Tentação! Amor! Poesia

Eis que, a súbitas, do coração de Calisto ressalta a primeira faísca de amor!
Conheço que este desastre não se devia contar sem grandes prólogos. Sei que
o leitor ficou passado com esta notícia. Grita que a inverosimilhança é
flagrante. Não pode de boamente consentir que se lhe desfigure a sisuda
fisionomia moral do marido de D. Teodora Figueiroa. Quer que se limpe da
cara deste homem o estigma de um pensamento adúltero. Honrados desejos!
Mas eu não posso! Queria e não posso! Tenho aqui à minha beira o demónio
da verdade, inseparável do historiador sincero, o demónio da verdade que não
consentiu ao Sr. Alexandre Herculano dizer que Afonso Henriques viu coisas
extraordinárias no céu do campo de Ourique, e a mim me não deixa dizer que
Calisto Elói não adulterou em pensamento! Estes são os ossos malditos do
ofício; esta é a condenação dos infelizes artífices que edificam para a
posteridade, e exploram nas cavernas do coração humano os cimentos da sua obra.
Ai! Se Calisto Elói foi de repente assalteado do dragão do amor, como hei de
eu inventar prelúdios e antecedências que a natureza não usou com ele?! Se o
homem, espantado, a si mesmo se interrogava, e dizia: «Isto que é?!», como
hei de eu dizer ao leitor o que foi aquilo?!
O que ele sabia e eu sei é que, estando Calisto de Barbuda a jogar a sueca de
parceiro com Adelaide, à razão de cruzado novo a partida, a menina passou a
sua bolsinha de filigrana para a mão do parceiro, e disse-lhe:
— Administre-me o meu tesouro, Sr. morgado. Tenho aí o meu dote.
— Pois sejam todos muito boas testemunhas da quantia que recebo da
Exma. Sra. D. Adelaide, minha senhora — disse Calisto, esvaziando a bolsinha.
Com as moedas de prata e oiro, que a bolsa continha, saiu um pequeno
coração de oiro esmaltado com iniciais.
— Ah! — acudiu Adelaide pressurosa — isto não!. — E retirou
sofregamente o coraçãozinho.
Algum dos circunstantes disse:
— Então o Sr. morgado não serve para administrar corações?!
— Serve para os dominar com a sua bondade, e enchê-los de afetuosa
estima — respondeu com adorável graça a menina.
Foi neste instante que o morgado da Agra de Freimas sentiu no lado esquerdo
do peito, entre a quarta e a quinta costela, um calor de ventosa, acompanhado
de vibrações elétricas, e vaporações cálidas, que lhe passaram à espinha dorsal,
e daqui ao cérebro, e pouco depois a toda a cabeça, purpureando-lhe as maçãs
de ambas as faces com o rubor mais virginal.
Disto não reparou Adelaide nem a outra gente.
Duas enfermidades há aí cujos sintomas não descobrem as pessoas inexpertas:
uma é o amor, a outra é a ténia. Os sintomas do amor, em muitos indivíduos
enfermos, confundem-se com os sintomas do idiotismo. É preciso muito
acume de vista e longa prática para discriminá-los. Passa o mesmo com a
ténia, lombriga por excelência. O aspeto mórbido das vítimas daquele parasita,
que é para os intestinos baixos o que o amor é para os intestinos altos,
confunde-se com os sintomas de graves achaques, desde o hidrotórax até à
espinhela caída.
E aqui está que Calisto Elói — ia-me esquecendo dizê-lo — também sentiu a
queda da espinhela, sensação esquisita de vácuo e despego, que a gente
experimenta, uma polegada e três linhas acima do estômago, quando o amor
ou o susto nos leva de assalto repentinamente.
Sem embargo da concomitância de tantas enfermidades, Calisto de Barbuda
embaralhou as cartas, passou-as à esquerda, e jogou a primeira partida com
tamanha incúria e desacerto, que Adelaide, no acto do pagamento da aposta,
observou ao parceiro que era preciso administrar com mais zelo o dote da sua amiga.
E juntou:
— V. Exa. esteve a compor algum belo discurso para a Câmara.
