Proh dolor!...

Adelaide, temerosa de algum imprevisto acidente que a desmerecesse no
conceito de Vasco, por causa do morgado da Agra, relatou ao pai o diálogo da
antevéspera, e a promessa da poesia para a noite seguinte.
O desembargador duvidou do entendimento da filha, antes de acreditar na
insânia do seu melhor amigo. Como havia de crer ele no intento desonesto de
um homem que lhe emergira a outra filha da voragem? E, crendo, como se
comportaria em lanço de tanto melindre?
Meditou, e discretamente resolveu que as suas filhas e genro fossem passar
alguma temporada da Primavera na sua quinta de Campolide, e se pretextasse
a doença de uma neta, para que a saída se fizesse naquele mesmo dia. Pôde
mais com o velho a gratidão que a ofensa.
Calisto Elói chegou à hora costumada. Já não entrava à presença do
magistrado com a facilidade e lhaneza de outros dias. A sisudeza do rosto
arguia o incómodo da consciência. Mais lha inquietava a estudada jovialidade
com que Sarmento o recebeu. Antes de perguntar pelas senhoras, lhe disse o
velho o motivo da inopinada saída para ares. Calisto passou o restante da
noite com os amigos da casa; porém, insolitamente abstraído, concorreu a
aumentar a letargia daqueles velhos soporosos, que pareciam juntar-se para se
narcotizarem, e entrarem emparceirados nas silenciosas regiões da morte.
Fez sensação na assembleia tirar Calisto de uma charuteira de prata um
charuto, e baforar colunas de fumo, com uns modos aperalvilhados e
impróprios da sua gravidade. Sarmento, com delicada liberdade, observou a
preponderância que os costumes de Lisboa iam atuando sobre o ânimo do seu
bom amigo. Sentiu que os ruins exemplos vingassem quebrantar aquela
admirável singeleza de trajo e maneiras que o morgado trouxera da sua
província. Lamentou que, em menos de três meses, o modelo do português
dos bons tempos se baralhasse com os usos modernos e viciosos.
Calisto Elói defendeu-se froixamente, alegando que as mudanças exteriores
não faziam implicância às faculdades pensantes; e juntou que, ciente de que
tinha sido incentivo da mofa entre os seus colegas, à conta da simpleza um
tanto anacrónica dos seus costumes, entendera que a prudência o mandava
viver em Lisboa consoante os costumes de Lisboa, e na província, segundo o
seu génio e hábitos aldeãos. Concluiu dizendo que: Cum fueris Romam,
Romae vivito more, e que o fazer-se singular importava fazer-se ridiculoso; e
que os seus anos não eram ainda bastantes para autorizarem a distinguir-se no
mero acidente dos trajos.
Perguntado porque deixara de tomar rapé, costume indicativo do homem
pensador e estudioso, respondeu que alguns escritores modernos atribuíam ao
amoníaco, parte componente do rapé, o deperecimento das faculdades
retentivas, pela ação deletéria que o poderoso alcali exercitava sobre a massa
encefálica. Além de que a fumarada do charuto, sobre ser purificante e
antipútrida, dava aos alvéolos solidez, e consistência aos dentes.
Estas explicações não evitaram que o desembargador, com os seus velhos
amigos, prognosticasse o derrancamento do morgado da Agra, depois que ele
se retirou, algum tanto azedado das reflexões daquela gente encanecida.
Sarmento não o convidara a ir visitar as filhas a Campolide, nem de leve, no
correr da noite, falou delas. Calisto Elói também não suscitou conversa
relativa às senhoras, porque já a doblez do espírito lhe tolhia a usual franqueza
e familiaridade.
Entrou a dementar-se aquela desconcertada cabeça. A saudade, em vez de lhe
tirar lágrimas do íntimo, amadurou-lhe temporãmente a apostema de sandices,
que em todo o homem se cria paredes-meias com o coração. Aí começa ele a
imaginar que o desembargador Sarmento, adivinhando os amores mal
recatados de Adelaide, a obrigara a sair de Lisboa. Corroborava a suspeita não
o convidar ele a visitar as damas. Isto sobre-excitou-lhe o sentimento; porque,
ao seu ver, Adelaide estava penando, havia uma vítima, um coração sopesado,
uma alma em abafos de paixão.
Esta conjetura atirou com Calisto para os tempos cavaleirosos.
O olhar em si, e ver-se manietado pelos vínculos sacramentais, não o reduzia à
compostura e honestidade do seu estado e anos. Ainda assim, sejamos
justiceiros e ao mesmo tempo misericordiosos com esta alma enferma; na
cabeça alucinada de Calisto de Barbuda não havia ideia ignóbil e impudica.
O amor, explodindo da cratera abafada quarenta e quatro anos, dizia-lhe que
era fidalguia de alma não transigir, por conveniências e respeitos sociais, com
a opressão e alvedrio paterno. Se Adelaide o amava como e quanto Calisto já
não podia duvidar, sua honra dele era pôr peito à defesa da opressa, beber
metade do absinto do seu cálice, lutar, sem desdouro da probidade de um
Barbuda, até perecer, exemplo de amadores de antiga têmpera.
Amou quem isto lê, e tresvariou aos vinte anos? Passou por uns hórridos
eclipses de entendimento, que após si deixam lágrimas tardias e vergonhas insanáveis?
Amisere-se, pois, daqueles lucidíssimos espíritos de Calisto, que um por um se
vão apagando ao ventar rijo da paixão, quais se apagam em céu de bronze as
estrelas do mar alto, já quando o náufrago desesperançado finca os dedos
recurvos na espuma das vagas.
Ó malsorteado Calisto! que auréola de patriarca te resplendia em volta do teu
chapéu de merino e aço, quando entraste em Lisboa! Que anjo eras, entrajado
na tua casaca de saragoça sem nódoas! Aquela científica boa-fé com que
procuravas monumentos em Alfama, e água depurante no muco catarroso no
chafariz de El-Rei, e querias que os aljubetas da rua de S. Julião te dessem
conta do chafariz dos Cavalos!.
Que te valeram as máximas de boa vida colhidas a centenares nos teus
clássicos, e enceladas nessa alma, refratária à ternura de tanta jovem escarlate e
sucada, que, lá em Caçarelhos, se enfeitava para achar graça nos teus olhos?
Cairias tu nas pioses desta princesa dos mares, desta Lisboa que filtra aos
nervos dos seus habitantes o fogo que lhe estua nas entranhas?
Cairias tu, anjo?