Capítulo XXIV

Novo Génesis. — O Adão social muito diferente do Adão natural. — Carlos sempre um
pelos seus bons instintos, sempre outro pelas suas más reflexões. — De como Joaninha
recebeu o primo com os braços abertos, e do mais que entre eles se passou. Dor, meia dor,
meia prazer.

Formou Deus o homem, e o pôs num paraíso de delícias; tornou a formá-lo a
sociedade, e o pôs num inferno de tolices.
O homem — não o homem que Deus fez, mas o homem que a sociedade tem
contrafeito, apertando e forçando nos seus moldes de ferro aquela pasta de
limo que no paraíso terreal se afeiçoara à imagem da divindade — o homem,
assim aleijado como nós o conhecemos, é o animal mais absurdo, o mais
disparatado e incongruente que habita na Terra.
Rei nascido de todo o criado, perdeu a realeza; príncipe deserdado e proscrito,
hoje vaga foragido no meio dos seus antigos estados; altivo ainda e soberbo
com as recordações do passado, baixo, vil e miserável pela desgraça do
presente.
Destas duas tão opostas atuações constantes, que já por si sós o tornariam
ridículo, formou a sociedade, na sua vã sabedoria, um sistema quimérico,
desarrazoado e impossível, complicado de regras a qual mais desvairada,
encontrado de repugnâncias a qual mais oposta. E vazado este perfeito
modelo da sua arte pretensiosa, meteu dentro dele o homem, desfigurou-o,
contorceu-o, fê-lo o tal ente absurdo e disparatado, doente, fraco, raquítico;
colocou-o no meio do Éden fantástico da sua criação — verdadeiro inferno
de tolices — e disse-lhe, invertendo com blasfemo arremedo as palavras de
Deus criador:
«De nenhuma árvore da horta comendo comerás;
«Porém da árvore da ciência do bem e do mal, dela só comerás, se quiseres
viver.»
Indigestão de ciência que não comutou o seu mau estômago, presunção e
vaidade que dela se originaram — tal foi o resultado daquele preceito a que o
homem não desobedeceu como ao outro: tal é o seu estado habitual.
E quando as memórias da primeira existência lhe fazem nascer o desejo de
sair desta outra, lhe influem alguma aspiração de voltar à natureza e a Deus, a
sociedade, armada das suas barras de ferro, vem sobre ele, e o prende, e o
esmaga, e o contorce de novo, e o aperta no ecúleo doloroso das suas formas.
Ou há de morrer ou ficar monstruoso e aleijão.
Poucos filhos do Adão social tinham tantas reminiscências da outra pátria
mais antiga, e tendiam tanto a aproximar-se do primitivo tipo que saíra das
mãos do Eterno, forcejavam tanto por sacudir de si o pesado aperto das
constrições sociais, e regenerar-se na santa liberdade da natureza, como era o
nosso Carlos.
Mas o melhor e o mais generoso dos homens, segundo a sociedade, é ainda
fraco, falso e acanhado.
Demais, cada tentativa nobre, cada aspiração elevada da sua alma lhe tinha
custado duros castigos, severas e injustas condenações desse grande juiz
hipócrita, mentiroso e venal... O mundo.
Carlos estava quase como os mais homens... ainda era bom e verdadeiro no
primeiro impulso da sua natureza excecional; mas a reflexão descia-o à
vulgaridade da fraqueza, da hipocrisia, da mentira comum.
Dos melhores era, mas era homem.
Os seus pensamentos, as suas considerações em toda aquela noite, em todo o
dia que a seguira, na hora mesma em que ia encontrar-se com o objeto que
mais lhe prendia agora o espírito, se não é que também o coração, todas
participavam daquela flutuação inquieta e doentia do seu ser de homem social,
em que o tíbio reflexo do homem natural apenas relampejava por acaso.
Dúvida, incerteza, vaidade, mentira deslocavam e anulavam a bela organização
daquela alma.
