Outro abismo

O vento esfuziava nas ramalheiras de Campolide.
A lua, a longas intermitências, parecia, wagon dos céus, correr velocíssima
entre nuvens pardas, para ir engolfar-se noutras.
Então era o carregar-se a escuridão da terra, e mais para pavores o rangido das
árvores sacudidas pelos bulcões do setentrião.
Soaram doze horas por igrejas daqueles vales. Era um como crebo soluçar da
natureza por pulmões de bronze. Era o grão clamor da terra em angústias
parturientes de alguma enorme calamidade.
Àquela hora, e por aquela noite capeadora de assassinos e bestas-feras, Calisto
Elói, embrulhado num capote de três cabeções e mangas, que trouxera de
Caçarelhos, passava rente com o muramento da quinta de Adelaide.
Depois, como saísse da vereda escura a um ressio que defrontava com a
frontaria da casa, aqui parou, e, cruzando os braços, se esteve largo espaço
quedo, e fito nas janelas.
Nem lua nem cintila de estrelas no céu! As confidentes daquele amador torvo
como o cerrado da noite, negro como o coração que lhe arfa a lapela esquerda
do colete, são as trevas.
Quis acender um charuto.
Nem os fósforos vingaram lampejar na escuridão.
E o vento assobiava no vigamento da casa, e nas orelhas de Calisto, o qual,
levado do instinto da conservação, levantou a gola do capote à altura das
bossas parietais, e disse, como Carlos VI:
— Tenho frio!
E passou-lhe então pelo espírito um painel da sua situação tirado pelo natural.
Viu-se no espelho que a razão lhe ofereceu, e cobrou horror da sua figura.
Bem que tal acto não implicasse delito, nem afrontasse os bons costumes,
Calisto, apertado no trânsito difícil das índoles que se passam do
comportamento austero e cativo às liberdades e solturas do vício, olhava com
saudade o seu passado, as suas alegrias puras; e, mais que tudo, àquela hora,
como o frio lhe cortava as orelhas, lembrou-se da quentura e aconchego do
leito nupcial.
E como esta visão honesta, para mais o pungir, havia de ser encarecida com
uma imagem de mulher leal e imaculada, Calisto viu D. Teodora de touca,
naquele dormir plácido de quem adormeceu com a alma quieta e intemerata.
Não bastava a touca, tão pudica quanto higiénica, a penitenciá-lo com
remordentes saudades; viu-lhe também o lenço de três pontas de algodão azul
com que ela costumava resguardar os ombros, antes de subir as quatro
escadinhas que conduziam ao alteroso leito de pau-santo.
Se visões análogas, alguma vez, puseram guerra ao demónio tentador dos
maridos infiéis e o venceram, desta feita não se logra a sã virtude do triunfo.
É que as toucas e lencinhos pudibundos, sobre não serem enfeites muito
sedutores, algumas vezes tornam a virtude rançosa e tão-somente boa para
adubar palestras de avós com as netas casadoiras. Este mal deve-se às artes da
estatuária, artes em que a imaginativa não põe nada seu, porque tudo é
copiado da natureza nua, ou quase nua. Nem sequer as Níobes, as Lucrécias, e
Penélopes o buril respeita. Nos casos mais lacrimáveis e trágicos, querem
fados maus que os olhos achem sempre pasto à cobiça, quando a impressão
devera ser toda para levantamentos de espírito, e «visões altas», como diz o
bom Sá de Miranda.
Quando a arte desonesta não despe as figuras, veste-as de feitio que pelo
ondeado das roupas transparentes esteja o pecado a fazer negaças a conjeturas
tais que, certo estou, Calisto Elói, antes de se empestar em Lisboa, se tais
impudicícias visse, romperia no Parlamento os vesúvios da sua eloquente
indignação. E a posteridade, ajuizando da moral desta nossa idade de limos e
alforrecas, viria a este lameiral esgaravatar a pérola da idade áurea, caída dos
lábios do marido de D. Teodora, a qual, segundo fica dito, dormia de touca e
lencinho de algodão azul de três pontas.
