Capítulo XIII

Dos frades em geral. — O frade moralmente considerado, socialmente e artisticamente. —
Prova-se que é muito mais poético o frade do que o barão. — Outra vez D. Quixote e
Sancho Pança. — Do que seja o barão, a sua classificação e descrição lineana. — História
do Castelo de Chucherumelo. — Erro palmar de Eugénio Sue: mostra-se que os jesuítas
não são a cólera-morbo, e que é preciso refazer o «Judeu Errante». — De como o frade não
entendeu o nosso século nem o nosso século ao frade. — De como o barão ficou em lugar do
frade, e do muito que nisso perdemos. — Única voz que se ouve no atual deserto da
sociedade: os barões a gritar contos de réis. — Como se contam e como se pagam os tais
contos. — Predileção artística do A. pelo frade: confessa-se e explica-se esta predileção.

Frades... frades... Eu não gosto de frades. Como nós os vimos ainda os deste
século, como nós os entendemos hoje, não gosto deles, não os quero para
nada, moral e socialmente falando.
No ponto de vista artístico, porém, o frade faz muita falta.
Nas cidades, aquelas figuras graves e sérias com os seus hábitos talares, quase
todos pitorescos e alguns elegantes, atravessando as multidões de macacos e
bonecas de casaquinha esguia e chapelinho de alcatruz que distinguem a
peralvilha raça europeia — cortavam a monotonia do ridículo e davam
fisionomia à população.
Nos campos o efeito era ainda muito maior: eles caracterizavam a paisagem,
poetizavam a situação mais prosaica de monte ou de vale; e tão necessárias,
tão obrigadas figuras eram em muitos desses quadros, que sem elas o painel
não é já o mesmo.
Além disso, o convento no povoado e o mosteiro no ermo animavam,
amenizavam, davam alma e grandeza a tudo: eles protegiam as árvores,
santificavam as fontes, enchiam a terra de poesia e de solenidade.
O que não sabem nem podem fazer os agiotas barões que os substituíram.
É muito mais poético o frade que o barão.
O frade era, até certo ponto, o Dom Quixote da sociedade velha.
O barão é, em quase todos os pontos, o Sancho Pança da sociedade nova.
Menos na graça...
Porque o barão é o mais desgracioso e estúpido animal da criação.
Sem excetuar a família asinina que se ilustra com individualidades tão distintas
como o Ruço do nosso amigo Sancho, o asno da Pucela de Orléans e outros.
O barão (Onagrus baronius, de Linn., L''''âne baron de Buf.) é uma variedade
monstruosa engendrada na burra de Balaão, pela parte essencialmente judaica
e usurária da sua natureza, em coito danado com o urso Martinho do Jardim
das Plantas (*), pela parte franchinótica e sordidamente revolucionária do seu
carácter.

[(*)Nota do Autor: Célebre urso do Jardim das Plantas em Paris.]