O morgado cacarejou um sorriso, e mais nada.
Prosseguiu o jogo. Calisto deu provas de supina bestidade em quatro partidas
de sueca. Adelaide, dissimulando a má sombra do fastio com que estava
jogando, aturou até ao fim a partida, com grande desfalque do seu pecúlio.
Tinha-se feito uma atmosfera nova em redor dos pulmões de Calisto. A
loquacidade, embrechada de sentenças e latinismos, com que ele costumava
aligeirar as palestras dos eruditos amigos do desembargador desamparou-o
naquela noite. Isto causou estranheza e cuidados ao amorável Sarmento, que
prezava Calisto como a filho.
A partida acabou taciturna e triste.
Fechado no seu gabinete de estudo, o morgado da Agra sentou-se à banca,
apanhou entre dois dedos o beiço superior, e esteve assim meditabundo largo
espaço. Depois, ergueu-se para dar largas ao coração que pulava, e andou
passeando com desusada agilidade e aprumo de corpo. Parou diante da
livraria, tirou de entre os poetas clássicos o dileto António Ferreira, sentou-se,
abriu à sorte, e leu, declamando os dois quartetos do soneto V:
Dos mais fermosos olhos, mais fermoso
Rosto, que entre nós há, do mais divino
Lume, mais branca neve, oiro mais fino,
Mais doce fala, riso mais gracioso:
Dum Angélico ar, de um amoroso
Meneo, de um espírito peregrino
se acendeu em mim o fogo, de que indino
Me sinto, e tanto mais assi ditoso.
Repetiu, fez pausa, suspirou, e declamou ainda o primeiro verso do terceto:
Não cabe em mim tal bem-aventurança!
Nisto, a imagem da sua prima e esposa D. Teodora Figueiroa, trazida ali por
decreto do alto, antepôs-se-lhe aos olhos enleados na imagem de Adelaide.
Calisto estremeceu de puro pejo da sua fraqueza, e lançou mão da última carta
que recebera da sua saudosa mulher. Rezava assim, escrita por mão de uma
filha do boticário de Caçarelhos, com ortografia mais imaginosa que a minha:
«Meu amado Calisto. Cá soube pelo mestre-escola que tens botado algumas
falas nas Cortes, e que tens muita sabedoria. O Sr. abade já cá veio ler-me um
pedaço do teu dito, e oxalá que seja para bem da religião. Olha se botas abaixo
as décimas, que é o mais necessário. Aqui veio um padre de Miranda para tu o
despachares para abade; e o regedor também quer que tu lhe arranjes um
hábito de Cristo para ele, e uma pensão para a tia Josefa, que é viúva de um
sargento de milícias de Mirandela. Assim que arranjares isso, manda para cá.
Saberás que mandei trocar os dois barrosões à feira dos onze, e comprei vacas
de cria. Os cevados não saíram de boa casta, e acho que será bom trocá-los na
feira dos dezanove. A porca ruça teve dez leitões ontem de madrugada. E,
com isto, olha se isso lá acaba depressa, que eu ando por cá triste e
acabrunhada de saudades. Na semana que passou andei mal dos rins, e muito
despegada do peito. Hoje vou ver medir seis carros de centeio, que vão para a
feira, por isso não te enfado mais. Desta tua mulher muito amiga, Teodora.»
Por mais que recolhesse o espírito vagabundo, Calisto não dava tento destes
dizeres de Teodora, encantadores de simplicidade e boa governança de casa.
Arrumou a carta, reabriu o seu António Ferreira, e leu no soneto XXXIII:
Eu vi no vossos olhos novo lume
Que apartando dos meus a névoa escura,
Viram outra escondida fermosura,
Fora da sorte e do geral costume.
Ó bellalma innamorata!
Deitou-se por desoras, e dormitou sobressaltado. Antemanhã espertou com as
alvoradas de uns pintassilgos e calhandras, que lhe cantavam amorosamente
na alma. Eram as alegrias do primeiro amor, aqueles momentos de céu, visita
dos anjos, que todo o coração hospedou na infância, na virilidade, ou já na
decadência da vida. Saiu alegre do leito, e leu algumas líricas de Camões e
Filinto Elísio.