Esta peregrina imagem não bastou a desandar Calisto pelo caminho de Lisboa,
e do seu gabinete, onde os pergaminhos dos seus livros pareciam rever
lágrimas de amigos descaradamente desprezados. O infeliz não desfitava olhos
de certa janela, desde que vira perpassar uma luz pelos resquícios das
portadas. Podia a traída Teodora antepor-se aos olhos extasiados do esposo,
com a pudenda touca, ou com as madeixas estreladas de brilhantes, que ele
não a via nem queria ver.
Aí por volta da meia-noite estava Calisto recordando o que dissera, em
circunstâncias análogas, Palmeirim, aquele grão cavaleiro de Francisco de
Morais, diante do castelo de Almourol que fechava nos seus arcanos a
formosa Miraguarda.
Nisto cismava, compreendendo então as frases mélicas dos famosos
amadores, quando as portadas da janela se abriram subtilmente, e logo a
vidraça foi subindo muito de leve.
O recanto, em que o morgado da Agra se abrigara do vento, estava fora do
caminho, sumido aos olhos da pessoa que abrira a janela. Ao mesmo tempo,
ouviu ele passos na estrada, e logo viu acercar-se um vulto rebuçado da casa
de Adelaide, e parar debaixo da janela que se abrira.
Conjeturou Calisto de Barbuda que D. Catarina Sarmento, a esposa infida,
reincidira nas presas do velho pecado, e sentiu algum tanto molestada sua
vaidade de regenerador de corações estragados.
Também suspeitou que Bruno de Vasconcelos, quebrando a palavra jurada,
voltara do estrangeiro a reatar a criminosa aliança.
Não lhe deram tempo a mais conjeturas. O encapotado expetorou um
cacarejo de tosse seca; da janela, como contra-senha, respondeu outro
cacarejo de mais simpático timbre, e logo as duas almas se abriram neste diálogo:
— Ainda bem que recebeste a minha carta, Vasco!. — disse Adelaide. —
Estavas em casa da tia condessa? Eu mandei lá por me lembrar que se fazia lá
hoje a novena das Chagas.
— Fiquei espantado — disse Vasco da Cunha. — Que rápida deliberação
foi esta?! Vir para uma quinta com tão mau tempo! Foi caso de maior!.
— Fui eu a causa — disse ela. — São melindres do meu coração, que, por
amor de ti, não sofre que outra voz de homem lhe fale a linguagem que eu só
quero e aceito da tua boca. Antes me quero aqui escondida com a tua imagem,
que ver-me obrigada a tolerar os atrevimentos de Calisto de Barbuda.
— Quê! — atalhou Vasco — pois aquele homem tão sério!. tão temente a Deus!.
— É um hipócrita com a brutalidade de um provinciano!. Ofereceu-me
uns versos em segredo! Que ultraje! Que falta de respeito à minha posição.
— E que desmoralizada e irreligiosa criatura! Casado, já daqueles anos,
legitimista, e católico, segundo diz, e ousar. Estou espantado! E a tia condessa
que me tinha encarregado de o convidar para assistir no domingo à festa das
Chagas! Fiem-se lá!. E tu, não faltes à festa, Adelaide. Este ano fazemo-la com
toda a pompa. O pregador já me leu o discurso, e trata eruditamente a
matéria. A prima Lacerda vai cantar um Benedicite, e a prima viscondessa de
Lagões canta um Tantum ergo. Havemos de fazer melhor festa que a do
conde de Merles. Eu começo amanhã a colher flores e a pedi-las para enfeitar
o altar dos três reis magos e das três virtudes cardeais, de que me fizeram
mordomo, não sei se sabias?
— Não sabia, meu amor — disse Adelaide, congratulando-se com os
entusiasmos pios do excelente jovem.
A palestra prosseguiu neste tom por espaço de uma hora.
A lua espreitava estas duas pessoas por entre as nuvens, que a pouco e pouco
se foram descondensando. O céu azulejou-se e estrelou-se para galardoar a
virtude do mordomo das três virtudes cardeais e da bela menina destinada a
maridar-se com o mais enérgico influente da festa das Chagas, com o que o
devoto conde de Merles se havia de dar a perros.
