Figura, vestido, e outras coisas do homem

Assim que os personagens dos romances começam a ganhar a estima ou
aversão de quem lê, vem logo ao leitor a vontade de compor a fisionomia do
personagem plasticamente. Se o narrador lhe dá o bosquejo, a imaginativa do
leitor aperfeiçoa o que sai muito em sombra e confuso no informe debuxo do
romancista. Porém, se o descuido ou propósito deixa ao alvedrio de quem lê
imaginar as qualidades corporais de um sujeito importante como Calisto Elói,
bem pode ser que a intuição engenhosa do leitor adivinhe mais depressa e ao
certo a figura do homem que se lha descrevessem com abundância de relevos
e rara habilidade no estampá-los na fantasia estranha.
Não devo ater-me à imaginação do leitor neste grave caso. Calisto Elói não é a
figura que pensam. Estou a adivinhar que o enquadraram já em molde
grotesco, e lhe deram a idade que costuma autorizar, mormente no congresso
dos legisladores, os desconcertos do espírito, exemplificados pelo deputado
por Miranda. Dei azo à falsa apreciação, por não antecipar o esboço do
personagem. Acudo pelos créditos do morgado.
Calisto Elói, naquele tempo, orçava por quarenta e quatro anos. Não era
desajeitado da sua pessoa. Tinha poucas carnes, e compleição, como dizem,
afidalgada. A sensível e dissimétrica saliência do abdómen devia-se ao uso
destemperado da carne de porco e outros alimentos intumescentes. Pés e
mãos justificavam a raça que as gerações vieram adelgaçando de carnes. Tinha
o nariz algum tanto estragado das invasões do rapé e torceduras do lenço de
algodão vermelho. A dilatação das ventas e o escarlate das cartilagens não
eram assim mesmo coisa de repulsão. Estes narizes, se não se prestam à
poesia lírica, inculcam a serenidade do seus donos, o que é melhor. Eram
assim os narizes de José Liberato Freira de Carvalho e de Silvestre Pinheiro.
Quase todos os estadistas de 1820 se condecoravam com a rubidez nasal. Não
sei que há nisto indicativo de estudo, gravidade e meditação; mas há o quer que seja.
As restantes feições de Calisto Elói de Silos eram regulares, a não querermos
encarecer a alta e brunida cara, que poderia servir de rótulo a um talento
abalizado, se o inimigo da Lucrécia Bórgia não fosse, a meu ver, capacidade
eminente, viciada pela educação e tradições de família. Excedia a estatura meã
e era direito de pernas. No tronco havia tal qual inclinação, que denunciava o
arqueamento da espinha por efeito da incansável leitura e minguado exercício.
O que certamente o desairava era o traje. Calisto Elói vestia de briche da
Golegã, e dos alfaiates de Miranda. A gola e portinholas da casaca eram sérias
demais para estes tempos em que um homem se veste hoje à moda, e daqui a
um mês corre o perigo de sair ridiculamente entrajado. Não se sabe a razão
porque o morgado da Agra se afeiçoara às calças rematando em polainas
abotoadas de madrepérola. Vestira assim umas pantalonas em 1833, quando
se matrimoniou com D. Teodora. Ou porque a esposa gostasse do feitio das
calças, ou porque a moda se conservasse, mantida pelo fidalgo, na comarca de
Miranda, o certo é que desde aquela época todas as pantalonas de Calisto
foram talhadas pelas primeiras, e a abotoadura sempre aproveitada.
Ora isto em Lisboa fez razoável impressão, especialmente no espírito
observador dos gaiatos. Um destes desbragados ousou chamar gebo ao
legislador; e outro levou a gandaíce ao extremo de planear-lhe um assalto ao chapéu.
Fartas vezes o advertira o abade de Estevães da necessidade de reformar o
vestido, e entrajar-se conforme o costume. Calisto respondia que não tinha
que entender em costumes, que não fossem, em lusitaníssima frase, ruins
costumes. Quanto a vestiduras, dizia que o estofo das suas era português
como ele, e o feitio delas era o que mais se aproximava das usanças dos seus
maiores, os quais andavam mais apontados no trajar do espírito que nas
galanices do corpo. Salvo o abade, ninguém se atrevia a contrariá-lo, desde
que um jovem deputado, que lhe observou o arcaísmo do trajo, perguntou se
ele era o alfaiate da Câmara, ou se as modas tinham fiscal subsidiado no
Parlamento.
Aconteceu ainda que outro deputado lhe analisasse galhofeiramente as botas
aguçadas no bico. Sabia Calisto Elói que este deputado era filho de um sujeito
de Esposende que começara sua vida fazendo botas. Assim, pois, que o
chocarreio subiu da análise das botas para a das polainas da calça, teve mão
dele, dizendo-lhe: «Agora, alto aí! Enquanto o senhor escarneceu o feitio das
minhas botas, estava no seu ofício e no seu direito. Das botas acima, não. É o
caso de eu lhe dizer como Apeles ao sapateiro que lhe censurava a pintura: ne
sutor ultra crepidam; o que em linguagem quer dizer: «Não analise o sapateiro
da chinela.» Os circunstantes e a vítima fizeram-se de cor do nariz de Calisto.
Estas passagens, significativas do salgado espírito do provinciano,
sobredoiravam a reputação que o trazia nas boas graças da fidalguia realista.
