CAPÍTULO XLV

Carta de Carlos a Joaninha: continua.
Laura não era alta nem baixa, era forte sem ser gorda, e delicada sem magreza.
Os olhos de um cor-de-avelã diáfano, puro, aveludado, grandes, vivos, cheios
de tal majestade quando se iravam, de tal doçura quando se abrandavam, que é
difícil dizer quando eram mais belos. O cabelo quase da mesma cor tinha, para
além disso, um reflexo dourado, vacilante, que ao sol resplandecia, ou antes,
relampejava, — mas a espaços, não era sempre, nem em todas as posições da
cabeça: — cabeça pequena, modelada no mais clássico da estatuária antiga,
poisada sobre um colo de imensa nobreza, que harmonizava com a perfeição
das linhas dos ombros.
A cintura breve e estreita, mas sem exageração, via-se que o era assim por
natureza e sem a menor contrafeição de arte. O pé não tinha as exiguidades
fabulosas da nossa Península, era proporcionado como o da Vénus de
Médicis.
Tenho visto muita mulher mais bela, algumas mais adoráveis, nenhuma tão
fascinante.
Fascinante é a palavra para ela.
O rosto oval e perfeitamente simétrico, pálido; só os beiços eram vermelhos
como a rosa de cor mais viva.
A expressão de toda esta figura é que se não descreve. A boca breve e fina
sorria pouco; mas quando sorria, oh!...
Vê-la num baile, vestida e calçada de branco, cingida com um cinto de
vidrilhos pretos — toilette inalterável para ela desde certa época — sem mais
ornato, sem mais flores, apenas um farto fio de pérolas derramando-se-lhe
pelo colo — era ver alguma coisa de superior, de mais sublime que uma
simples mulher.
Tal era Laura, Laura que eu amei quanto podia e sabia amar. Era pouco, sei-o
agora; então parecia-me infinito.
Disse-lho a ela, disse-lho um dia que passeávamos sós, e depois de andarmos
horas e horas esquecidas, sem trocar uma frase. Pensávamos, eu nela, ela não
sei em quê.
Seria em mim?
Seria mas não mo confessou.
E ouviu-me sem dizer palavra, sem olhar para mim uma só vez, sem fugir
com a mão que lhe eu apertava, que lhe beijava, e que sentia fria e húmida nas
minhas que escaldavam.
Era tarde, dirigimo-nos para casa. À porta disse-me: «Não entre!»; e vi-a
banhada em lágrimas. Quis segui-la, fez-me um gesto imperioso que me
confundiu. Pela primeira vez, depois de tanto tempo, fui só, triste e
melancólico para a minha pobre habitação, onde passei a noite.
Quando era madrugada quis-me deitar. Não dormi.
No dia seguinte recebi uma carta de Júlia: assim se chamava a mais velha, a
mais sensível e a mais carinhosa das três irmãs.
O bilhete parecia indiferente; não continha senão palavras usuais, pedia-me
que fosse almoçar com ela... não falava nas irmãs.
Senti que era chegada a minha hora, pareceu-me que ia ser expulso daquele
Éden de inocência em que tinha vivido. A letra de Júlia, uma letra linda,
perfeita, natural, figurava-se-me um agregado de sinais cabalísticos terríveis
que encerravam o mistério da minha condenação.
Vesti-me, fui, achei-me só com Júlia no parlour elegante do seu exclusivo uso.
Era um pequeno gabinete de estudo, ornado somente de umas étagères com
livros e músicas, uma harpa e um cavalete.
Sobre o cavalete estava o meu retrato esboçado, na estante da harpa uma
romança francesa a que eu tinha feito letras portuguesas...
A urna assoviava sobre a mesa, Júlia fazia o chá e não parecia atender a mais
nada.
É preciso que te descreva a pequena Júlia — Julieta como nós lhe
chamávamos, — nós, as duas irmãs e eu que rivalizávamos a qual lhe havia de
querer mais...
Oh! que saudade e que remorso para toda a minha vida nestas recordações de
fraternal intimidade!
Júlia era pequena, delicadíssima, propriamente infantina no rosto, na figura, na
expressão e no hábito de toda a sua encantadora e diminutiva pessoa.
Nenhuma inglesa, desde o tempo da rainha Bess, teve pé e ancle mais
delicado. Nenhuma, desde o rei Alfredo, se ocupou tão elegantemente dos
elegantes cuidados de um interior britânico — gentil quadro de «género»
como não há outro.
Lady Júlia R. era a mais pequena e a mais bonita súbdita britânica que eu creio
que tenha existido. Vista à lua, no meio do seu parque, volteando por entre os
raros exóticos que no curto Verão inglês se expõem ao ar livre, facilmente se
tomava pela bela soberana das fadas realizando aquela preciosa visão de
Shakespeare, o «Midsummer night''s dream».
Os seus olhos de azul-celeste, sempre húmidos e sempre doces, os cabelos de
um claro e assedado castanho todos soltos em anéis à roda da cabeça e caindo
pelos ombros, espalhando-se pelo rosto, que era uma lida contínua para os
tirar dos olhos, um corpo airoso, uma boca de beijar, os dentes miúdos,
alvíssimos e apertados, a mão pequena, estreita e de cera — tudo isto fazia de
Júlia um tipo ideal de bondade, de candura, de inocência angélica.
E era um anjo... Oh se era!
Contemplei-a muito tempo em silêncio: ela sorria-me tristemente de vez em
quando, mas não falava. Enfim almoçámos, levaram o trem. Ela disse à sua
aia:
— «Phebe, eu estou só com Carlos; e quero estar só. Em casa para
ninguém.»
— «Sim, a minha senhora.» Resposta obrigada do criado inglês a tudo.
E ficámos sós completamente.