No entanto, Calisto Elói, consultando a sua consciência a respeito de Vasco
da Cunha, decidiu que o homem, se não era um santo, propendia
grandemente para a sensaboria do idiotismo. Esta crítica é a prova de um
ânimo já iscado da peçonha da meia impiedade que degenera em impiedade
inteira. Já como castigo de escarnecer um jovem virtuoso, sentia ele encher-se
lhe de amargura o coração. Não bastava ouvir-se qualificado de hipócrita
brutal por Adelaide; quis demais disto a providência dos amantes lerdos,
providência que eu não posso escrever senão com p pequeno, quis, digo, que
Vasco da Cunha, mancebo em flor de anos e gentileza, se estivesse ali
rejubilando em novenas e mordomias das três virtudes cardeais, enquanto ele,
Calisto, a mais de meio caminho da morte, ardia em fogo impuro e cobiça
pecaminosa, com os olhos cerrados à visão duas vezes pura de uma esposa de
touca e lencinho azul de três pontas sobre as espáduas não despiciendas,
segundo me consta.
Merecem escritura as últimas frases de Adelaide e Vasco.
A menina, interrompendo os enlevos do devoto jovem, que se deleitava em
conjeturar a zanga do conde de Merles, perguntou-lhe, com doce requebro,
quando viria o dia suspirado da sua união.
Vasco deteve a resposta alguns segundos, e disse:
— Deixemos ver se morre minha tia Quitéria, que me quer deixar os
vínculos do Algarve.
— Pois nós — volveu Adelaide magoada — não poderemos ser felizes
sem os vínculos da tua tia Quitéria, meu Vasco?
— Ninguém é feliz desobedecendo aos seus maiores, — replicou Vasco.
— A tia Quitéria quer que eu espere a volta de el-rei para depois tomar ordens
sacras, e trazer mais uma mitra episcopal à nossa linhagem onde estavam
como em vínculo as principais preluzias do reino.
Adelaide, não obstante o coração, quando aquilo ouviu, sentiu-se mal do
estômago.
Outro abismo

Esta pungente lancetada não esvurmou o apostema do peito de Calisto de
Barbuda. Desde que qualquer sujeito perde o siso do coração, escusado é
esperar que a razão lho restaure; em tão boa hora que ele o recupere depois de
amargas provas. O homem, porém, que amanhece tolo aos quarenta e quatro
anos, a mim me quer parecer que, ao entardecer-lhe a vida, a tolice refinará.
Tenho dois grandes exemplos disto: um é Calisto de Caçarelhos; o outro é
Henrique VIII de Inglaterra. Este, aí pelas alturas dos quarenta anos, tão bom
homem era que até escrevia contra ímpio Lutero, e vivia santamente com a
sua esposa, Catarina de Aragão. Ensandeceu de amor, vinte anos depois de
marido exemplar, e daí por diante sabe o leitor que golpes ele deu no peito
invulnerável do papa e no frágil pescoço das pobres mulheres.
Calisto Elói não será capaz de repudiar nem degolar Teodora, porque neste
país há leis que reprimem os patetas sanguinários; todavia, eu não assevero
que ele seja incapaz, alguma hora, de lhe chamar parva e hedionda, e de lhe
atirar com a touca e com o lençol azul de três pontas à cara vermelha de
pudor. Veremos.
Calisto, digamo-lo sem refolhos, caiu. Atascou-se. Foi de cabeça ao fundo do
pego em que deram a ossada o último rei dos godos, e Marco António, e o rei
enfeitiçado pela comborça Leonor Teles, e Simplício da Paixão, e várias
pessoas minhas conhecidas, que experimentaram todos os sistemas de
desfazer a vida, desde o muro de S. Pedro de Alcântara até às cabeças dos
palitos fosfóricos.
Este enguiçado Barbuda, na volta de Campolide, não teve uma lágrima que
chorasse sobre a sua dignidade esfarrapada. Circunvagou a vista pelos seus
livros, figurou-se-lhe ver na lombada de cada in-fólio o olho de um demónio
zombeteiro, bem que aqueles pergaminhos encadernassem almas, no céu
bem-aventuradas, e na terra imorredoiras, almas que neste mundo se
chamaram fr. João de Jesus Cristo, fr. Pantaleão de Aveiro, fr. António das
Chagas, e dezenas destes talismãs, que têm salvado o leitor e a mim de
soçobrarmos nos parcéis que esbravejam à volta de Calisto.
