O doutor do porto

Dr. Libório de Meireles, sujeito de trinta e dois anos, cara honesta, e posturas
contemplativas, reunia os predicados que nos outros países ou passam
despercebidos, ou são solenizados pela irrisão pública; mas, em Portugal, tais
predicados alçam o homem ao cume da escala política, e dão-lhe escolta de
absurdos propícios até onde o parvo laureado quer guindar-se.
Esta pessoa madrugou aos dezoito anos escrevendo poemas satíricos contra
os titulares portuenses, não porque ele se pejasse de vê-los na sua plana, mas
porque lhe fugiram dela. O progenitor de Libório era um tendeiro, que entrara
na estrada franca da fortuna próspera, criando da sua cabeça, para uso de
galegos e carretões madrugadores, um misto saboroso e alcalino de licores,
que ainda hoje sustentam o crédito e primazia. Afora isto, inventara o pai do
doutor a aguardente de nabos.
Libório foi menos feliz que o pai, no género a que se dedicou. Os seus
poemas viveram alguns dias afagados pela calúnia, como a beleza das colarejas
lisonjeada pelo rosto derrancado dos libertinos. Depois, o filho do tendeiro,
graças à baixeza da sua posição social, antes de granjear o ódio dos insultados,
já tinha caído no desprezo deles.
Impelido pelo coice de Pégaso, Libório já não podia retroceder. Foi para
Coimbra: fez-se examinar em latim, e foi reprovado. Desde este funesto dia da
sua vida, Libório começou dizer que era sábio em latim; e, para vingar-se dos
examinadores, traduziu um poema latino com tanta clareza e fidelidade, que o
poema original ficou sendo muito mais inteligível aos ignorantes de latim do
que a versão com que a memória de Lucrécio fora ultrajada.
Formou-se e doutorou-se Libório, sem impedimento de uns rr que, alguma
vez, lhe acalcanharam o orgulho. Em seguida foi visitar a Europa; e, de volta
aos lares, achou-se no regaço da estúpida fortuna que o beijou, na cara, e lhe
disse: «Este anélito dos meus beiços côa-te fogo ao cérebro! Amo-te porque
careço de ti. Eu sou a Circe dos Gregos: bestifico tudo o que toco, e em ti
delego o condão de radiares tua bestidade ao cérebro de quem embarrar por
ti. Proponho-me transfigurar, não já em cochinos, mas em mais nobres
alimárias, os regedores da coisa pública de Portugal. Tu, dileto, vai caminho da
glória. Hoje és deputado; daqui a pouco serás ministro.»
De feito, Libório estava deputado, à mesma hora em que o fidalgo da Agra de
Freimas era fadado a ser um dia verberado no Parlamento pelo filho do
inventor da aguardente de nabos.
Calisto entrou à sala, e, digamo-lo com espanto da sua fleuma, ia tranquilo e
até contente, sem embargo de lhe haverem dito alguns colegas quão funesto
era o contendor que a sua má sorte e imprudência lhe deparara.
O Dr. Libório, dada a palavra, ergueu-se com ademanes não vulgares, alisou
os bigodes, encravou na órbita esquerda um vidro sem grau, e disse:
— Sr. presidente, discorri cerca de um ano por estranhas plagas. Fui-me
mundo fora com o meu bordão e concha de romeiro do progredimento
social. Bebi tragos nas enchentes e mel hibleu que desborda dos mananciais da
civilização. Vi muito, vi tudo, que me abraseavam sedes de aprender, fomes de
Ugolino que rompe seus ferros, e se defronta com lautos estendais de
loirejantes iguarias. Que delíquios de exultação me tomavam alma! Como eu
me sentia a tragar luz e humanidade por aqueles climas onde o supremo
arquiteto chove inventos a frouxo e flux! Vi muito, e vi tudo, Sr. presidente.
Encheu-se-me o peito de anelos pela sorte da Pátria, e de amores muito seus
dela, como de filho que do imo das entranhas lhe quer. Volvi-me no rumo do
ninho meu; e, mal me enrubesceram os horizontes desta minha e tão nossa
terra de fragrâncias e idílios, assim me coou às fibras do seio um como filtro
de melancolia, que me subia aos olhos exsudando lágrimas.
(Calisto Elói, em perigo de rebentar, ri-se. Parte da Câmara ciciou-lhe um sio
prolongado. Calisto acomoda-se e desconfia que a maior parte da Câmara é tola.)
