Capítulo XI

Trata-se do único privilégio dos poetas que também os filósofos quiseram tirar, mas não lhes
foi concedido; aos romancistas sim. — Exemplo de Aristóteles e Anacreonte. — O A.,
tendo declarado no capítulo nono desta obra que não era filósofo, agora confessa, quase
solenemente, que é poeta, e pretende manter-se, como tal, no seu direito. — De como S. M.
El-Rei de Dinamarca tinha menos juízo do que Yorick, o seu bobo. — Doutrina deste.
Funda nela o A. O seu admirável sistema de fisiologia e patologia transcendente do coração.
Por uma dedução apertada e cerrada da mais constrangente lógica vem a dar-se no motivo
porque foi concedido aos poetas o direito indefinido de andarem sempre namorados. —
Aplicam-se todas estas grandes teorias à posição atual do A. no momento de entrar no
prometido episódio no capítulo antecedente. — Modéstia e reserva delicada o obrigam a
duvidar da sua qualificação para o desempenho: pede votos às amáveis leitoras. Decide-se
que a votação não seja nominal, e porquê. — Dido e a mana Anica. — Entra-se enfim na
prometida história. — De como a velha estava à porta a dobar, e embaraçando-se-lhe a
meada, chamou por Joaninha, a sua neta.

Este é o único privilégio dos poetas: que até morrer podem estar namorados.
Também não lhes conheço outro. A mais gente tem as suas épocas na vida,
fora das quais lhes não é permitido apaixonarem-se. Pretenderam acolher-se
ao mesmo benefício os filósofos, mas não lhes foi consentido pela rainha
Opinião, que é soberana absoluta e juiz supremo de que se não apela nem
agrava ninguém.
Anacreonte cantou, de cabelos brancos, os seus amores, e não se estranhou.
Aristóteles mal teria a barba ruça quando foi daquele seu último namoro
porque ainda hoje lhe apouquentam a fama.
Ora eu filósofo seguramente não sou, já o disse; de poeta tenho o meu pouco,
padeci, a falar a verdade, os meus ataques assaz agudos dessa moléstia, e bem
pudera desculpar-me com eles de certas fragilidades de coração... Mas não
senhor, não quero desculpar-me como quem tem culpa, senão defender-me
como quem tem razão e justiça por si.
Estou, com o meu amigo Yorick, o ajuizadíssimo bobo de el-rei de
Dinamarca, o que alguns anos depois ressuscitou em Sterne com tão elegante
pena, estou sim. «Toda a minha vida» diz ele «tenho andado apaixonado já por
esta já por aquela princesa, e assim hei de ir, espero, até morrer, firmemente
persuadido que se algum dia fizer uma ação baixa, mesquinha, nunca há de ser
senão no intervalo de uma paixão à outra: nesses interregnos sinto fechar-seme
o coração,
esfria-me o sentimento, não acho dez réis que dar para um
pobre... por isso fujo às carreiras de semelhante estado; e mal me sinto aceso
de novo, sou todo generosidade e benevolência outra vez».
Yorick tem razão, tinha muito mais razão e juízo que o seu augusto amo el-rei
de Dinamarca. Por pouco mais que se generalize o princípio, fica indisputável,
inexcepcionável para sempre e para tudo. O coração humano é como o
estômago humano, não pode estar vazio, precisa de alimento sempre: são e
generoso só as afeições lho podem dar; o ódio, a inveja e toda a outra paixão
má é estímulo que só irrita, mas não sustenta. Se a razão e a moral nos
mandam abster destas paixões, se as quimeras filosóficas, ou outras, nos
vedarem aquelas, que alimento dareis ao coração, que há de ele fazer? Gastarse
sobre si mesmo, consumir-se... Altera-se a vida, apressa-se a dissolução
moral da existência, a saúde da alma é impossível.
O que pode viver assim, vive para fazer mal ou para não fazer nada.
Ora o que não ama, que não ama apaixonadamente, o seu filho, se o tem, a
sua mãe, se a conserva, ou a mulher que prefere a todas, esse homem é o tal, e
Deus me livre dele.
Sobretudo que não escreva: há de ser um maçador terrível. Talvez seja este o
motivo da indefinida permissão que é dada aos poetas de andarem namorados
sempre.
O romancista goza do mesmo foro e tem as mesmas obrigações. É como o
privilégio de desembargador que tiravam dantes os fidalgos, quando ser
desembargador valia alguma coisa... e tanta coisa!
Como hei de eu então, eu que nesta grave Odisseia das minhas viagens tenho
de inserir o mais interessante e misterioso episódio de amor que ainda foi
contado ou cantado, como hei de eu fazê-lo, eu que já não tenho que amar
neste mundo senão uma saudade e uma esperança — um filho no berço e
uma mulher na cova?...
Será isto bastante? Dizei-o vós, ó benévolas leitoras, pode com isto só
alimentar-se a vida do coração?
— Pode sim.
— Não pode, não.
— Estão divididos os sufrágios: peço votação.
— Nominal?
— Não, não.
— Porquê?
— Porque há muita coisa que a gente pensa e crê e diz assim a conversar,
mas que não ousa confessar publicamente, professar aberta e nomeadamente
no mundo...
Ah! sim... ele é isso? Bem as entendo, minhas senhoras: reservemos sempre
uma saída para os casos difíceis, para as circunstâncias extraordinárias. Não é
assim?
Pois o mesmo farei eu.
E posto que hoje, faz hoje um mês, em tal dia como hoje, dia para sempre
assinalado na minha vida, me aparecesse uma visão, uma visão celeste que me
surpreendeu a alma por um modo novo e estranho, e do qual não podia dizer
decerto como a rainha Dido à mana Anica:

