CAPÍTULO XXX

História de Santa Iria segundo os cronistas e segundo o romance popular.

A milagrosa Santa Iria — Santa Irene — que deu o seu nome a Santarém,
donzela nobre, natural da antiga Nabância (Tomar), e freira no convento
dúplex (De Frades e Freiras) beneditino que pastoreava o santo abade Célio,
floresceu pelos meados do sétimo século. Namorou-se dela extremosamente o
jovem Britaldo, filho do conde ou cônsul Castinaldo que governava aquelas
terras, e não podendo conseguir nada da sua virtude, caiu enfermo de moléstia
que nenhum físico acertava a conhecer, quanto mais a curar
.
É sabido que a mais santa lhe não pesa de que estejam a morrer por ela; e,
mais ou menos, sempre simpatiza com as vítimas que faz.
Santa Iria resolveu consolar o pobre Britaldo; e já que mais não podia pela sua
muita virtude, quis ver se lhe tirava aquela louca paixão e o convertia. Saiu,
uma bonita manhã, do seu convento — que não guardavam ainda as freiras
tão absoluta e estreita clausura — e foi-se a casa do namorado Britaldo.
Consolou como mulher e ralhou como santa, e por fim, impondo-lhe na
cabeça as lindas e benditas mãos, num instante o sarou de todo achaque do
corpo; e se lhe não curou o da alma também, pelo menos lho adormentou,
que parecia acabado.
Mas como o Demo, em chegando a entrar num corpo humano, parece que
não sai dele senão para se ir meter noutro; tão depressa o inimigo deixou ao
pobre Britaldo, como logo se foi encaixar em não menor personagem do que
o monge Remígio, que era o mestre e diretor da bela Iria.
Arde o frade em concupiscência, e não obtendo nada com rogos e lamentos,
jurou vingar-se. Disfarçou porém, fingiu-se emendado, e deu-lhe, quando ela
menos esperava, uma bebida da sua diabólica preparação, que apenas a santa a
tinha tomado, lhe apareceram logo e continuaram a crescer todos os sinais da
mais aparente maternidade.
Corre a fama do suposto estado da donzela, chovem as injúrias e os insultos
dos que mais a tinham respeitado até então. E Britaldo, que se julga
escarnecido pela hipocrisia daquela mulher artificiosa, em vez da esquecer
com desprezo — sente reviver-lhe, se não tão pura, muito mais ardente, toda
a antiga paixão.
Tão misterioso é o coração do homem! — tão vil! dirão os ascéticos — tão
inexplicável! direi eu com os mais tolerantes.
Novas tentativas, promessas, ameaças do furioso amante... A santa resiste a
tudo, forte na sua virtude.
Costumava a devota donzela ir todas as noites para uma oculta lapa que jazia
no fim da cerca e junto ao rio Nabão, para ali estar mais só com Deus, e
desabafar com Ele à sua vontade. Soube-o Britaldo, espreitou a ocasião e ali a
fez apunhalar por um seu criado cujo nome a legenda nos conservou para
maior testemunho de verdade: chamava-se Banam.
Banam! é um verdadeiro nome de melodrama.
Morta a inocente, Banam despiu-lhe o hábito e lançou o corpo ao rio, que
depressa a levou às arrebatadas correntes do Zêzere em que desagua; e logo
este ao Tejo — que em frente da antiga Scalabicastro lhe deu sepultura nas
suas louras areias, para maior glória da santa e perpétua honra da nobilíssima
vila que hoje tem o seu nome.
Mas enquanto ia navegando o corpo da santa, teve Célio, o abade do
convento, uma revelação que lhe descobriu a verdade e os milagres do caso; e
comunicando-a logo aos monges e ao povo de Nabância, saiu com todos de
cruz alçada, e foi por esses campos da Golegã fora, até chegar à ribeira de
Santarém. Aí benzendo as águas do rio, estas se retiraram corteses e deixaram
ver o sepulcro que era de fino alabastro, obrado à maravilha pelas mãos dos
anjos.
Chegaram ao pé do tumulo, abriram-no, viram e tocaram o corpo da santa,
mas não o puderam tirar, por mais diligências que fizeram. Conheceu-se que
era milagre; e contentando-se de levar relíquias dos cabelos e da túnica,
voltaram todos para a sua terra.
As águas tornaram a juntar-se e a correr como dantes, e nunca mais se abriram
senão daí a seis séculos e meio, quando a boa rainha Santa Isabel, mulher de
el-rei D. Dinis, tão fervorosas orações fez ao pé do rio pedindo à santa que
lhe aparecesse, que o rio tornou a abrir-se como o mar Vermelho à voz de
Moisés, dizem os devotos cronistas, e patenteou o bendito sepulcro.