Eram duas da manhã quando o morgado experimentou uma sensação, que
viria a definir-lhe o espírito, se alguém carecesse de ver este homem a luz
extraordinária.
Nas águas-furtadas do andar em que ele morava, residia uma viúva de um
tenente, senhora de anos insuspeitos, de muitas lérias, minguada de recursos,
e, por amor disso, se oferecera a tratar da casa e da cozinha do deputado. Às
duas horas, pois, bateu Calisto à porta da vizinha, e, como ela lhe falasse,
exprimiu ele a sensação imperativa que o levou ali, por estes termos:
— Sra. D. Tomásia, há por aí alguma coisa que se coma?
— Não há nada feito; mas eu vou fazer chá, Sr. Barbuda, e o que V. Exa. quiser.
— Olhe se me pode frigir uns ovos com presunto — volveu ele.
— Pois lá vão ter daqui a pouco.
— Veja lá que se não constipe, Sra. D. Tomásia — recomendou ele.
— Não tem dúvida. Olhe que eu tenho muito que lhe dizer. Achou um
bilhete de visita na escrivaninha? — perguntou D. Tomásia pelo buraco da fechadura.
— Não achei.
— Pois lá está. Faça favor de ir, que eu vou vestir-me.
— Então a Sra. D. Tomásia está-se constipando? Ora esta! Isso é que eu
não queria!. Cá desço, e até logo.
O bilhete, que o deputado encontrou, dizia: IFIGÊNIA DE TEIVE PONCE
DE LEÃO, e logo a lápis: viúva do tenente-general Gonçalo Teles Teive
Ponce de Leão.
Desfilaram por diante do espírito de Calisto Elói regimentos de ilustres
famílias oriundas dos Teles e dos Teives e dos Ponces de Leão. Na linhagem
dos Barbudas também alguma vez tinham entrado os Teives, e uma décima
nona avó de Calisto viera de Espanha, e era Ponce, dos Ponces genuínos dos
duques de Banhos.
Estava o morgado combinando estes parentescos contraídos aí pelo último
quartel do século XIII, quando D. Tomásia entrou com o presunto e ovos.
Calisto assentou o prato sobre dois volumes da História Genealógica, que lhe
tomavam a banca; e, quanto a deglutição lho permitia, nalguns intervalos, foi
perguntando:
— Então quem é esta senhora que me procurou?
— Eu só sei dizer — respondeu D. Tomásia — que é uma criatura linda,
linda quanto se pode ser!
— Como assim?! — atalhou Calistto, retendo uma lasca de presunto entre
os dentes molares — pois ela não é a viúva de um tenente-general, que
naturalmente havia de morrer velho?
— Pode ser que ele morresse velho; mas a viúva o mais que pode ter é
trinta anos.
— E com que então, galante?
— É uma imagem de cera. V. Exa. há de vê-la. E tão elegante! A cintura
cabe aqui — prosseguiu D. Tomásia, formando um anel com dois dedos. —
Eu, quando ouvi parar uma carruagem, julguei que era V. Exa. e vim abrir as
portas do escritório. A senhora veio subindo, e puxou à campainha. Eu
espreitei lá de cima, e, a falar a verdade, lembrei-me se seria a sua esposa, que
lhe quisesse fazer uma agradável surpresa. Perguntou-me ela pelo Sr. Barbuda
de Benevides, e foi entrando comigo para a sala. Levantou o véu, e disse:
«Não está em casa?» Que voz, Sr. morgado, que voz de criatura aquela!
— E isso a que horas foi? — atalhou Calisto. — Era por noite alta?
— Não, meu senhor. Eram seis horas da tarde. V. Exa. tornou às oito, mas
saiu logo; e, quando eu voltei de fazer uma visita, já o não achei para lhe dar
esta notícia.
— E depois, a senhora que mais disse?
— Mostrou-se pesarosa de o não encontrar, e prometeu de voltar hoje às
três horas.
— E a Sra. D. Tomásia saberá o que me quer essa dama?
— Não sei; o que ela somente disse foi que V. Exa. era um génio.
— Pois ela disse-lhe isso sem mais nem menos?
— Foi a respeito de ver aqui estes livros muito grandes, acho eu. Esteve a
reparar neles com uma luneta. E a graça com que ela punha a luneta!. Mulher
assim!. Os homens às vezes, por mais asneiras que façam, têm desculpa!.
