Quantum mutatus ...

À noite, no salão do desembargador Sarmento, soube-se que o morgado da
Agra havia de orar no dia seguinte. Entre as pessoas alvoraçadas com a
notícia, a mais empenhada em ouvi-la era D. Adelaide. Ao encontro de Calisto
Elói saiu ela pedindo-lhe, com requebrada doçura, três entradas na galeria das
senhoras, para ela, irmã e pai.
— Já sou considerado senhora, amigo Barbuda! — disse o velho. — São as
tristes honras da ancianidade!... E lá vou, lá vamos ouvi-lo. Há seis meses que
não saí de casa, nem sairia para ouvir o próprio Berryer ou Montalembert.
— Beijo-lhe as mãos pela cortesia, meu benigno amigo — disse Calisto; —
porém olhe que há de chorar o tempo malbaratado. Eu não vou discorrer,
nem cogitei ainda no que direi. Pedi a palavra, quando uma brava sandice me
esfuziou nos tímpanos, e estorcegou os nervos. Soou-me lá que o carrasco
estava substituindo o anjo S. Miguel. Ó meu caro desembargador, eu entro a
desconfiar que a besta do Apocalipse já tem três pés bem ferrados no
Parlamento! Quando lá meter o quarto pé, a gente escorreita é posta fora da
sala a coices. Peço a V. Exas perdão do plebeísmo dos termos — disse Calisto
voltando-se para as damas, que estavam examinando com espanto as
transfiguradas vestes do morgado. — A boa polícia — continuou ele —
perde-se com a paciência. Hei grão medo de volver-me às minhas serras mais
rudo do que vim.
— Está-se desmentindo V. Exa. — acudiu D. Catarina graciosamente — com
os trajes cidadãos que apresenta hoje! Cuidávamos que havia jurado nunca
reformar a sua toilette de 1820!
Calisto sorriu contrafeito, e sentiu-se algum tanto molestado no seu pundonor
e seriedade. Como a causa da mudança do vestido era pouco menos de
irrisória, o homem foi logo castigado pela própria consciência. A si lhe quis
parecer que era já, perante si próprio, outro sujeito, e que os estranhos lhe
liam no rosto o desaire inquietador. Então lhe foi desabafo o coração.
Socorreu-se dele para contradizer as reprimendas do juízo; e o coração,
coadjuvado pelas maneiras e ditos afetuosos de Adelaide, despontara as
ferroadas do juízo.
Os visitantes habituais do desembargador e as senhoras da casa notaram certa
mudança nos modos e linguagem de Calisto. Dir-se-ia que o paletó e as
pantalonas lhe tolhiam a liberdade dos movimentos, e aquela tão rude quanto
simpática espontaneidade da expressão.
Autorizados filósofos e cristãos disseram que o vestido atua imperiosamente
sobre o moral do indivíduo. Nas páginas imorredouras de fr. Luís de Sousa
está confirmado isto. «É nossa natureza muito amiga de si (diz o historiador
do santo arcebispo) e experiência nos ensina que não há nenhuma tão
mortificada, que deixe de mostrar algum alvoroço para uma peça de vestido
novo. Alegra e estima-se ou seja pela novidade ou pela honra, e gasalhado que
recebe o corpo. Até os pensamentos e as esperanças renovam um vestido novo.»
O adorável dominicano, pelo que diz da alegria que influi no ânimo um
vestido em folha, enganou-se a respeito de Calisto Elói. O homem dava ar de
quebranto e melancolia, salvo se o júbilo se lhe introvertera ao coração. Creio
que era isto. Era o amor abscôndito a magoá-lo docemente. E a não ser o
amor, o que poderia ser senão as calças de xadrez? De feito, o amor, quando é
sério, põe às canhas o mais pespontado espírito, e o mais mazorral também. O
amoroso de grande loquela volve-se canhestro em presença da sua amada; o
sandeu tem inspirações e raptos, que seriam influxo do céu, se não
soubéssemos que o demónio tentador costuma incubar-se e parvoejar
eloquentemente no corpo destes palermas.
