CAPÍTULO XXXII

Tornamos à história de Joaninha. — Preparativos de guerra. — A morte. — Carlos
ferido e prisioneiro. — O hospital. — O enfermeiro. — Georgina.
«Escuta!» disse eu ao leitor benévolo no fim do último capítulo. Mas não basta
que escute, é preciso que tenha a bondade de se recordar do que ouviu no
capítulo XXV e da situação em que aí deixámos os dois primos, Carlos e
Joaninha.
Neste despropositado e inclassificável livro das minhas VIAGENS, não é que
se quebre, mas enreda-se o fio das histórias e das observações por tal modo,
que, bem o vejo e o sinto, só com muita paciência se pode deslindar e seguir
em tão embaraçada meada.
Vamos pois com paciência, caro leitor; farei por ser breve e ir direito quanto
eu puder.
Lembra-te como numa noite pura, serena e estrelada, aqueles dois se
despediram um do outro no meio do vale, como se despediram tristes,
duvidosos, infelizes, e já outros, tão outros do que dantes foram.
Nessa mesma noite, a ordenada confusão de um grande movimento de guerra
reinava nos postos dos constitucionais. À longa apatia de tantos meses sucedia
uma inesperada atividade. Preparavam-se os sanguinolentos combates de
Pernes e de Almoster, que não foram decisivos logo, mas que tanto
apressaram o termo da contenda.
Carlos achou ordem de se apresentar no quartel-general, partiu
imediatamente. O pensamento absorvido por ideias tão diferentes, tão
confuso, tão alheado de si mesmo, seguiu maquinalmente o corpo. Foi,
chegou, recebeu as instruções que lhe deram, e voltou mais satisfeito, mais
tranquilo.
Tratava-se de morrer. Não sabe o que é verdadeira angústia de alma o que
ainda não abençoou a morte que viu diante de si, o que a não invocou ainda
como único remédio do seu mal, ou, o que é mais desesperado, como única
saída das suas fatais perplexidades.
Estes momentos são raros na vida, é certo; mas quando ocorrem, não há
exageração nenhuma em dizer que antes, muito antes, a morte do que eles.
Oh! e se a morte que se contempla é de honra e glória, se o entusiasmo,
tirando fortemente a corda dos nervos, os faz vibrar naqueles tons secretos e
misteriosos que arrebatam, e elevam o coração do homem à sublime
abnegação de si, e de tudo o que é pequeno, baixo e vil na sua natureza — oh
então, a morte parece um triunfo, uma bem-aventurança por certo!
Carlos esqueceu-se de tudo menos da sua espada que afiou com escrupuloso
cuidado, e das suas boas e seguras pistolas inglesas que limpou
minuciosamente, carregou e escorvou com um verdadeiro amor de artista que
se compraz no último acabamento de um trabalho predileto.
O pouco da noite que lhe restava passou-se nisto, a marcha começou antes do
dia. E os primeiros raios do Sol foram saudados pelo fuzilar das espingardas e
pelo trovejar dos canhões.
Combateu-se larga e encarniçadamente — como entre irmãos que se odeiam
de todo o ódio que já foi amor — o mais cruel ódio que tem a natureza!
O dia declinava já quando num hospital em Santarém entravam muitas macas
de feridos, e entre eles, um todo crivado de balas e coberto de sangue que,
assim pelos restos do uniforme como por certo ar bem conhecido — e
característico então, se via claramente ser do exército constitucional.
Eram muitas e perigosas as feridas desse homem; estenderam-no numa
espécie de tarimba sobre que havia alguma palha, e quando lhe chegou a sua
vez foi examinado e pensado como os outros. Não dava sinal de padecer,
tinha os olhos fechados, o pulso forte mas não agitado de febre; não proferia
uma sílaba, não soltava um ai, e prestava-se a tudo o que lhe diziam e faziam,
menos a soltar da mão esquerda que apertava contra o peito o que quer que
fosse que ali tinha seguro e que lhe pendia ao pescoço de uma estreita fita
preta.
Assim o deixaram largo tempo: ele adormeceu. Não seria largo, mas foi
profundo o seu dormir. Quando acordou já se não viu no vasto caravançarai
daquele confuso hospital, mas num pequeno quarto arejado, limpo e quase
confortável que em tudo parecia cela de convento, menos na boa cama em
que jazia o doente, e na extremada elegância do enfermeiro que o velava.
O quarto era com efeito uma cela do convento de S. Francisco em Santarém,
o doente o nosso Carlos; e o enfermeiro que o velava, uma bela mulher de
estatura não acima de ordinária mas nem uma linha menos, envolvida nas
amplíssimas pregas de um longo roupão de seda daquela acertada cor que, em
dialeto da rua Vivienne, se diz scabieuse; a cabeça toucada de finíssima
Bruxelas, com uns laços de preto e cor de granada que realçavam a
transparência das rendas, a infinita graça dos longos e ondados anéis louros do
cabelo, e a pureza simétrica de um rosto oval, clássico, perfeito, sem grande
mobilidade de expressão mas belo, belo, quanto pode ser belo um rosto em
que pouco da alma se reflete, e em que a serena languidez de uns olhos azuis
entibia e modera a energia do sentimento que não é menos profundo talvez,
mas certamente se expande menos.
