Ecce Iterum Crispinus ...

Corrido um quarto de hora, fez-se na Câmara o silêncio da subterrânea
Pompeia. É que o Dr. Libório ia falar.
— Sr. presidente e senhores deputados da Nação portuguesa! — disse ele. —
Vem-nos agora sob a mão assunto, até aqui pretermitido. Pelo que toca e frisa
com cadeias pátrias, direi os cinco estigmas que um estilista de fôlego esculpiu
nos frontais desses antros:

INJUSTIÇA!
IMORALIDADE!
IMUNDÍCIE!
INSULTO!
INFERNO!
Inferno, Sr. presidente, inferno dantesco, inferno teológico em que há o
ranger de dentes, stridor dentium!
Que é da civilização desta misérrima e tão coitada terra? Quem nos lampeja
verdade nesta escureza em que nos estorcemos? Ai! A verdade ainda não
matiza de rosicler a alvorada do novo dia. As ideias entre nós estão como
flores palpitantes no gomo nascente. Eu me esquivo, Sr. presidente, o lavor de
historiar as sucessivas fases que têm percorrido os métodos de aprisoamento.
Urge primeiro pregoar a brados que se faz precisa funda cauterização na lei. O
direito não se estudou ainda em Portugal. Pois que é o direito? No seu todo
sintético e como corpo doutrinal, o direito é a ciência da condicionalidade ao
fim do homem. Consoante vige e viça o nosso direito de punir, Sr. presidente,
o juiz é o delegado de Deus, o carrasco o substituto do anjo S. Miguel.
Calisto Elói pediu a palavra. O orador prosseguiu:
— Sr. presidente, neste país não se atende às bossas. Os legisladores não
estudam o crime com o compasso sobre um crânio esbrugado. Se fordes a
Windsor Castle e vos meterdes de gorra com os guardas que mostram o
castelo, ouvireis que um dos filhos da rainha tem uma irresistível tendência
para a rapina: é uma pega humana. Uma pega humana, rapacíssima, a mais
não! Sr. presidente, do nosso rei D. Miguel se conta que, já mancebo saído da
puerícia, se entretinha a maltratar animais, chegando um dia a ser encontrado
arrancando as tripas a uma galinha viva com um saca-rolhas.
Vozes: — À ordem! à ordem!
O orador: — Pois em que me transviei da ordem?
Uma voz: — Não se diz no seio da representação nacional: o nosso rei D. Miguel.
O orador: — Eu referi o caso com as expressões em que o acho narrado num
livro mirífico e sobrexcelente do Sr. Dr. Aires de Gouveia.
Uma voz: — Pois não faça obra por inépcias do Dr. Aires de Gouveia.
O orador: — Retiro a dessoante frase, que impensada destilei do lábio, e ao
ponto me reverto. Sem a ciência de Porta e de Blumenbach toda a penalidade
sairá vesga, bestial, e infernalíssima. É natural, Sr. presidente, que o
sentimento se corrompa, assim como o cálculo se empedra, e arraiga o cancro
nas entranhas, e o coração se ossifica, e o hidrocéfalo se gera, ainda nos mais
solícitos em higiene.
Posto isto, Sr. presidente, cumpre dividir os sexos, pelo que diz respeito ao
calibre do castigo. Eu citarei, com quanta ênfase me cabe na alma, algumas
linhas do jovem esplêndido de verbo, que auspicia e promete o primeiro
criminalista desta terra. Falo de Aires de Gouveia, e nele me estribo. O doutor
viageiro diz: «O indivíduo, para quem a lei legisla, e a quem tem em vista, é o
homem (vir), não a mulher (mulier), desde os vinte e um anos, ou época do
predomínio racional, até aos sessenta, ou princípio do período debilitante, no
estado genérico, ou que constitui a generalidade de ser homem, não descendo
sequer às gradações principais, que tornam o homo homem, o género espécie».
É certo, Sr. presidente, que a fémina toca o requinte da depravação, e chega a
efeituar horrores cuja narração é de si para gelar ardências de sangue, para
infundir pavor em peitos equânimes; porém, o móbil dos crimes seus delas é
outro: as faculdades da mulher agitam-se perturbadas; é um período de
evolução, e não há aí arcar com evidência.