Assim chegou ao pé de Joaninha, que o esperava de braços abertos, que o
apertou neles, que o beijou sem nenhum falso recato de maliciosa modéstia, e
com o riso da alegria no coração e na boca lhe disse: — «Ora pois, meu
Carlos, sentemo-nos aqui bem juntos ao pé um do outro e conversemos, que
temos muito que falar. Dá cá a tua mão. Aqui na minha... Está fria a tua mão
hoje! E ontem tão quente estava!... Oh! agora vai aquecendo... tanto, tanto... é
de mais! Terás tu febre?»
— «Não tenho.»
— «Não tens, não: a cara é de saúde. E como tu estás forte, grande, um
homem como eu sempre imaginei que um homem devia ser, como sempre te
via nos meus sonhos!... Que é estranho isto, Carlos: quando sonhava contigo,
não te via como tu daqui foste, magro, triste e doente; via-te como vens agora,
forte, são, alegre... Mas tu não estás alegre hoje, como ontem; não estás... Que
tens tu?»
— «Nada, querida Joaninha, não tenho nada. Pensava...»
— «Em que pensas tu? diz-me.»
— «Pensava na diferença dos nossos sonhos; que eu também sonhava
contigo.»
— «Sonhavas, Carlos! E como sonhavas tu? Como me vias nos teus
sonhos?»
— «Tudo pelo contrário do que tu. Via-te aquela Joaninha pequena,
desinquieta, travessa, correndo por essas terras, saltando essas valas, trepando
a essas árvores... aquela Joaninha com quem eu andava ao colo, que trazia às
cavaleiras, que me fazia ser tão doido e tão criança como ela, apesar de eu ter
quinze anos mais. Via-te alegre, cantando... »
— «Sonhos de homem! Creiam neles! Eu que nunca mais ri nem brinquei
desde o dia que tu partiste... E oh que dia, Carlos!... E os que vieram depois!
Não houve nunca mais um só dia de alegria nesta casa. Oh!... Deixa-me dizerte:
Fr. Dinis... Sabes que não gosto dele?»
— «Não gostas?»
— «Nada: tenho-lhe aversão. E Deus me perdoe! parece-me que é injusta a
minha antipatia.»
— «Porquê?»
— «Porque ele é teu amigo deveras. Um pai, Carlos, um pai não tem maior
ternura e desvelos pelo seu filho, do que ele tem por ti.»
— «Deus lhe perdoe!»
— «Deus lhe perdoe a quem... e que lhe há de perdoar? O amor que te
tem?»
— «Não, mas...»
— «Bem sei o que queres dizer: e tens razão.»
— «Tenho razão!»
— «Tens: o que ele bem precisa que Deus lhe perdoe é um grande
pecado.»
— «Que dizes tu, Joana! E como sabes?»
— «Sei, sei tudo.»
— «Tu!»
— «Eu. Sei que foi ele quem fez cegar a minha avó... A nossa boa, a nossa
santa avó, Carlos!... que a cegou à força de lágrimas que lhe fez chorar àqueles
pobres olhos que, de puro cansados, se apagaram para sempre... A minha rica
avó! — E porquê, meu Deus, porquê!»
— «Porquê?»
— «Por amor de ti, por escrúpulos que lhe meteu na cabeça de tu seres
mau cristão, inimigo de Deus, que te não podias salvar... tu, meu Carlos! Vê
que cegueira a do triste frade.»
— «Bem triste!»
— «Mas olha que o diz de boa-fé e pelo muito amor que te tem... que é um
amor que eu não entendo: e o mesmo é com a minha avó, que treme diante
dele. E mais ele estima-a, estou certa que dava a vida por ela... e por nós
todos... por mim não tanto, mas por ti e por ela, dava decerto. Mas o seu amor
é dos que ralam, que apoquentam... quase que estou em dizer que matam.»