Entrou a rainha a pé enxuto pelo rio dentro, seguida do seu real esposo e de
toda a sua corte; mas por mais que rezasse ela, e que trabalhassem os outros
com todas as forças humanas, não puderam abrir o túmulo; quebraram todas
as ferramentas, era impossível. Desenganado el-rei de que um poder sobrehumano
não permitia que ele se abrisse, mandou a toda a pressa levantar um
padrão muito alto sobre o mesmo túmulo, e tão alto que o rio na maior
enchente o não pudesse cobrir.
O rio esperou com toda a paciência que os pedreiros acabassem, e quando viu
que podia continuar a correr, deu aviso, retiraram-se todos, tornaram a juntarse
as águas e o padrão ficou sobressaindo por cima delas.
Passaram mais três séculos e meio; e no ano de 1644 a câmara de Santarém
mandou refazer de cantaria lavrada o dito marco ou pedestal que não era
senão de alvenaria, e pôr-lhe em cima a imagem da santa.
Ainda lá está, assaz mal cuidado contudo; lá o vi com estes olhos pecadores
no corrente mês de Julho de 1843. Mas, sem milagre nem orações, o rio tinhase
retirado,
havia muito, para um cantinho do seu leito, e o padrão estava
perfeitamente em seco, e em seco está todo o ano até começarem as cheias.
Tal é, em fidelíssimo resumo, a história da Santa Iria dos livros.
A das cantigas é, como se viu, muito outra e muito mais simples, conta-se em
duas palavras. A santa está em casa dos seus pais; um cavaleiro desconhecido,
a quem dão pousada uma noite, levanta-se por horas mortas, rouba a
descuidada e inocente donzela, foge a todo o correr do seu cavalo, e chegado
para um descampado dali muito longe, pretende fazer-lhe violência... A santa
resiste, ele mata-a. Dali a anos passa por aí o indigno cavaleiro, vê uma linda
ermida levantada no próprio sítio onde cometeu o crime, pergunta de que
santa é, dizem-lhe que é de Santa Iria. Ele cai de joelhos a pedir perdão à
santa, que lhe lança em rosto o seu pecado e o amaldiçoa.
E acabou a história.
Seria o povo que se esqueceu nas suas tradições, ou os frades que aumentaram
nas suas escrituras? Pois a legenda monástica é realmente bela e cheia de
poesia e romance, coisa que o povo não costuma desprezar.
É difícil de explicar-se este fenómeno, interessantíssimo para qualquer
observador não vulgar, que nestas crenças do comum, nestas antigualhas,
desprezadas pela soberba filosofia dos néscios, quer estudar os homens e as
nações e as idades onde eles mais sinceramente se mostram e se deixam
conhecer.
A extrema simplicidade do romance ou xácara de Santa Iria, o ser ele, dentre
todos os que andam na memória do nosso povo, o mais geralmente sabido e
mais uniformemente repetido em todos os distritos do reino, e com poucas
variantes nas palavras, nenhuma no contexto, me faz crer que esta seja das
mais antigas composições não só da nossa língua, mas de toda a Península. A
frase tem pouco sabor antigo: este é um daqueles poemas quase aborígenes
que a tradição tem vindo entregando, e ao mesmo tempo traduzindo, de pais a
filhos insensivelmente; e também não é por certo dos que desceram do
palácio às choupanas e fugiram da cidade para as aldeias, como em muitos
outros se conhece: este visivelmente nasceu nos arraiais, nos oragos dos
campos, e por lá tem vivido até agora.
A forma métrica da composição é a que a frase didática das Espanhas chamou
romance em endichas. Eu, adotando para ele, mais que para a forma ordinária
do metro octossílabo, a teoria do engenhoso filólogo alemão, Depping, tão
benemérito da nossa literatura peninsular, creio que estes são verdadeiros
versos de doze sílabas, e que as coplas não constam senão de dois versos cada
uma, segundo a óbvia significação da palavra. O povo cantando não separa os
hemistíquios destes versos como fazem os que os escrevem: e ao contrário,
nos romances da medida mais comum, o canto popular reparte distintamente
cada membro de oito sílabas sobre si.
Não sei se me engano, mas desconfio que as quatro coplas últimas, em que
muda completamente a rima, sejam aditamento posterior feito à cantiga
original. Todavia estes oito versos aparecem, com ligeiras variantes, em toda a
parte.