Sabia Calisto, como profundo genealógico, que existia ilustríssima parentela
sua em Lisboa; porém, pesavam graves motivos para que ele não quisesse
recordar parentesco remoto com tal gente. Era o grão caso que, nos tempos
do Mestre de Avis, estava na corte um Martim Annes de Barbuda, da casa de
Agra de Freimas, o qual conjurava com o Mestre na façanha do assassínio do
conde Andeiro. Até aqui havia muito para que o honrado português se
desvanecesse de tal parente. Martim Annes, todavia, temeroso ou arrependido
depois do feito, passou-se a Leonor Teles, e com ela e a sua família se foi a
Espanha, onde morreu, desprezado e amaldiçoado dos Portugueses. Na época
de D. Duarte, os descendentes de Martim voltaram ao reino, e conseguiram
perdão, e posse dos seus haveres confiscados para a coroa. Eis aqui a razão do
ódio de Calisto à raça do mau português.
Estava ele, um dia, folheando a reformação das leis de 1560 por Diogo de
Pina, no intento de cravejar de erudição um projeto de lei sumptuária, quando
lhe anunciaram a visita do conde do Reguengo. Calisto estremeceu, e disse de
si consigo: «Vens ver o que eram e o que são os legítimos Barbudas de Agra
de Freimas. Sê bem-vindo!»
Entrou o conde, e disse com grande alvoroço:
— Venho apertar nos braços um parente, que me honra tanto com a
inteligência, quanto seus avós me honraram com a lança.
Calisto permaneceu imóvel na cadeira, e tirando os óculos de prata, disse:
— Falta saber se os meus avós se honraram dos avós de V. Exa..
— Eu sou o conde do Reguengo — disse o outro, atónito.
— Já sei. O conde do Reguengo é o décimo sexto varão de Martim Annes de Barbuda?
— Sou eu mesmo.
Calisto ergueu-se, montou os óculos, foi muito de pausa e a passo mesurado à
estante dos seus livros, e tirou um in-fólio. Voltou a sentar-se, mandou sentar
o conde, abriu o livro e disse:
— Esta é a crónica dos reis, escrita por Duarte Nunes de Leão, e mandada
publicar por D. Rodrigo da Cunha, arcebispo de Lisboa. Abro a página vinte e
três, e peço ao excelentíssimo conde do Reguengo que leia.
O conde recebeu entre mãos a crónica, e leu o seguinte desde o parágrafo
indigitado por Calisto:
«As razões que ao Mestre moviam a apressar sua ida para fora de Portugal era
conhecer a condição da Rainha, que além do natural das mulheres, que é
serem vingativas, ela o era mais que todas; mas, como mulher de grandes
espíritos, e astuta que era, onde maior ódio tinha, ali mostrava mais
benevolência, pelo que o Mestre tinha por muito suspeita a mostra de amizade
que lhe fazia, e se temia mais dela, e tanto cria que lhe tinha maior ódio,
quanto mais afeiçoada era ela ao conde João Fernandes, de quem ele a
apartou. juntava-se a isto ter ela mandado chamar a El-Rei de Castela. Pelo
que, sendo ela Rainha, e tendo o favor de El-Rei presente, não confiava o
Mestre que a sua vida estava segura, pois em vida de El-Rei D. Fernando, não
sendo agravada dele, o fez prender e o faria matar. Além disto (as seguintes
palavras estavam sublinhadas na crónica e emendadas com um proh dolor! da
letra de Calisto) muitos dos que se a ele chegaram o deixavam, e se passavam
à Rainha, como fez Vasco Porcalho, e Martim Annes de Barbuda,
comendadores da sua ordem, e Garcia Peres Craveiro de Alcântara, que para
ele se viera.»
O conde entregou a crónica, e disse num tom de aborrido e confuso:
— E então?
— É V. Exa. da progénie desse Barbuda infamado na página eterna de
Duarte Nunes?
— Sou — respondeu ufanamente.
— Pois vá em paz, que eu não procedo desses Barbudas. Eu sou o décimo
sexto varão de Gonçalo Pêro de Barbuda, que morreu em Aljubarrota, na ala
dos namorados. Gonçalo era irmão de Martim; mas, ao entrar na batalha,
pediu a D. João I que lhe legitimasse um filho natural, para que, no caso de ele
perecer, os filhos do irmão tredo lhe não manchassem o solar. Gonçalo
morreu, e D. João I cumpriu a vontade do português de lei.
— O que daí infiro — disse sarcasticamente o conde — é que V. Exa.
procede de um filho natural.
— A mãe do filho natural era abadessa de Vairão, da família dos Alvins —
redarguiu triunfante Calisto.
— Coito danado! — retorquiu o conde.
— Discutamos estes pontos graves — voltou serenamente o morgado da
Agra, tomando rapé. — A décima segunda avó de V. Exa., Jerónima Talha,
era judia de Sesimbra, e esteve como cuvilheira dos sobrinhos de um Heitor
de Barbuda com quem casou. A sua tresavó enviuvou sem filhos e casou com
um filho do capelão. Deste matrimónio nasceu seu avô Luís de Almeida de
Barbuda, que foi o primeiro conde de Reguengo. Reconciliemo-nos, Sr.
conde, pelo que respeita ao sangue de coito danado, se V. Exa. quer
emparelhar o filho do padre com a abadessa de Vairão, tia da mulher de Nuno
Álvares Pereira por Alvins.
O conde ergueu-se acendido de raiva, e disse:
— No que não podemos emparelhar, Sr. Calisto, é na tolice. Vou-me
embora, com a vergonha de ter aqui vindo.
— Não vá envergonhado — acudiu Calisto Elói — que eu é que me hei de
forrar à vergonha de dizer que V. Exa. veio cá.
E, passando a pena de ferro na página da crónica, rasgou a linha que dizia
Martim Annes de Barbuda.