De joelhos junto ao leito de Carlos, com a mão direita dele nas suas, os olhos
secos mas fixos nas descaídas pálpebras do soldado, aquela mulher estava ali
como a estátua da dor e da ansiedade. para uma porta interior e que abria para
uma espécie de alcova obscura, em pé, os braços cruzados e metidos nas
mangas, o capuz na cabeça, estava um frade velho, alto mas curvado do peso
dos anos ou dos sofrimentos.
O frade contemplava o enfermo e a enfermeira, mas visivelmente não queria
ser visto nessa ocupação, porque ao menor estremecimento do doente
recuava apressado e como assustado para o interior da sua alcova.
Uma só vela de cera iluminava este quadro, acidentando-o de fortes sombras,
e dando-lhe um tom de solenidade verdadeiramente mágico e sublime.
Carlos segurava ainda na esquerda com o mesmo aferro o relicário ou talismã,
o que quer que era que não queria desprender do seu coração. A bela
enfermeira beijava de vez em quando aquela mão tenaz que estremecia a cada
beijo, por mais suave e mimoso que fosse o leve contacto desses lábios
delicados.
A outra mão estava nas mãos dela, mas era insensível a tudo, essa.
O silêncio era o do sepulcro: só se ouvia o respirar incerto e descompassado
do enfermo.
De repente Carlos entreabriu as pálpebras e exclamou em inglês: «Oh
Georgina, Georgina, I love you still.»
— (Georgina, Georgina, eu ainda te amo).
Duas lágrimas — duas pérolas, destas que se criam com tanta dor no coração
e que às vezes saem com tanto prazer dos olhos — romperam do celeste azul

dos olhos da dama e suavemente correram por aquelas faces de uma alvura
pálida e mortal.
Carlos acordou de todo, abriu os olhos e cravou-os fixamente no rosto
angélico dessa mulher.
Esteve assim minutos: ela não dizia nada nem de voz nem de gesto: falavamlhe
só as lágrimas que corriam quietas, quietas, como corre uma fonte perene
e nativa de água que mana sem esforço nem ímpeto, por um declive natural e
fácil.
— «Onde estou eu, Georgina?»
— «Nos os meus braços.»
— «Que me sucedeu?»
— «Que não podes ser feliz senão neles: bem sabes.»
— «Sei... devia saber.»
— «Devias; só agora hás de sabê-lo. O passado...»
— «O passado! qual?»
— «O passado deixou de existir.»
— «E o futuro?»
— «Eu não creio no futuro.»
— «Porquê?»
— «Porque tu me disseste que não cresse.»
— «Eu!. Eu sou um.»
— «Um homem.»
— «Oh!»
— «Basta e descansa. Amanhã falaremos.»
— «Estou ferido, muito; e dói-me agora... não me doía.»
— «Estás, mas sem perigo: e estou eu aqui. Dorme.»
— «Não posso. Que casa é esta?»
— «S. Francisco de Santarém.»
— «Deus de misericórdia!»
— «És prisioneiro: sara, e eu te livrarei.»
— «Tu! — E tu aqui, como?»
— «Vim buscar-te, e achei-te assim.»
— «Georgina!»
— «Que tens tu aí tão seguro na mão esquerda?»
— «Vê: a medalha com o teu cabelo.»
— «Então amas-me tu ainda?»
— «Se te amo! Como no primeiro...»
— «Não mintas, Carlos... E dorme.»
— «Oh!, meu Deus, meu Deus! Georgina aqui, eu neste estado e... E a
minha gente?»
— «A tua gente está salva.»
— «Aonde?»
— «Aqui mesmo, em Santarém.»
— «Quero... não quero... Oh? sim, quero mas é morrer. Tende
misericórdia de mim, meu Deus!»
— «Sossega, Carlos.»
Mas Carlos não sossegava: emudeceu porque a torrente dos seus
pensamentos, o encontrado deles, e o inesperado daquela situação lhe
embargavam a voz, e o quebramento das forças lhe tolhia os movimentos do
corpo; mas o espírito inquieto e alvoroçado revolvia-se dentro com um frenesi
louco. Era pasmar o que ele sofria.
À força de bebidas calmantes o acesso diminuiu, a noite passou mais
tranquila; e pela manhã o doente não deu atenção ao facultativo que o veio
ver.
Proibiram-lhe falar; e Georgina tinha a coragem de lhe resistir, de lhe não
responder todas as vezes que ele tentava quebrar o preceito de que dependia a
sua vida... e a dela, porque a infeliz amava-o... Oh! amava-o como se não ama
senão uma vez neste mundo.
Passaram dias, semanas, Carlos estava melhor, estava salvo; Georgina pôde
dizer-lhe um dia:
— «Carlos, meu Carlos, tu estás livre de perigo, vou restituir-te aos teus.»
— «Os meus!»
— «Os teus. A tua avó, tua prima...»
— «Joaninha! oh! Joaninha...»
— «Tua avó, que também tem estado a morrer, mas que enfim está escapa,
ignora que tu estejas aqui. Ocultámo-lo igualmente a tua prima.»
— «Ah!»
— «Sim, assentámos de lho não dizer para uma nem a outra até que
tivéssemos certeza da tua melhora. Hoje porém vais vê-las. E eu.»
— «Tu!»
— «Eu não tenho aqui mais nada que fazer.»
— «Georgina!»
— «Carlos!»
— «Tu já me não amas?»
— «Não.»
Seguiu-se um silêncio torvo e abafado como o da calma que precede as
grandes tempestades. O rosto de Georgina estava impassível, Carlos estorciase
debaixo de uma compressão horrível e incapaz de se descrever.