Nunca na sua vida poetara Calisto Elói de Silos. O amor não lhe havia dado o
beliscão suavíssimo que, por vezes, abre torrentes de metro da veia ignorada.
Eis que o corisco da inspiração lhe vulcaniza o peito. Levanta maquinalmente
a mão à cara, como a palpar a excrescência febril que todo o poeta apalpa no
conflito sublimado do estro. Senta-se, pega da pena, e o coração distila por ela
este fragmento de madrigal, que, a meu ver, foi o último que o sincero amor
sugeriu em peito português:
Senhora de grão primor,
Meu amor, Formosíssima deidade,

Arde meu peito em saudade,
Quem fui ontem, não sou hoje;
Minha alegria me foge,
Se vos olho. Já cativo em vós me acolho,
Havei de mim piedade;
Sede minha divindade;
Não leveis a mal que eu chore
Contanto que vos adore,
Gentil e nobre menina,
Como Camões a Catarina
E como Ovídio a Corina.

Posto isto, o morgado da Agra pôs os olhos com desdém no tabuleiro do
almoço, e, com muita repugnância, consentiu ao apetite que se desjejuasse
com uma linguiça assada, almoço que ele alternava com um salpicão frito.
Depois, quando se estava vestindo, olhou para a casaca de briche e para as
pantalonas apolainadas, e teve engulho desta fatiota. Vestiu-se, saiu apressado,
e entrou no estabelecimento do Sr. Nunes na rua dos Algibebes. Aqui o
vestiram o mais desgraciosamente que puderam, com um farto paletó de pano
cor de rato, e umas calças xadrez cinzento, e colete azul, de rebuço, com
botões de coralinas falsas. No Chiado abjurou um chapéu de molas de
merino, e comprou outro de castor, à inglesa. Cumpria-lhe vestir as primeiras
luvas da sua vida. No vesti-las arrostou com dificuldades, que venceu,
rompendo a primeira luva de meio a meio. Disse-lhe a luveira que não
introduzisse os cinco dedos ao mesmo tempo, e ajudou-o na árdua empresa.
Dois mancebos galhofeiros, que estavam na loja, riram indelicadamente da
inexperiência do sujeito desconhecido. Um deles, confiado na inépcia
tolerante do provinciano ou suposto brasileiro, disse, a meia voz, ao outro:
— Quatro pés nunca vestiram luvas.
Calisto encarou neles com sorriso minacíssimo, e disse à luveira:
— As luvas são boa coisa para a gente não dar bofetadas com as mãos.
Os joviais sujeitos olharam-se com ar consultivo, sobre o despique digno da
afronta, e tacitamente concordaram em se irem embora.
Ao meio-dia, entrou o morgado na Câmara, e fez sensação. As calças de
xadrez eram uma das grandes desgraças, que a Providência, por intermédio do
Sr. Nunes aljubeta, mandara a este mundo. Como se a substância não fosse já
um crime de leso-gosto e lesa-seriedade, ainda por cima as pernas caíam sobre
as botas em feitio de boca de sino, fadistamente.
A Câmara afogou o riso, salvo o Dr. Libório do Porto, que tirou de dentro
esta facécia puxada à fieira do costumado estilo:
— Guapamente entrajado vem mestre Calisto! Faz-se necessário saber que
rolos de pragmáticas lhe impendem entre as botinas e as pantalonas. Certo,
que o urso se pule e lustra. Bom seria que o cérebro se lhe vestisse de
roupagens novas e hodiernos afeites!.
Foram festejados estes apodos pelos tolos mais convizinhos do Dr. Libório.
Calisto houve notícia da zombaria do doutor; a intriga política não perdeu
lanço de acirrar o morgado contra Libório, que era governamental.
Nesta sessão fora dada ao deputado portuense a palavra, na discussão de uma
proposta de lei sobre cadeias. O morgado, assim que lho disseram, aguardou
oportunidade de desforrar-se da chacota.
Ai da Pátria, quando os talentos parlamentares se encanzinam e escamam
nestas pugnas inglórias!