Capítulo VII

Voltar à meia-noite do Bois-de-Boulogne — o bosque por excelência, descer,
entre nuvens de poeira, o longo estádio dos Campos Elíseos, entrever, na
rápida carreira, o obelisco de Luxor, as árvores das Tulherias, a coluna da
praça Vandoma, a magnificência heteróclita da «Madalena», e enfim sentir
parar, de uma sofreada magistral, os dois possantes ingleses que nos
trouxeram quase de um fôlego até ao «boulevard de Gand»; aí entreabrir
molemente os olhos, levantando meio corpo dos regalados coxins de seda, e
dizer: «Ah! estamos em Tortoni... que delícia um sorvete com este calor!» — é
seguramente, é dos prazeres maiores deste mundo, sente-se a gente viver; é
meia hora de existência que vale dez anos de ser rei em qualquer outra parte
do mundo.

Pois acredite-me o leitor amigo, que sei alguma coisa dos sabores e dissabores
deste mundo, fie-se na minha palavra, que é de homem experimentado: o
prazer de chegar por aquele modo a Tortoni, o apear da elegante caleche
balançada nas mais suaves molas que fabricasse arte inglesa do puro aço da
Suécia, não alcança, não se compara ao prazer e consolação de alma e corpo
que eu senti ao apear-me da minha chouteira mula à porta do grande café do
Cartaxo.

Fazem ideia do que é o café do Cartaxo? Não fazem. Se não viajam, se não
saem, se não veem mundo esta gente de Lisboa! E passam a sua vida entre o
Chiado, a Rua do Ouro e o Teatro de S. Carlos, como hão de alargar a esfera
dos seus conhecimentos, desenvolver o espírito, chegar à altura do século?
Coroai-vos de alface, e ide jogar o bilhar, ou fazer sonetos à dama nova, ide,
que não prestais para mais nada, os meus queridos Lisboetas; ou discuti os
deslavados horrores de algum melodrama velho que fugiu assoviado da «Porte
Saint-Martin» e veio esconder-se na Rua dos Condes. Também podeis ir aos
touros — estão embolados, não há perigo...

Viajar?... qual viajar! até à Cova da Piedade, quando muito, em dia que lá haja
cavalinhos. Pois ficareis alfacinhas para sempre a pensar que todas as praças
deste mundo são como a do Terreiro do Paço, todas as ruas como a Rua
Augusta, todos os cafés como o do Marrare.
Pois não são, não: e o do Cartaxo menos que nenhum.
O café é uma das feições mais características de uma terra. O viajante
experimentado e fino chega a qualquer parte, entra no café, observa-o,
examina-o, estuda-o, e tem conhecido o país em que está, o seu governo, as
suas leis, os seus costumes, a sua religião.
Levem-me de olhos tapados onde quiserem, não me desvendem senão no
café; e protesto-lhes que em menos de dez minutos lhes digo a terra em que
estou, se for país sublunar.

Nós entrámos no café do Cartaxo, o grande café do Cartaxo; e nunca se
encruzou turco em divã de seda do mais esplêndido harém de Constantinopla
com tanto gozo de alma e satisfação de corpo, como nós nos sentámos nas
duras e ásperas tábuas das esguias banquetas mal sarapintadas que ornam o
magnífico estabelecimento bordalengo.

Em poucas linhas se descreve a sua simplicidade clássica: será um
paralelogramo pouco maior que a minha alcova; à esquerda duas mesas de
pinho, à direita o mostrador envidraçado onde campeiam as garrafas
obrigadas de licor de amêndoa, de canela, de cravo. Pendem do teto,
laboriosamente arrendados por não vulgar tesoura, os pingentes de papel,
convidando a lascivo repouso a inquieta raça das moscas. Reina uma frescura
admirável naquele recinto.

Sentámo-nos, respirámos largo, e entrámos em conversa com o dono da casa,
homem de trinta a quarenta anos, de fisionomia esperta e simpática, e sem
nada do repugnante vilão ruim que é tão usual de encontrar por semelhantes
lugares da nossa terra.