O barão é, pois, usurariamente revolucionário, e revolucionariamente
usurário.
Por isso é zebrado de riscas monárquico-democráticas por todo o pêlo.
Este é o barão verdadeiro e puro-sangue: o que não tem estes caracteres é
espécie diferente, de que aqui se não trata.
Ora, sem sair dos barões e tornando aos frades, eu digo: que nem eles
compreenderam o nosso século nem nós os compreendemos a eles...
Por isso brigámos muito tempo, afinal vencemos nós, e mandámos os barões
a expulsá-los da terra. No que fizemos uma sandice como nunca se fez outra.
O barão mordeu no frade, devorou-o... e escoiceou-nos a nós, depois.
Com que havemos nós agora de matar o barão?
Porque este mundo e a sua história é a história do «castelo do Chucherumelo».
Aqui está o cão que mordeu no gato, que matou o rato, que roeu a corda, etc.,
etc.: vai sempre assim seguindo.
Mas o frade não nos compreendeu a nós, por isso morreu, e nós não
compreendemos o frade, por isso fizemos os barões de que havemos de morrer.
São a moléstia deste século; são eles, não os jesuítas, a cólera-morbo da
sociedade atual, os barões. O nosso amigo Eugénio Sue errou de meio a meio
no «Judeu Errante» que precisa refeito.
Ora o frade foi quem errou primeiro em nos não compreender, a nós, ao
nosso século, às nossas inspirações e aspirações: com o que falsificou a sua
posição, isolou-se da vida social, fez da sua morte uma necessidade, uma coisa
infalível e sem remédio. Assustou-se com a liberdade que era sua amiga, mas
que o havia de reformar, e uniu-se ao despotismo que o não amava senão
relaxado e vicioso, porque de outro modo lhe não servia nem o servia.
Nós também errámos em não entender o desculpável erro do frade, em lhe
não dar outra direção social, e evitar assim os barões, que é muito mais
daninho bicho e mais roedor.
Porque, desenganem-se, o mundo sempre assim foi e há de ser. Por mais belas
teorias que se façam, por mais perfeitas constituições com que se comece, o
status in forma-se logo: ou com frades ou com barões ou com pedreiros-livres
se vai pouco a pouco organizando uma influência distinta, quando não
contrária, às influências manifestas e aparentes do grande corpo social. Esta é
a oposição natural do Progresso, o qual tem a sua oposição como todas as
coisas sublunares e superlunares; esta corrige saudavelmente, às vezes, e
modera a sua velocidade, outras a empece com demasia e abuso: mas, enfim, é
uma necessidade.
Ora eu, que sou ministerial do Progresso, antes queria a oposição dos frades
que a dos barões. O caso estava na saber conter e aproveitar.
O Progresso e a Liberdade perdeu, não ganhou.
Quando me lembra tudo isto, quando vejo os conventos em ruínas, os
egressos a pedir esmola e os barões de berlinda, tenho saudades dos frades —
não dos frades que foram, mas dos frades que podiam ser.
E sei que me não enganam poesias; que eu reajo fortemente com uma lógica
inflexível contra as ilusões poéticas em se tratando de coisas graves.
E sei que me não namoro de paradoxos, nem sou destes espíritos de
contradição desinquieta que suspiram sempre pelo que foi, e nunca estão
contentes com o que é.
Não, senhor: o frade, que é patriota e liberal na Irlanda, na Polónia, no Brasil,
podia e devia sê-lo entre nós; e nós ficávamos muito melhor do que estamos
com meia dúzia de clérigos de requiem para nos dizer missa; e com duas
grosas de barões, não para a tal oposição salutar, mas para exercer toda a
influência moral e intelectual da sociedade — porque não há de outra cá.
E senão digam-me: onde estão as universidades, e o que faz essa que há senão
dar o seu grauzito de bacharel em leis e em medicina? O que escreve ela, o que
discute, que princípios tem, que doutrinas professa, quem sabe ou ouve dela
senão algum eco tímido e acanhado do que noutra parte se faz ou diz?
Onde estão as academias?
Que palavra poderosa retine nos púlpitos?
Onde está a força da tribuna?
Que poeta canta tão alto que o ouçam as pedras brutas e os robles duros desta
selva materialista a que os utilitários nos reduziram?
Se excetuarmos o débil clamor da imprensa liberal já meio esganada da polícia,
não se ouve no vasto silêncio deste ermo senão a voz dos barões gritando
contos de réis.
Dez contos de réis por um eleitor!
Mais duzentos contos pelo tabaco!
Três mil contos para a conversão de um anfiguri!
Cinco mil contos para as estradas dos aeronautas!
Seis mil contos para isto, dez mil contos para aquilo!
Não tardam a contar por centenas de milhares.
Contar a eles não lhes custa nada.
A quem custa é a quem paga para todos esses balões de papel — a terra e a
indústria
Este capítulo deve ser considerado como introdução ao capítulo seguinte, em
que entra em cena Fr. Dinis, o guardião de São Francisco de Santarém.
Já me disseram que eu tinha o génio frade, que não podia fazer conto, drama,
romance sem lhe meter o meu fradinho.
O «Camões» tem um frade, Frei José Índio;
A «Dona Branca» três, Frei Soeiro, Frei Lopo e São Frei Gil — faz quatro;
A «Adozinda» tem um eremitão, espécie de frade — cinco;
«Gil Vicente» tem outro — isto é, verdadeiramente não tem senão meio frade,
que é André de Resende, para além disso, pessoa muda — cinco e meio;
O «Alfageme» três quartos de frade, Froilão Dias, chibato da ordem de Malta
— seis frades e um quarto;
Em «Frei Luís de Sousa» tudo são frades: vale bem, nesta computação, os seus
três, quatro, meia dúzia de frades — são já doze e quarto;
Alguns, não eu, querem meter nesta conta o «Arco de Sant''''Ana», em que há
bem dois frades e um leigo:
E aqui tenho eu às costas nada menos de quinze frades e quarto.
Com este Dinis é um convento inteiro.
Pois, senhores, não sei que lhes faça: a culpa não é a minha. Desde mil cento e
tantos que começou Portugal, até mil oitocentos e trinta e tantos que uns
dizem que ele se restaurou, outros que o levou a breca, não sei que se passasse
ou pudesse passar nesta terra coisa alguma, pública ou particular, em que frade
não entrasse.
Para evitar isto não há senão usar da receita que vem formulada no capítulo
quinto desta obra.
Faça-o quem gostar; eu não, que não quero nem sei.