Capítulo VI

Prova-se como o velho Camões não teve outro remédio senão misturar o maravilhoso da
mitologia com o do cristianismo. — Dá-se razão, e tira-se depois, ao padre José Agostinho.
— No meio destas disceptações académico-literárias, vem o A. A descobrir que para tudo é
preciso ter fé neste mundo. Diz-se neste mundo, porque, quanto ao outro, já era sabido. —
Os Lusíadas, o Fausto e a Divina Comédia. — Desgraça do Camões em ter nascido antes
do romantismo. — Mostra-se como a Estige e o Cocito sempre são melhores sítios que o
Inferno e o Purgatório. — Vai o A. em procura do marquês de Pombal, e dá com ele nas
ilhas Beatas do poeta Alceu. — Partida de whist entre os ilustres finados. — Compaixão
do marquês pelos pobres homens de Ricardo Smith e J. B. Say. — Resposta dele e da sua
luneta às perguntas peralvilhas do A. — Chegada a este mundo e ao Cartaxo.

O mais notável, e não sei se diga, se continuarei ao menos a dizer, o mais
indesculpável defeito que até aqui esgravataram críticos e zoilos na Ilíada dos
povos modernos, os imortais Lusíadas, é sem dúvida a heterogénea e
heterodoxa mistura da teologia com a mitologia, do maravilhoso alegórico do
paganismo, com os graves símbolos do cristianismo. A falar a verdade, e por
mais figas que a gente queira fazer ao padre José Agostinho — ainda assim!
ver o padre Baco revestido in pontificalibus diante de um retábulo, não me
lembra de que santo, dizendo o seu dominus vobiscum provavelmente a

algum acólito bacante ou coribante, que lhe responde o et cum spiritu tuo!...
não se pode; é uma que realmente... E então aquele famoso conceito com que
ele acaba, digno da Fénix Renascida:
O falso deus adora o verdadeiro!

Desde que me entendo, que leio, que admiro Os Lusíadas; enterneço-me,
choro, ensoberbeço-me com a maior obra de engenho que ainda apareceu no
mundo desde a Divina Comédia até ao Fausto...
O italiano tinha fé em Deus, o alemão no ceticismo, o português na sua pátria.
É preciso crer em alguma coisa para ser grande — não só poeta — grande
seja no que for. Uma Brízida velha que eu tive, quando era pequeno, era
famosa cronista de histórias da carochinha, porque sinceramente cria em
bruxas. Napoleão cria na sua estrela, La Fayette creu na república-rei de Luís
Filipe; e, para que ousemos também celebrare domestica facta, todos os
nossos grandes homens ainda hoje creem, um na junta do crédito, outro nas
classes inativas, outro no mestre Adonirão, outro finalmente na beleza e
realidade do sistema constitucional que felizmente nos rege.
Mas essas crenças são para os que se fizeram grandes com elas. para um pobre
homem, o que lhe fica para crer? Eu, apesar dos críticos, ainda creio no nosso
Camões: sempre cri.

E contudo, desde a idade da inocência em que tanto me divertiam aquelas
batalhas, aquelas aventuras, aquelas histórias de amores, aquelas cenas todas,
tão naturais, tão bem pintadas — até esta fatalidade da experiência, idade
prosaica em que as mais belas criações do espírito parecem macaquices diante
das realidades do mundo, e os nobres movimentos do coração quimeras de
entusiastas — até esta idade de saudades do passado e esperanças no futuro,
mas sem gozos no presente — em que o amor da pátria (também isto será
fantasmagoria?), e o sentimento íntimo do belo me dão na leitura de Os
Lusíadas outro deleite diverso, mas não inferior ao que noutro tempo me
deram — eu senti sempre aquele grande defeito do nosso grande poema: e
nunca pude, por mais que buscasse, achar-lhe, justificação não digo — nem
sequer desculpa.