— «Então que novidades há por cá pelo Cartaxo, patrão?»

— «Novidades! Por aqui não temos senão o que vem de Lisboa. — Aí está
a «Revolução» de ontem...»

— «Jornais, o meu caro amigo! Vimos fartos disso. Diga-nos alguma coisa
da terra. Que faz por cá o... »

— «O mestre J. P., o «Alfageme»?»

— «Como assim o Alfageme?» — «Chamam-lhe o Alfageme ao mestre J.
P.: pois então! Uns senhores de Lisboa que aí estiveram em casa do Sr. D.
puseram-lhe esse nome, que a gente bem sabe o que é; e ficou-lhe, que agora
já ninguém lhe chama senão o Alfageme. Mas quanto a mim, ou ele não é
Alfageme, ou não o há de ser muito. Não é aquele, não. Eu bem me entendo.»

A conversação tornava-se interessante, especialmente para mim: quisemos
profundar o caso.

— «Muito me conta, Sr. patrão! Com que isto de ser Alfageme, parece-lhe
que é coisa de?... »

— «Parece-me o que é, o que há de parecer a todo o mundo. E alguma
coisa sabemos, cá no Cartaxo, do que vai por ele. O verdadeiro Alfageme diz
que era um espadeiro ou armeiro, cutileiro ou coisa que o valha na Ribeira de
Santarém; e que foi homem capaz, e que tinha pelo povo, e que não queria
saber de partidos, e que dizia ele: — «Rei que nos enforque, e papa que nos
excomungue, nunca há de faltar. Assim, deixar os outros brigar, trabalhemos
nós e ganhemos a nossa vida» . Mas que estrangeiros que não queria, que esta
terra que era a nossa e com a nossa gente se devia de governar. E mais coisas
assim: e que por fim o deram por traidor e lhe tiraram quanto tinha. — Mas
que lhe valeu o Condestável e o não deixou arrasar, porque era homem de
bem e fidalgo e fidalgo às direitas. Pois não é assim que foi?»
— «É, sim, meu amigo. Mas então daí?»

— «Então daí o que se tira é que quando havia fidalgos como o santo
Condestável também havia Alfagemes como o de Santarém. E mais nada.»

— «Perfeitamente. Mas porque chamaram ao mestre P. O Alfageme do
Cartaxo?»

— «Eu digo aos senhores: o homem nem era assim nem era assado. Falava
bem, tinha a sua lábia com o povo. Daí fez-se juiz, pôs por aí as suas coisas a
direito — Deus sabe as que ele entortou também!... ganhou nome no povo, e
agora faz dele o que quer. Se lhe der sempre para bem, bom será. — Os
senhores não tomam nada?»

O bom do homem visivelmente não queria falar mais: e não devíamos
importuná-lo. Fizemos o sacrifício de bom número de limões que
esprememos em profundas taças — vulgo, copos de canada — e, com água e
açúcar, oferecemos as devidas libações ao génio do lugar.

Infelizmente o sacrifício não foi de todo incruento. Muitas hecatombes de
mirmidões caíram no holocausto, e lhe deram um cheiro e sabor que não sei
se agradou à divindade, mas que enjoou terrivelmente os sacerdotes.
Saímos a visitar o nosso bom amigo, o velho D., a honra e a alegria do
Ribatejo. Já ele sabia da nossa chegada, e vinha no caminho para nos abraçar.
Fomos dar, juntos, uma volta pela terra.

É das povoações mais bonitas de Portugal, o Cartaxo, asseada, alegre; parece
o bairro suburbano de uma cidade.
Não há aqui monumentos, não há história antiga: a terra é nova, e a sua
prosperidade e crescimento datam de trinta ou quarenta anos, desde que o seu
vinho começou a ter fama. Já descaída do que foi, pela estagnação daquele
comércio, ainda é, contudo, a melhor coisa da Borda-d’água.
Não tem história antiga, disse; mas tem-na moderna e importantíssima.
Que memórias aqui não ficaram da Guerra Peninsular! Que espantosas
borracheiras aqui não tomaram os mais famosos generais, os mais distintos
militares da nossa antiga e fiel aliada, que ainda então, ao menos, nos bebia o
vinho!