— As paixões, minha Sra. D. Tomásia. — obtemperou o morgado, e
lambeu os beiços molhados da libação de um vinho nervoso daquela
garrafeira já mencionada. E prosseguiu! — As paixões do amor!. Nem os
grandes sábios, nem os grandes santos se isentaram delas. Somos todos de
quebradiço barro; somos uns pucarinhos de Estremoz nas mãos infantis das
mulheres. O tributo é fatal: quem o não pagou aos vinte anos, há de pagá-lo
aos quarenta, e mais tarde, quando Deus quer. Deus ou o demónio, que eu
não sei ao justo quem fiscaliza estes mal-aventurados sucessos de amor, que a
história conta e a humanidade experimenta cada dia.
— É um gosto ouvi-lo! — interrompeu D. Tomásia. — Bem no disse
aquela senhora: V. Exa. é um génio, e fala de modo que se mete no coração da
gente. Quer que lhe diga a verdade, Sr. Barbuda? Foi bom que V. Exa. me
encontrasse nesta idade. Se eu fosse nova e bonita, como dizem que fui, um
homem como V. Exa. havia de me dar cuidados.
— Ora, minha Sra. D. Tomásia, isso é lisonja e favor. Eu já não estou
também na idade de tocar corações, nem os meus hábitos vão muito para aí!
— Idade! — acudiu a viúva do tenente . V. Exa. pode dizer que tem trinta
e cinco anos, que ninguém lho duvida. É mania agora dos rapazes quererem à
fina força passar por velhos. Pergunte quem quiser à vizinha do primeiro
andar se o acha velho. Está-me sempre a perguntar se V. Exa. me diz dela
alguma coisa. Conhece-a?
— Bem sei: uma mocetona cheia, com umas fitas escarlates na cabeça.
Não é má.
— E sabe V. Exa. que mais? Eu vou apostar que esta senhora que veio cá
traz coisa no coração que a obrigou!. Assim uma senhora nova, sozinha, tão
encantadora!. Aquilo, a meu ver, é que já o ouviu no Parlamento, e apaixonouse.
Há muitos casos assim cá em Lisboa de senhoras apaixonadas pelos
homens de talento. O talento é uma coisa muito bonita! O meu marido casou
comigo quando era sargento do treze de infantaria, e andava nos estudos. Era
feio, e ao princípio tinha-lhe medo; mas assim que ele me mandou um
acróstico — V. Exa. sabe fazer acrósticos?
— Ainda não me pus a isso.
— Pois como eu me chamo Tomásia Leonor e tenho catorze letras fez-me
ele um soneto que me deu volta à cabeça, e tamanho incêndio que me tomou
o peito, que o amei até à morte, e ainda agora, ficando eu viúva aos trinta e
nove anos, fui, sou e serei fiel à sua memória.
Neste ponto, D. Tomásia, ferida na alma pelo acróstico memorando, chorou.
Calisto represou-lhe os choros com algumas máximas consoladoras sobre a
morte, e bocejou, já porque eram três horas e meia da manhã, já porque o
diálogo descaíra nos aborrimentos de uma palestra em dia de fiéis defuntos.
D. Tomásia começou a espirrar, porque se não agasalhara bastantemente, e
assim se afastaram estas duas almas, que uma hora de expansão aproximara.
Calisto, conforme ao antigo uso, levou um livro para a cabeceira do leito.
Escolheu poeta, e saiu-lhe o seu já tão querido outrora Sá de Miranda. Abriu
ao acaso, e saiu-lhe numa página d'' Os Estrangeiros esta máxima: Duas sortes
de homens há no mundo que se possam servir: ou muito parvos ou muito
namorados, e ainda os namorados têm grande vantagem.
A meu juízo, o espírito daquele honrado doutor, que tão santo marido fora de
Briolanja de Azevedo, até de saudades dela se deixar morrer, ali lhe viera,
àquela hora, relembrar ocasionalmente e a ponto uma das suas máximas,
como em paga do afetuoso respeito com que Barbuda o lia e inculcava à
juventude depravada.
Calisto Elói pôde ainda admirar o lídimo português da máxima, e adormeceu.