O orador: — É que eu, Sr. presidente, muito adentro de alma sentia uns
rebates de presságio. Locustas de excruciantíssimos tóxicos, que me estalavam
empeçonhando esperanças, enleios, arroubos e dulcíssimas quimeras de ainda
ver florejarem os agros da Pátria, estrelarem-se estes céus plúmbeos e
rasgarem-se os horizontes à onda fecundante deste ubérrimo torrão. Doeu-me
alma, choraram-me olhos, e compreendi a angústia virgiliana do hemistíquio:
dulcia linquimus arva. (Muitos apoiados.)
Pois quê, Sr. presidente? Cansariam mágoas a quem se lhe antolhasse ter de
ainda ouvir nesta casa voz de homem, de homem nado do ventre deste século,
de homem que aqui entrou a verter no gazofilácio do templo do eterno Cristo
da eterna liberdade, a dracma ou o talento, a mealha ou o tesouro da sua
dedicação! Repito, Sr. presidente, quem deixara de estilar bagas de choro, ao
aportar em chão português com o presságio de que, alguma hora, havia de
ouvir neste sancta-sanctorum das luzes, blasfémias contra o luxo que é a
artéria, a aorta do corpo industrial? Quem quisera, por tal preço, dizer às
nações cultas: «Eu sou daquele céu, nasci naquele jardim de magas, onde
Camões poetou glórias para invejas do mundo. Sou da terra dos laranjais onde
suspirou Bernardim. Sou da raça dos bravos que perpetuaram Aljubarrota,
Atoleiros, Valverde. (Apoiados prolongados.) Na minha terra. (quem quererá
já dizer?) nasceram Gamas, nasceram Cabrais e Castros, e Albuquerques,
Nunes e Regras.» Quem, Sr. presidente?
(Calisto pede a palavra.)
O orador: — Que é o luxo? Perguntai ao selvático das florestas ínvias o que é
o seu hamac e ao europeu o que é o seu almadraque de plumas, tão grato e
flácido às ondulações corpóreas. Perguntai às belas europeias que lhes faz a
grinalda de brilhantes, e às belas da Florida que prazer lhes insinuam os
vítreos idornos de variegadas cores. Oh! o luxo, o luxo, senhores, é marco
miliário de civilização, a pomba que se volita da arca, e se vai espanejando de
asas por céus e terras além, recobrada dos pavores primeiros, e saltitando de
frança em frança. Oh! que rejúbilos de coração para quem fadado lhe foi de
cima o entender e amar, que o compreender é amar, na frase incisiva e
galharda de Vítor Hugo!
Sr. presidente! O coração da França, o encéfalo, o grande nervo da França é o
luxo. E eu estive na França, Sr. presidente; fui-me lá para me reverberarem
nos cristais de alma os lumes daquela perla de Ofir! Ai! a França! Quando nos
entreluzem os zimbórios da moderna Babilónia, «a esperança remonta-se-nos
em rasgado voo para tudo mais vasto, mais copioso, mais opulento, a espirrar
vida e bem para o alto, para o largo e de muita bênção, a branquear-nos a
casinha da serra, a florir-nos o pomar da veiga, a dar-nos canções e alegrias no
artífice».
O luxo, Sr. presidente, é o espantalho dos ânimos sandios e cainhos.
O deputado Calisto: — Seja pelo amor de Deus!
O orador: — Pois seja, e muito que lhe preste ao colega, que se lhe faz perdão
de Deus pelas blasfémias económicas que ejaculou, sem dar olhos na
civilização, matrona prestimosa, que toda se desentranha em blandícias e
florinhas de viço e olor para opulentos e desremediados.
O deputado Calisto: — Isso que diz em vernáculo?
O orador: — Que me não fale à mão, se lhe sobranceio o intelecto. Afigurase-me,
Sr. presidente, que tenho pela frente sombra, e sombra de que não há
temermo-nos. Não sei, à bofé, com quem me esgrimo. Propugnar por artes,
pôr peito a defender indústrias, ruir os cancelos das fábricas, bafejar
incentivos à imaginativa do artífice, enfim e derradeiramente, encarecer a
utilidade do luxo, isto me está asseteando o ânimo temeroso de desfechar
injúria ao progresso, à ideia, ao fiat, à humanidade! Para que me estou aqui
afadigando e derramando, Sr. presidente, se só múmias podem sair-me com
esgares de encontro ao civilizador princípio? (Muitos apoiados.)
Corre-me obrigação de silêncio. Já de contrito me recolho, e da ofensa à luz
me penitencio; que eu me estive a espancar trevas que, em que pese a pávidos
agoireiros, já não hão de espessar-se em derredor do sol esplendorosíssimo.
E, pois, antevejo que não há mais dizer, sem entibiar-me a nota de repetições,
aqui ponho fecho.
(O orador foi cumprimentado.)