Mas até morrer aprender, diz o adágio: e assim é. E também é aforismo de
moral, aplicável outrossim a coisas literárias: que para a gente achar a desculpa
aos defeitos alheios, é considerar — é pôr-se uma pessoa nas mesmas
circunstâncias, ver-se envolvido nas mesmas dificuldades.
Aqui estou eu agora dando toda a desculpa ao pobre Camões, com vontade
do justificar, e pronto (assim são as caridades deste mundo) a sair a campo de
lança em riste e a quebrá-la com todo o antagonista que por aquele fraco o
atacar. — E porque será isto? Porque chegou a minha hora; e — si parva licet
componere magnis (a bossa proeminente hoje é a latina), aqui me acho eu
com este o meu capítulo nas mesmas dificuldades em que o nosso bardo se
viu com o seu poema.

Já preveni as observações com o texto acima: bem sei quem era Camões, e
quem sou eu; mas trata-se da entalação, que é a mesma apesar da diferença
dos entalados. O autor dos Lusíadas viu-se entalado entre a crença do seu país
e as brilhantes tradições da poesia clássica que tinha por mestra e modelo.
Não havia ainda então românticos nem romantismo, o século estava muito
atrasado. As odes de Vítor Hugo não tinham ainda desbancado as de Horácio;
achavam-se mais líricos e mais poéticos os esconjuros de Canídia do que os
pesadelos de um enforcado no oratório; chorava-se com as Tristes de Ovídio,
porque se não lagrimejava com as meditações de Lamartine. Andrómaca
despedindo-se de Heitor às portas de Tróia, Príamo suplicante aos pés do
matador do seu filho, Helena lutando entre o remorso do seu crime e o amor
de Páris, não tinham ainda sido eclipsados pelas declamações da mãe Eva às
grades do paraíso terreal. O combate de Aquiles e Heitor, das hostes argivas
com as troianas, não tinha sido metido num chinelo pelas batalhas campais
dos anjos bons e dos anjos maus à metralhada por essas nuvens. Dido
chorando por Eneias não tinha sido reduzida a donzela choramingas de
Alfama carpindo pelo seu Manel que vai para a Índia...
Realmente o século estava muito atrasado: Milton não se tinha ainda sentado
no lugar de Homero, Shakespeare no de Eurípides, e lord Byron acima de
todos: enfim não estava ainda anglizado o mundo, portanto a marcha do
intelecto no mesmo terreno, é tudo uma miséria.

Ora pois, o nosso Camões, criador da epopeia, e — depois do Dante — da
poesia moderna, viu-se atrapalhado; misturou a sua crença religiosa com o seu
credo poético e fez, tranchons le mot, uma sensaboria.
E aqui direi eu com o vate Elmano:
Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu quando os cotejo!

Vou fazer outra sensaboria eu, neste belo capítulo da minha obra-prima. Que
remédio! Preciso falar com um ilustre finado, preciso de evocar a sombra de
um grande génio que hoje habita com os mortos. E onde irei eu? Ao Inferno?
Espero que a divina justiça se apiedasse dele na hora dos últimos
arrependimentos. Ao Purgatório, ao empírio? Apesar do exemplo da Divina
Comédia, não me atrevo a fazer comédias com tais lugares de cena — e não
sei, não gosto de brincar com essas coisas.
Não lhe vejo remédio senão recorrer ao bem parado dos Elíseos, do Estige,
do Cocito e o seu termo: são terrenos neutros em que se pode parlamentar
com os mortos sem comprometimento sério, e...
Eis-me aí no erro de Camões — e nas unhas dos críticos; e as zagunchadas a
ferver em cima de mim, que fiz, que aconteci.
Mas, senhores, ponderem, venham cá: o que há de um homem fazer? O
Dante não sei que gíria teve, que batizou Públio Virgílio Marão para lhe servir
de cicerone nas regiões do Inferno, do Paraíso e do Purgatório cristão, e teve
tão boa fortuna que nem o queimou a Inquisição nem o descompôs a Crusca,
nem sequer o mutilaram os censores, nem o perseguiram delegados por abuso
de liberdade de imprensa, nem o mandaram para os dignos pares... Não se
tinham ainda descoberto as mangações liberais que se usam hoje: e as cartas
que o povo tinha era a liberdade ganha e sustentada à ponta da espada com
muito coração e poucas palavras, muito patriotismo, poucas leis... e menos
relatórios. Não havia em Florença nem gazeta para louvar as tolices dos
ministros, nem ministros para pagar as tolices da gazeta.
O Dante foi proscrito e exilado, mas não se ficou a escrever, deu catanada que
se regalou nos inimigos da liberdade da sua pátria.
Quem dera cá um batalhão de poetas como aquele!
Que fosse porém um triste vate de hoje escrever no século das luzes o que
escrevia o Dante no século das trevas! Os próprios filósofos gritavam: Que
escândalo! Ateus professos clamavam contra a irreverência; gentes que não
têm religião, nem a de Mafoma, bradavam pela religião: entravam a pôr
carapuças nas cabeças uns dos outros, caíam depois todos sobre o poeta, e —
se o não pudessem enforcar, pelo menos declaravam-no republicano, que
dizem eles que é uma injúria muito grande.

