros por tácita convenção parecia estipulado que aquela suave e angélica
figura pudesse andar livremente no meio das armas inimigas, como a pomba
doméstica e válida a que nenhum caçador se lembra de mirar.

Os costumes de guerra são menos soltos do que se pensa; no ânimo do
soldado há mais sentimentos delicados, nas suas formas há menos rudeza do
que se pensa. A farda é, sim, vaidosa e presumida, crê muito nos seus poderes
de sedução, mas não é brutal senão no primeiro ímpeto.

Joaninha pensava os feridos, velava os enfermos, tinha palavras de consolação
para todos, e em tudo quanto dizia e fazia era tão senhora, tinha tão grave
gentileza, um donaire tão nobre, que a amavam todos muito, mas
respeitavam-na ainda mais.

Fiada já neste respeito e estima geral, Joaninha fora estendendo, de dia a dia,
as suas excursões pelo vale. Ultimamente costumava ir, pelo fim da tarde, até
um pequeno grupo de álamos e oliveiras que ficava mais para o sul e perto do
lugar donde, à noite, se colocavam as derradeiras vedetas dos constitucionais.

Um dia, já quase posto o Sol, a tarde quente e serena — ou fosse que
adormeceu ou que as suas meditações a distraíram —, o certo é que os~
rouxinóis gorjeavam há muito nos loureiros da janela, e Joaninha não voltava.
Estabeleceram-se as vedetas de um lado e outro, deram-se todas as
disposições costumadas para a noite.

O oficial dos constitucionais, que andava colocando as suas sentinelas, tinha
vindo essa mesma tarde de Lisboa com um reforço de tropa. Pôs-se ele em
marcha com a sua gente, foi-a dispondo nos lugares convenientes, e chegava
enfim ao pé daquele grupo de árvores:
— «Silêncio!» disse ele «Alto! ali está um vulto.»
— «Não é ninguém,» respondeu um soldado que era dos antigos no posto:
«ninguém que importe; é a menina dos rouxinóis. Estou vendo que
adormeceu no seu poiso costumado.»

— «A menina dos rouxinóis! Que cantiga é essa que me cantas tu lá?»
O soldado deu a explicação popular do seu dito, mostrou a casa do vale, e
continuava encarecendo sobre os méritos e virtudes de Joaninha...

O oficial não o deixou acabar:
— «Para a retaguarda, e silêncio!»

Foi rapidamente postar, a alguma distância dali, duas sentinelas que lhe
faltavam; e ele entrou só no pequeno grupo de árvores.

Era Joaninha que estava ali, Joaninha que efetivamente dormia a sono solto.