Ó mulheres ...

Seguiram-se horas de insónia. O juízo dava-lhe tratos amaríssimos ao coração.
O homem sentava-se na cama, e remexia-se inquieto como se o escárnio o
estivesse picando de entre a palha do enxergão.
Os intervalos lúcidos eram-lhe intervalos do inferno. Os axiomas clássicos
sobre o amor caíam-lhe na memória como chuva de dardos. Quem mais o
suplicou foi o mestre e amigo D. Amador Arrais. Este santo bispo
apresentou-se-lhe em visão, com D. Teodora Figueiroa ao lado, e disse-lhe as
palavras do capítulo XLV dos Diálogos: «Em a lei de Cristo a fidelidade que
deve a mulher ao marido, essa mesma deve o marido à mulher; e, se as leis
civis dão mais poder aos maridos que às mulheres, não é para as ofender e
maltratar, nem para um ter mor jurisdição sobre si que o outro.»
Seguiram-se outras visões de não menos pavor. Aí pela madrugada, Calisto
Elói amodorrou-se em roncado dormir; mas a fada que lhe abrira os tesouros
virgíneos do coração, a esbelta Adelaide, bateu-lhe com as asas brancas nas
pálpebras, e o homem acordou estrovinhado a desgrudar os olhos, que se
tinham fechado com duas lágrimas, as primeiras que o amor lhe esponjara do
seio, e cristalizara nos cílios, como diria o Dr. Libório.
Então foi o trabalharem-no umas cogitações tão sandias, que seriam
imperdoáveis, se não estivessem na tresloucada natureza de todo o homem que ama.
Entrou a inventariar as alterações que devia fazer no substancial e acidental da
sua personalidade.
O uso do meio grosso pareceu-lhe incompatível com um galã. Aqueles sibilos
da pitada, bem que denotassem espíritos inquietos e gravidade de juízo,
deviam toar ingratamente nos ouvidos de Adelaide. Demais disso, a saraivada
de bagos de rapé que ele sacudia dos sorvedouros nasais algumas vezes
obrigava as damas a formarem sobre os olhos com os dedos um baldaquim
sanitário contra as insuflações imundas do sábio. Deliberou, portanto, imolar
as delícias pituitárias.
Viu-se no espelho de barbear, modesto utensílio do estojo de bezerro, e
conveio no deslavado prosaísmo da sua cara clerical. Resolveu deixar pêra e
meia barba, como transição para bigode, que devia ir-lhe bem na tez um tanto
moreno-pálida.
Como o estudo lhe havia extenuado os olhos, e por amor disso usava óculos
de prata quando lia, adotou a luneta de oiro e molas.
Neste propósito, saiu a delinear as reformas capilares; fez alinhar as bases de
uma cabeleira que trouxera escadeada da província, e consentiu que lhe
encalamistrassem dois topes rebeldes ao ferro.
Depois, quando a ânsia de uma pitada começava a importuná-lo, fez provisão
de charutos, e fumou o primeiro com aflitivas caretas, e engulhos de
estômago.
Colheu informações dos alfaiates de melhor fama, e foi ao Keil encomendar
duas andainas de fato. O artista ofereceu-lhe os figurinos; e, como lhe falasse
francês, Calisto supôs que o atencioso alfaiate lhe dava a conhecer os retratos
de alguns sujeitos ilustres da França. Corrido do engano, depois de ler as
indicações dos trajos, saiu dali a procurar mestre de línguas, e a comprar
dicionários e guias de conversa.
Se o leitor mais perseguido da fortuna esquerda nunca passou por lances
análogos, não se tenha em conta de desgraçado.
Quem tivesse conhecido, um mês antes, Calisto Elói de Silos e Benevides de
Barbuda, devia chorá-lo, quando o viu entrar num café e pedir águas para
combater os vómitos provocados pelo charuto!
Irá perder-se aquela alma tão portuguesa, aquele exemplar marido, aquele
sacerdote e glorificador dos clássicos lusitanos?
O amor abrirá no pavimento da Câmara um alçapão, onde se afunda aquele
grande brilhante, desluzido, mas prometedor de refulgente lume?
Di meliora piis!

Ó Lisboa!.

Ó mulheres!.