Nada! viva o nosso Camões e o seu maravilhoso mistifório; é a mais cómoda
invenção deste mundo: vou-me com ela, e ralhe a crítica quanto quiser.
Quero procurar no reino das sombras não menor pessoa que o marquês de
Pombal: tenho que lhe fazer uma pergunta séria antes de chegar ao Cartaxo. E
nós já vamos por entre os ricos vinhedos que o circundam com uma zona de
verdura e alegria. Depressa o ramo de ouro que me abra ao pensamento as
portas fatais! depressa a untuosa sopetarra com que hei de atirar às três
gargantas do canzarrão! Vamos...

Mas em que distrito daquelas regiões acharei eu o primeiro-ministro de el-rei
D. José? Por onde está Ixion e Tântalo, por onde demora Sísifo e outros
maganões que tais? Não; esse é um bairro muito triste, e arrisca-se a ter por
administrador algum escandecido que me atice as orelhas.
Nos Elíseos com o pai Anquises e outros barbaças clássicos do mesmo jaez?
Eu sei? Também isso não. há de ser naquelas ilhas bem-aventuradas de que
fala o poeta Alceu e onde ele pôs a passear, por eternas verduras, as almas
tiranicidas de Harmódio e Aristógiton...

Oh! esta agora!... Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras,
marquês de Pombal, de companhia com os seus inimigos políticos!... Aí é que
se enganam; não há amigos nem inimigos políticos em se largando o mando e
as pretensões a ele. Ora, passados os umbrais da eternidade, é de fé que se não
pensa mais nisso. C. J. X., que morreu a assinar uma portaria, já tinha largado
a pena quando chegou ali pelos Prazeres (*) ; quanto mais!...
[(*) Nota do Autor: Um dos dois cemitérios de Lisboa — seja dito para inteligência
do leitor provinciano

— chama-se «dos Prazeres», por uma ermida que ali existia com esta invocação desde
antes do terreno ter o presente destino. É notável a coincidência do nome.]
O homem há de estar nas ilhas Beatas. Vamos lá...

E ei-lo ali: lá está o bom do marquês a jogar o whist com o barão de Bidefeld,
com o imperador Leopoldo e com o poeta Dinis. A partida deve de ser
interessante, talvez aposta essa gente toda — esses manes todos que estão à
roda. Que cara que fez o marquês para um finadinho que lhe foi meter o nariz
nas cartas! Quem havia de ser! O intrometido de M. de Talleyrand. Estava-lhe
caindo. Mas não viu nada: o nobre marquês sempre soube esconder o seu jogo.

A mim é que ele já me viu. — «Que diz? Ah!... Sim senhor, sou português; e
venho fazer uma pergunta a V. Exa., esclarecer-me sobre um ponto
importante.»

Deitou-me a tremenda luneta.
— «Para que mandou V. Exa. arrancar as vinhas do Ribatejo?»
Apertou a luneta no sobrolho e sorriu-se.

— «Elas aí estão centuplicadas, que até já invadiram o pinhal de Azambuja.
Fez V. Exa. um despotismo inútil, e agora...»

— «Agora quem bebe por lá todo esse vinho?»

Não sabia o que lhe havia de responder. Ele sacudiu a cabeleira de anéis,
virou-me as costas, deu o braço a Colbert, passou por pé de Ricardo Smith de
J. Baptista Say, que estavam a disputar, encolheu os ombros em ar de
compaixão, e foi-se por uma alameda muito viçosa que ia por aqueles
deliciosos jardins dentro, e sumiu-se da nossa vista.
Eu surdi cá neste mundo, e achei-me em cima da azémola, ao pé do grande
café do Cartaxo.