— «Matam, matam!»
— «Nossa avó é ele que a mata decerto. Sempre a meter-lhe medos,
sempre escrúpulos! o seu Deus dele é um Deus de terrores, de vinganças, de
castigos, e sem nenhuma misericórdia. Oh! que homem! para ele tudo é
pecado, maldade... Não o posso ver.»
Carlos respirava como desoprimido de um grande peso, ouvindo as
explicações da prima que bem claro lhe mostravam a sua perfeita ignorância
dos fatais segredos da família.
— «E contigo,» disse ele já noutra voz mais desafogada «contigo, Joaninha,
como se avém ele, como te trata?»
— «Comigo não se mete, e rara vez me fala. Mas oh, se ele soubesse que
eu estava aqui contigo, santo Deus! o que ouviria a pobre da minha avó!
Ainda bem que hoje não é sexta-feira, senão não vinha eu cá.»
— «Porquê? Ainda vem todas as sextas-feiras?»
— «Sempre o mesmo. Amanhã cá o temos por pecado, que é sexta-feira.»
— «Não te vejo então amanhã aqui?»
— «Não decerto, aqui. Mas vamos, que a isso é que eu venho cá hoje, para
te falar nisso... e para te ver, para falar contigo, para estar com o meu Carlos...
e ao mesmo tempo também para ajustarmos como isto há de ser. Quando hás
de tu ir ver a avó?... A nossa mãe; que é a nossa mãe, Carlos: não conhecemos
nunca outra, nem eu nem tu. Quando lhe hei de eu dizer que estás aqui? A
pobre velhinha está tão doente! Há quinze dias que se não levanta da cama.»
— «Coitada da minha pobre mãe!... Oh!, se não fosse!... Deixa estar,
Joaninha; um dia será. Por agora não pode ser: bem vês. Como hei de eu
atravessar as sentinelas dos realistas, ir para um posto inimigo? — a minha
vida... isso pouco importa, mas a minha honra ficava em perigo: por todos os
modos a perdia, e talvez... »
— «Não senhor, Sr. Carlos, essa desculpa não basta. Vai num ano que aqui
temos a guerra à porta de casa, e já sabemos como isso é e como as coisas se
fazem. O comandante do nosso posto é um homem de bem, um cavalheiro
perfeito. Em lhe eu dizendo quem tu és e a que cá vens... ele sabe o estado da
minha avó, e tem-lhe muita amizade, dá-nos decerto licença para tu vires em
toda a segurança. Pensas que ele não sabe que estou contigo aqui? Pois disselhe eu;
só lhe não expliquei quem tu eras; disse-lhe que eras um parente o
nosso que nos trazia notícias de outros, e que precisava falar-te. Não pôs
dificuldade alguma: é uma pessoa excelente, bom, bom deveras.»
— «É novo o teu comandante?»
— «Novo ele? coitado! Tem bons cinquenta anos, e creio que outros
tantos filhos. Mas porque perguntas tu isso? E arqueaste as sobrancelhas com
aquele teu ar de antes quando te zangavas! Porque foi isso, Carlos?
— «Nada, criança, foi uma pergunta à toa.»
— «Pois será; mas não me franzas nunca mais a testa assim, que te pareces
todo... é que nunca vi tal parecença...»
— «Com quem?»
— «Com Fr. Dinis.»
— «Eu com ele!»
— «Tal e qual quando fazes essa cara. Olha: aí estás tu na mesma. Vamos!
ria-se e esteja contente se se quer parecer comigo, que todos dizem que nos
parecemos tanto.»
— «Querida inocente!»
E beijou-lhe a mão que tinha apertada na sua, beijou-lha uma e muitas vezes
com um sentimento de ternura misturada de não sei que vaga compaixão,
vindo de lá de dentro de alma com não sei que dor, meia dor meia prazer, que
entre ambos se comunicou e a ambos humedeceu os olhos.