Vai cair o anjo ...

A respeito do último discurso de Calisto Elói, as gazetas governamentais
estamparam que a sala da representação nacional nunca tinha sido testemunha
de insolências de tamanha rudeza e tão audaciosa ignorância. Os jornais da
oposição liberal disseram que o representante de Miranda, à parte as demasias
escolares do seu discurso, dera uma útil, bem que severíssima lição, aos
meninos que jogueteiam com o País, indo ao santuário das leis bailar em
acrobatismos de linguagem, que seriam irrisórios em palestra de estudantes de
seleta segunda.
Em casa do desembargador é que o morgado deslumbrou o renome dos
fulminadores de catilinárias e filípicas. A numerosa roda do fidalgo legitimista
encarava com venerabundo assombro em Calisto Elói. As raças godas, que o
não conheciam, concorreram a dar-lhe os emboras a casa de Sarmento.
Sangue dos Afonsos e Joões não se dedignava de inventar em Calisto um
primo. Todos queriam ter nas artérias sangue de Barbudas. E ele, o
genealógico por excelência, modestamente contraditava o empenho de alguns
parentes honorários, bem que, de si para si, e para alguns amigos, se ufanava
de não carecer de tal parentela para igualar-se barba por barba com os mais
antigos titulares em limpeza de sangue.
As expressões laudatórias que mais calaram no ânimo de Calisto Elói disse-as
Adelaide. A menina, confessando sua surpresa no Parlamento, foi sincera.
Não o julgava tão denodado e destemido em face de gente nova, que parecia
acovardar-se diante da coragem de um provinciano algum tanto achamboado.
Disse ela à mana Catarina que a cara de Calisto parecia iluminada, e no todo
das feições e ademanes se revelava certa nobreza e garbo, que o faziam
parecer mais novo.
E era assim. Os quarenta e quatro anos do morgado, vividos na aldeia, e no
resguardo da biblioteca, viçavam ainda frescura de juventude. A reforma do
trajar fora grande parte nisto. A casaca antiga, e o restante da roupa trazida de
Miranda tolhiam-lhe a elegância das posturas e movimentos, nos primeiros discursos.
Cícero e Demóstenes, se entrassem de fraque no fórum ou na Ágora,
desdourariam os mais luzentos relevos das suas esculturais orações. A
estatuária do orador pende grandemente do alfaiate. Vistam Casal Ribeiro ou
Latino Coelho, Tomás Ribeiro ou Rebelo da Silva, Vieira de Castro ou Fontes
de casaca de briche e gravata sepulcral da mandíbula inferior: hão de ver que
as pérolas desabotoadas daquelas bocas de oiro se transformam em granizo
glacial no coração dos ouvintes.
— Eu estava encantada de ouvi-lo, Sr. Barbuda — disse Adelaide. — Tem
uma voz muito sã e argentina. Gostei de ver a presença de espírito de V. Exa.,
quando se levantou aquela algazarra contra as suas ironias. Lembrou-me então
que prazer sentiria sua senhora, se o escutasse!
— Minha prima Teodora decerto me não atendia — observou o morgado.
— Enquanto eu falasse, estaria ela pensando no governo da casa, e na calacice
dos criados. Eu já disse a V. Exa. que a minha prima Teodora entendeu no
sumo rigor da expressão a palavra «casamento». Casamento deriva de casa.
Senhora de casa e para casa é que ela é. E eu assim a aceitei e assim a prezo.
— Mas o coração. — atalhou Adelaide.
— O coração, minha senhora, ninguém lá nos disse que era necessário à
felicidade doméstica. Tanto sabia eu o que era coração, como aquela
criancinha, que a sua Exma. mana tem nos braços, sabe o que é sensação do
fogo. Ora veja como ela está estendendo as mãozinhas inexperientes para a
chama das velas. Se as tocar, que dor não sentirá ela!
— Então, — volveu a filha do magistrado — hei de crer que V. Exa. ainda
ignora o que seja coração. o que seja amor?
— Se ignoro o que seja. — balbuciou Calisto. — Sabe V. Exa. —
prosseguiu ele, reanimado, após longa pausa — sabe V. Exa. que no paraíso
existiu uma celestial ignorância, até ao momento em que na árvore da ciência
tocou Eva?
— Sim. E Adão também tocou.
— Depois, minha senhora. Mas não discutamos a primazia: tocaram
ambos, e eu compreendo que deviam ambos pecar. Maior crime seria a
resistência a Eva que a Deus. Perdoe-me o céu a blasfémia!. A que hei de eu
comparar nos nossos tempos, e neste instante, a árvore da ciência, da ciência
do coração?!. Comparo-a a V. Exa..
— A mim?! Que ideia!
— AV. Exa.. Eu contemplei-a, e. aprendi!. Hoje sei o que é coração: agora
começo a estudar a maneira de o matar ao passo que ele vai nascendo.
Calisto levantou-se, agradecendo à Providência a chegada de um ancião
respeitável que se aproximava dele a cortejá-lo.
Adelaide quedou pensativa. Refletiu, e considerou-se molestada e
menoscabada no respeito que devia às suas virtudes um homem casado.
Receosa de ajuizar mal, por equívoca inteligência do que ouvira, buscou azo
de provocar explicações de Calisto Elói. Como a oportunidade não lhe saísse
de molde, consultou a irmã, referindo-lhe o suposto galanteio do morgado. D.
Catarina dissuadiu-a de pedir esclarecimentos, aconselhando-a a simular que o
não entendera.
Pouco antes de terminada a partida, um jovem legitimista recitou um poemeto
dedicado ao nascimento do terceiro filho do Sr. D. Miguel de Bragança.
Perguntou alguém a Calisto se conversava alguma hora com as musas, ou se, à
maneira de Cícero, escrevia o desgracioso:
Ó fortunatam natam, me consule, Romam.
Disse o morgado, relanceando os olhos a Adelaide, que o seu primeiro parto
métrico apenas tinha de vida quarenta e oito horas, e tão aleijado saíra que ele
se envergonhava de o oferecer ao apadrinhamento de pessoas autorizadas.
Instaram damas e cavalheiros pela amostra da obra-prima, que certamente o
era, atenta a modéstia do poeta.
— São versos — disse ele — que se poderiam mostrar aos quinze anos, e
que seriam derisão e lástima aos quarenta e quatro anos.
Objetaram as damas argumentando que o homem de quarenta e quatro anos
devia receber as inspirações dos vinte, porque no vigor da idade é que o
coração fulgura em toda a sua luz.
Trejeitou Calisto uns esgares de satisfação ridícula. Eram os precursores de
alguma enorme necedade.
Embora resistisse à exposição da sua estreada musa, não se conteve que,
despedindo-se de cada uma das senhoras da casa, não dissesse, à puridade, a
D. Adelaide:
— V. Exa. verá as trovas que só Deus viu, e ninguém mais verá no mundo.
D. Adelaide ficou embaçada. Seria agravar as meninas de dezoito anos, e
educadas como a filha do desembargador, e amantes como elas de um
comprometido esposo, estar eu aqui a definir a entranhada zanga que lhe fez
no espírito dela o despropósito de Calisto. A estima afetuosa que lhe ela
ganhara, por amor daquela cavalheirosa ação, por onde a paz doméstica se
restaurara, não teve força de rebater o tédio e o ódio do tom misterioso do
provinciano.
Enquanto ela confiava da irmã o despeito e aversão com que a deixaram as
últimas palavras de Calisto Elói, estava ele no seu gabinete retocando e
piorando aquelas linhas rimadas, a cuja rebentação assistiu o leitor com
piedosa tristeza.