Capítulo XXVII

Chegada a Santarém. — Olivais de Santarém. — Fora-de-Vila. — Simetria que não é
para os olhos.
— Modo de medir os versos da Bíblia. — Arquitetura pedante do século XVII. —
Entrada na Alcáçova.

Eram as últimas horas do dia quando chegámos ao princípio da calçada que
leva ao alto de Santarém. A pouca frequência de povo, as hortas e pomares
mal cultivados, as casas de campo arruinadas, tudo indicava as vizinhanças de
uma grande povoação descaída e desamparada. O mais belo contudo dos seus
ornatos e glórias suburbanas ainda o possui a nobre vila, não lho destruíram
de todo; são os seus olivais. Os olivais de Santarém cuja riqueza e formosura
proverbial é uma das nossas crenças populares mais gerais e mais queridas!...
Os olivais de Santarém lá estão ainda. Reconheceu-os o meu coração e
alegrou-se de os ver; saudei neles o símbolo patriarcal da nossa antiga
existência. Naqueles troncos velhos e coroados de verdura, figurou-se-me ver,
como nas selvas encantadas do Tasso, as venerandas imagens de os nossos
passados; e no murmúrio das folhas que o vento agitava a espaços, ouvir o
triste suspirar dos seus lamentos pela vergonhosa degeneração dos netos...

Estragado como os outros, profanado como todos, o olival de Santarém é
ainda um monumento.
Os povos do Meio-Dia, infelizmente, não professam com o mesmo respeito e
austeridade aquela religião dos bosques, tão sagrada para as nações do Norte.
Os olivais de Santarém são exceção: há muito pouco entre nós o culto das
árvores.
Subimos, a bom trotar das mulinhas, a empinada ladeira — eu alvoraçado e
impaciente por me achar face a face com aquela profusão de monumentos e
de ruínas que a imaginação me tinha figurado e que ora temia, ora desejava
comparar com a realidade.
Chegámos enfim ao alto; a majestosa entrada da grande vila está diante de
mim. Não me enganou a imaginação... grandiosa e magnífica cena!
Fora-de-Vila é um vasto largo, irregular e caprichoso como um poema
romântico; ao primeiro aspeto, àquela hora tardia e de pouca luz, é de um
efeito admirável e sublime. Palácios, conventos, igrejas ocupam gravemente e
tristemente os seus antigos lugares, enfileirados sem ordem aos lados daquela
imensa praça, em que a vista dos olhos não acha simetria alguma; mas sente-se
na alma. É como o ritmo e medição dos grandes versos bíblicos que se não
cadenceiam por pés nem por sílabas, mas caem certos no espírito e na audição
interior com uma regularidade admirável.
E tudo deserto, tudo silencioso, mudo, morto! Pensa-se entrar na grande
metrópole de um povo extinto, de uma nação que foi poderosa e celebrada
mas que desapareceu da face da Terra e só deixou o monumento das suas
construções gigantescas.
À esquerda o imenso convento do Sítio ou de Jesus, depois o das Donas,
depois o de S. Domingos, célebre pelo jazigo do nosso Fausto português —
seja dito sem irreverência à memória de S. Frei Gil que, é verdade, veio a ser
grande santo, mas que primeiro foi grande bruxo. — em frente o antiquíssimo
mosteiro das Claras, e ao pé as baixas arcadas góticas de S. Francisco... de cujo
último guardião, o austero Frei Dinis, tanta coisa te contei, amigo leitor, e
tantas mais tenho ainda para te contar! À direita o grandioso edifício filipino,
perfeito exemplar da maciça e pedante arquitetura reacionária do século
dezassete, o Colégio, tipo largo e belo no seu género, e quanto o seu género
pode ser, das construções jesuíticas...
Não há alma, não há génio, não há espírito naquelas massas pesadas, sem
elegância nem simplicidade; mas há uma certa grandeza que impõe, uma
solidez travada, uma simetria de cálculo, umas proporções frias, mas bem
assentadas e esquadriadas com método, que revelam o pensamento do século
e do instituto que tanto o caracterizou.
Não são as fortes crenças da Meia Idade que se elevam no agudo arco da
ogiva; não é a relaxação florida do século quinze e dezasseis que já vacila entre
o bizantino e o clássico, entre o místico ideal do Cristianismo que arrefece e
os símbolos materiais do paganismo que acorda; não, aqui a renascença
triunfou, e depois de triunfar, degenerou. E a Inquisição, são os Jesuítas, são
os Filipes, é a reação católica edificando templos para que se creia e se ore,
não porque se crê e se ora.
Até aqui o mosteiro e a catedral, a ermida e o convento eram a expressão da
ideia popular, agora são a fórmula do pensamento governativo.
Ali estão — olhai para eles —, em frente uns dos outros, os monumentos das
duas religiões, a qual mais expressivo e loquaz, dizendo mais claro que os
livros, que os escritos, que as tradições, o pensamento das idades que os
ergueram, e que ali os deixaram gravados sem saber o que faziam.
Mais em baixo, e no fundo desse declive, aquela massa negra é o resto ainda
soberbo do já imenso palácio dos condes de Unhão.
Rodeámos o largo e fomos entrar em Marvila pelo lado do norte. Estamos
dentro dos muros da antiga Santarém. Tão magnífica é a entrada, tão
mesquinho é agora tudo cá dentro, a maior parte destas casas velhas sem
serem antigas, destas ruas moirescas sem nada de árabe, sem o menor vestígio
da sua origem mais que a estreiteza e pouco asseio.
As igrejas quase todas porém, as muralhas e os bastiões, algumas das portas, e
poucas habitações particulares, conservam bastante da fisionomia antiga e
fazem esquecer a vulgaridade do resto.
Seguimos a triste e pobre Rua Direita, centro do débil comércio que ainda
aqui há: poucas e mal providas lógias, quase nenhum movimento. Cá está a
curiosa torre das Cabaças, a velha igreja de S. João do Alporão. Amanhã
iremos ver tudo isso do nosso vagar. Agora vamos à Alcáçova!
Entrámos a porta da antiga cidadela. — Que espantosa e desgraciosa
confusão de entulhos, de pedras, de montes de terra e caliça! Não há ruas, não
há caminhos, é um labirinto de ruínas feias e torpes. O nosso destino, a casa
do nosso amigo é ao pé mesmo da famosa e histórica igreja de Santa Maria da
Alcáçova. — há de custar a achar em tanta confusão.