Hoje nem isso!... hoje bebe a jacobina zurrapa de Bordéus, e as acerbas
limonadas de Borgonha.

Quem tal diria da conservativa Albion! Como pode uma leal goela britânica,
rascada pelos ácidos anárquicos daquelas vinagretas francesas, entoar
devidamente o God-save-the-King num toast nacional! Como, sem Porto ou
Madeira, sem Lisboa, sem Cartaxo, ousa um súbdito britânico erguer a voz,
naquela harmoniosa desafinação insular que lhe é própria e que faz parte do
seu respeitável carácter nacional — faz; não se riam: o inglês não canta senão
quando bebe... aliás quando está BEBIDO. Nisi potus ad arma ruisse. Inverta:
Nisi potus in cantum prorumpisse... E pois, como há de ele assim bebido
erguer a voz naquele sublime e tremendo hino popular Rulle-Britania!
Bebei, bebei bem zurrapa francesa, os meus amigos ingleses; bebei, bebei a
peso de ouro, essas limonadas dos burgraves e margraves de Alemanha;
chamai-lhe, para vos iludir, chamai-lhe hoc, chamai-lhe hic, chamai-lhe o hic
haec hoc todo inteiro, se vos dá gosto... que em poucos anos veremos o
estado de acetato a que há de ficar reduzido o vosso carácter nacional.
Oh! gente cega a quem Deus quer perder! pois não vedes que não sois nada
sem nós, que sem o nosso álcool, donde vos vinha espírito, ciência, valor, ides
cair infalivelmente na antiga e preguiçosa rudeza saxónia!

Dessas traidoras praias da França donde vos vai hoje o veneno corrosivo da
vossa índole e da vossa força, não tardará que também vos chegue outro
Guilherme bastardo que vos conquiste e vos castigue, que vos faça
arrepender, mas tarde, do criminoso erro que hoje cometeis, ó insulares sem
fé, em abandonar a nossa aliança. A nossa aliança sim, a nossa poderosa
aliança, sem a qual não sois nada.

O que é um inglês sem Porto ou Madeira... sem Carcavelos ou Cartaxo?
Que se inspirasse Shakespeare com Laffitte, Milton com Chateaumargot — o
chanceler Bacon que se diluísse no melhor Borgonha... e veríamos os acídulos
versinhos, os destemperados raciocininhos que faziam.
Com todas as suas dietas, Newton nunca se lembrou de beber Johannisberg;
Byron antes beberia gin, antes água do Tamisa, ou do Pamiso, do que essas
escorreduras das areias de Bordéus.

Tirai-lhe o Porto aos vossos almirantes, e ninguém mais teme que torneis a ter
outro Nélson. Entra nos planos do príncipe de Joinville fazer-vos beber da
sua zurrapa: são tantos pontos de partido que lhe dais no seu jogo.
É M. Guizot quem perde a Inglaterra com a sua aliança; e também perde o
Cartaxo. Por isso eu já não quero nada com os doutrinários.

Há doze anos voltou o Cartaxo a figurar conspicuamente na história de
Portugal. Aqui, nas longas e terríveis lutas da última guerra de sucessão, esteve
muito tempo o quartel-general do marquês de Saldanha.
Alguns ditirambos se fizeram; alguns ecos das antigas canções báquicas do
tempo da Guerra Peninsular ainda acordaram ao som dos hinos
constitucionais.

Mas o sistema liberal, tirada a época das eleições, não é grande coisa para a
indústria vinhateira, dizem. Eu não o creio, porém; e tenho as minhas boas
razões, que ficam para outra vez.