Calisto Elói pagou o tributo dos espíritos esclarecidos. Umas eloquentes
simplezas, com que ele costumava alegrar o auditório;
as máximas joviais de Supico e outras com que ele entremeava a conversa; as
gargalhadas provincianas, as liberdades desmaliciosas, o ar de família com que
ele se fazia bem-querer e desculpar de alguma demasia menos urbana do que
faculta a convenção das salas; tudo isto, que lhe ia tão bem ao morgado, se
demudou em recolhimento cogitativo, sombra triste e acanhada parvulez.
Nesta noite, concorreu à partida do desembargador aquele Vasco da Cunha,
galanteador de Adelaide, mancebo bem composto da sua pessoa, sisudo, e
muito católico. Este fidalgo, representante dos melhores Cunhas,
mencionados na História Genealógica da Casa Real, além do brilho herdado,
estava-se gozando de lustre propriamente seu, figurando sempre nos anúncios
pios em que os fiéis eram convidados a assistir a tal festividade religiosa, ou
convocando assembleias de irmandades, para o fim de consultas atinentes à
maior pompa do culto divino. Dito isto, dispensa o leitor que se enumerem
outras virtudes a facto só por si tão significativo. Essas hão de vir aparecendo
naturalmente.
Alguém disse a Calisto Elói que o circunspecto Vasco da Cunha não era
estranho ao coração de Adelaide. Esta nova sobressaltou o peito do morgado,
sem, contudo, lhe enevoar os olhos do discreto juízo, a ponto de se dar em
espetáculo de risível ciúme. Reparou no porte de ambos; e tão graves e
cerimoniosos os viu durante a partida, que não achou razão para os crer
enamorados, bem que, nesta noite, Adelaide jogasse o voltarete com Vasco da
Cunha, e o seu cunhado Duarte Malafaia.
Às onze horas, Calisto Elói retirou-se taciturno e contristado.
A só com a sua consciência, e debaixo do olhar severo dos seus livros, o
marido de D. Teodora Figueiroa refletiu conturbado na transformação do seu
modo de viver e sentir. Gritou-lhe a razão que fizesse pé atrás no caminho
que o levava à ladeira de algum abismo, ou às fauces veracíssimas do amor
que tão ilustres vítimas tinha engolido. A memória, aliada da razão, abriu-lhe
os fastos desgraçados do coração humano, desde o perdimento de Troia até à
extinção do império godo nas Espanhas. Viu desfilarem, uma por uma, todas
as mulheres fatais, desde Dalila até Florinda, a forçada do conde Julião; e, no
coice de todas, a fantasia febril da insónia afigurou-lhe Adelaide.
Aos quarenta e quatro anos a razão pode muito, se o coração já está enervado
e enfraquecido de lutas e quedas; todavia, a razão dos quarenta e quatro anos é
ainda frouxa e transigente, se o coração começa a amar tão a desoras. Não se
calculam as misérias e parvoíces desta serôdia juventude!
Não obstante, Calisto, pouco antes de adormecer por volta das quatro da
manhã, protestara esquecer Adelaide, perguntando a si próprio se seria crime
grande amá-la como os paladinos dos tempos heroicos amaram
incognitamente grandes damas, sem mais logro do seus amores que adoraremnas.
Com isto queria ele responder à imagem plangente de Teodora, que o estava arguindo.
Pobre senhora! Àquela hora já ela andaria a pé, a moirejar pela cozinha, a fim
de mandar almoçados para a lavoura os servos, e cuidar dos leitões.
Ai! maridos, maridos! Quando a Providência vos enviar mulheres deste raro
cunho, encostai a face ao regaço delas, e não queirais saber como é que o
inimigo de Deus enfeita as suas cúmplices na perdição da humanidade!