Que farte me hei despendido em razões que superabundam no caso em que
me empenho, de parçaria com Vítor Hugo, e com quejandas lumieiras que
esplendem na vanguarda desta caravana da humanidade, que se vai
demandando a Meca da perfectibilidade. Faça-se a lei, restaure-se a justiça, e
depois crie-se a penitenciária, regimente-se o criminoso aprisoado! Aos que já
meteram relha e adubo no torrão do novo plantio, daqui me desentranho em
louvores e muitos e francos e perenes.
Sr. presidente! Pelo que é de cadeias, estamos no mesmo pé de ideias da
inquisição! Que esterquilínios! Que protérvia! Eu quero, com o Dr. Aires, que
todo o preso seja de todo barbeado semanalmente, lave rosto e mãos duas
vezes por dia, e tenha o cabelo da cabeça cortado à escovinha. Eu quero, com
o doutor supracitado, que ele não fume, nem beba bebida fermentada. Água
em abundância, e mais nada potável. Não quero que os presos se conversem,
porque, no dizer do insigne patrício meu, e abalizado humanista, das cadeias
saem delineamentos de assaltos, e assassinatos de homens que sabem ricos.
Lastimado isto, Sr. presidente, um preso descomedido entre os demais é qual
febricitante despedido do leito que, como seta voada do arco, exaspera em
barulho os males de toda a enfermaria.
Eu quero que o preso funcione intelectivamente, e de lavores corporais se não
desquite. O homem sem instrução obra instintivamente, obra egoistamente,
obra cepticamente, se lhe escasseia religião. Ao preso lide-lhe a mão na tarefa,
sim; mas lide-lhe também a cabeça na ideia. Inclinando razoamento para isto,
em todas as cadeias europeias lustram ciências, pulem saber, e se amenizam
instintos. Veja-se o que diz o nunca de sobra invocado Aires, honra e joia da
cidade de Sá de Meneses, de Andrade Caminha, de Garrett, cidade onde me
eu rejubilo de haver vagido nas faixas infantis. É preciso que se entranhe o
sacerdote no cancro das masmorras; mas o sacerdote atilado de engenho e
todo impecável de costumes; e não padres cuja unção sacrossanta se lhes
convertesse no corpo em lascivos amavios. Quem sabe aí joeirar o ótimo para
capelães de prisões?
Depois quer-se um diretor, olho e norma. E tão boas partes se lhes requerem,
que, ainda cismando talhá-lo um composto de virtudes, o não viríamos
delinear senão escorço.
Deu a hora, Sr. presidente. A matéria é tal e tão rica, e para tamanho cavar
nela, que se me confrange a alma de lhe não dar largas. Aqui me fico, e do imo
peito espido brado de louvor, que louvaminha não é, ao ilustre membro desta
Câmara que mandou para a mesa a proposta da reformação das cadeias.
Bênçãos lhe chovam, que assim, com válida mão, emborca a froixo urnas de
bálsamos sobre a esqualidez da mais ascosa úlcera da humanidade.
(Prolongados aplausos. O orador foi cumprimentado por pessoas graves, que
tinham estado a rir-se).
Calisto Elói contemplou-o com a fixidez de médico, que estuda os sintomas
da loucura nos olhos do enfermo. Depois, voltando-se contra o abade de
Estevães, disse:
— Eu queria ver como este Dr. Libório tem a cabeça por dentro.
E, ritmando o compasso com os dedos na tampa da caixa, declamou:
Quantos folgam falar a prisca língua Qual Egas, qual falou Fuas Roupinho,
Qual esse conde antigo, que levara A vila de Condeixa por compadre! Mas
como a falam? Põem sua mestria Em palavras cediças, termos velhos Termos
de saibo e mofo, que arrepiam Os cabelos da gente.
Que dizes disto? Como chamas a estes?.
Que eu não acerto a dar-lhe um nome próprio Que bem quadre a tão râncidos
guedelhas? Quando estas coisas desvairadas vejo Dão-me engulhos de riso, ou
já bocejos, Como arrepiques certos de grã fome!