Reconheço o queimar da chama antiga,
Agnosco veteris vestigia flammae;

Posto que a visão passou e desapareceu... mas deixou gravada na alma a
certeza de que... Posto que seja assim tudo isto, a confidência não passará
daqui, minhas senhoras: tanto basta para se saber que estou suficientemente
habilitado para cronista da minha história, e a minha história é esta.
Era no ano de 1832, uma tarde de Verão como hoje calmosa, seca, mas o céu
puro e desabafado. À porta dessa casa entre o arvoredo, estava sentada uma
velhinha bem passante dos setenta, mas que o não mostrava. Vestia uma
espécie de túnica roxa, que apertava na cintura com um largo cinto de couro
preto, e que fazia ressair a alvura da cara e das mãos longas, descarnadas, mas
não ossudas como usam de ser mãos de velhas; toucava-se com um lenço da
mais escrupulosa brancura, e posto de um jeito particular a modo de toalha de
freira; um mandil da mesma brancura, que tinha no peito e que afetava, não
menos, a forma de um escapulário de monja, completava o estranho vestuário
da velha. Estava sentada numa cadeira baixa do mais clássico feitio:

textualmente parecia a que serviu de modelo a Rafael para o seu belo quadro
da Madonna della Sedia.
Como nota histórica e ilustração artística, seja-me permitido juntar aqui em
parêntesis que, não há muito, vi em casa de um sapateiro remendão, em
Lisboa, no Bairro Alto, uma cadeira tal e qual; torneados piramidais, simples,
sem nobreza, mas elegantes.
Tornemos à velhinha.
Estava ela ali sentada na dita cadeira, e diante de si tinha uma dobadoira, que
se movia regularmente com o tirar do fio que lhe vinha ter às mãos e enrolarse
no já crescido novelo.
Era o único sinal de vida que havia em todo esse quadro. Sem isso, velha,
cadeira, dobadoira, tudo pareceria uma graciosa escultura de António Ferreira

(*) ou um daqueles quadros tão verdadeiros do morgado de Setúbal.

[(*) Nota do Autor: António Ferreira, que viveu no fim do século passado, princípio
deste, modelava em barro cru com a mesma graça e naturalidade flamenga com que pintava
o morgado de Setúbal: as suas pequenas figurinhas são tão estimadas pelos entendedores
como os melhores biscuits de Sèvres e da Saxónia antiga.]


O movimento bem visível da dobadoira era regular, e respondia ao
movimento quase impercetível das mãos da velha. Era regular o movimento,
mas durava um minuto e parava, depois ia seguindo outros dois, três minutos,
tornava a parar: e nesta regularidade de intermitências se ia alternando como o
pulso de um que treme sezões.

Mas a velha não tremia, antes se tinha muito direita e aprumada: o parar do
seu lavor era porque o trabalho interior do espírito dobrava, de vez em
quando, de intensidade, e lhe suspendia todo o movimento externo. Mas a
suspensão era curta e mesurada; reagia a vontade, e a dobadoira tornava a andar.
Os olhos da velha é que tinham uma expressão singular: voltada para o
poente, não os tirou dessa direção nem os inclinava de modo algum para a
dobadoira que lhe ficava um pouco mais à esquerda. Não pestanejavam, e o
azul das suas pupilas, que devia ter sido brilhante como o das safiras, parecia
desbotado e sem lume.

O movimento da dobadoira estacou agora de repente, a velha poisou
tranquilamente as mãos e o novelo no regaço, e chamou para dentro da casa:

— «Joaninha?»
Uma voz doce, pura, mas vibrante, destas vozes que se ouvem rara vez, que
retinem dentro da alma e que não esquecem nunca mais, respondeu de dentro:
— «Senhora? Eu vou, a minha avó, eu vou.»

— «Querida filha!... Como ela me ouviu logo! Deixa, deixa: vem quando
puderes. É a meada que se me embaraçou.»

A velha era cega, cega de gota serena, e paciente, resignada como a
providência misericordiosa de Deus permite quase sempre que sejam os que
neste mundo destinou à dura provança de tão desconsolado martírio.