O presidente: — Tem a palavra o nobre deputado Calisto Elói de Silos de
Benevides de Barbuda.
— Sr. presidente! — disse Calisto. — Entendi quase nada, porque o Sr.
deputado Dr. Libório não falou português de gente (risos nas galerias). As
laranjas, espremidas demais, dão sumo azedo, que corta a língua. O Sr.
deputado fez do seu idioma laranja azeda. Se a linguagem portuguesa fosse
aquilo que eu acabo de ouvir, devia de estar no vocabulário da língua bunda.
Parece-me que os obreiros da torre de Babel, quando Deus os puniu do
atrevimento ímpio, falaram daquele feitio! (Ordem! ordem!)
O orador: — Ordem, Srs. deputados, peço eu para a língua portuguesa! Peço
a em nome dos ilustres finados Luís de Sousa, Barros, Couto, e quantos, no
dia do juízo, se hão de filar à perna do Sr. Dr. Libório.
O presidente: — Peço ao ilustre deputado que se abstenha de usar frases não
parlamentares.
O orador: — Tomo a liberdade de perguntar a V. Exa. se as locuções
repolhudas do ilustre colega são parlamentares; e, se o são, peço ainda a mercê
de se me dizer onde se estudam aquelas farfalhices. (Vozes: Ordem! ordem!)
O orador: — Quando aquele senhor me chamou sandio, não foi violada a
ordem? (Apoiados.) Ora pois: eu não quero desordens. Vou pacificamente
responder ao Sr. deputado, como souber e puder. Estou a desconfiar que a
minha linguagem seca e desordenada raspará nos ouvidos da Câmara, que
ainda agora se deleitou com a retórica florida do Sr. deputado do Porto. Sou
homem das serras. Criei-me por lá no trato fácil e chão dos velhos escritores;
aprendi coisa de nada, ou pouquíssimo. A mim, todavia, me quer parecer que
o falar gente palavras do uso comum é coisa útil para nos entendermos todos
aqui, e para que o País nos entenda. Do menospreço desta utilidade resulta
não poder eu aperceber-me de razões para cabalmente responder aos
argumentos do discreteador mancebo. Percebi, a longe, pouquinhas ideias;
porém, querendo Deus, hei de, se me ajudar a paciência com que estudei o
idioma de Tucídides, decifrar os dizeres de S. Exa. no Diário das Câmaras.
(Riso.)
O ilustre deputado quer que o luxo indique a riqueza das nações. Isto é o que
eu entendi do seu arrazoamento. Em França viu S. Exa. mosquitos por
cordas. Pois, Sr. presidente, eu li que, em França, onde o luxo é maior aí é
menor, em proporção, o número dos indivíduos ricos. (Vozes: Apoiado!) Este
caso, se é verdadeiro, corta pela haste as flores todas dos jardins oratórios do
Sr. Dr.
Libório. Que mais disse S. Exa.? Faça-me a graça do mo achanar na linguagem
caseira com que o diria à sua família em prática como do lar, consoante fraseia
D. Francisco Manuel de Melo na Carta de Guia.
O Dr. Libório de Meireles: — Não velei as armas do raciocínio para me ir à
liça da absurdeza. Melhores fadas me fadaram; e não me estou aqui
sabatinando como em pleitos de bancos escolares. (Vozes: Muito bem.)
O orador: — Muito bem o quê?. Vai-me parecendo história isto, Sr.
presidente!. Eu queria-me entender com o Sr. deputado, a fim de tirarmos
algum proveito deste debate; mas S. Exa., pelos modos por me ver assim
minguando de afeites poéticos, acoima-me de absurdidade, e despreza-me!.
Valha-me Deus! Se o Sr. Dr. Libório me não lançasse da sua presença com
tamanho desamor, havia de perguntar-lhe porque foram Atenas e Roma bem
morigeradas quando pobres, e corrompidas quando ricas e luxuosas. Havia de
perguntar-lhe que artes e ciências progrediram entre os Sibaritas e Lídios,
povos que a mais elevado grau de luxo subiram. Havia de perguntar-lhe
porque foi que os Persas acaudilhados por Ciro, cortados de vida áspera e
privada do necessário, subjugaram as nações opulentas. Havia de perguntar
lhe porque foram os Persas, logo que se deram às delícias do luxo, vencidos
pelos Lacedemónios.
A suprema verdade, Sr. presidente, a verdade que os arrebiques da retórica
não sofismam, é que, à medida que os impérios antigos se locupletavam, o
luxo ia de foz em fora, e os costumes a destragarem-se gradualmente, e o
pulso da independência a quebrantar-se, e os cimentos das nações a
estremecerem. Depois, era o cair do Egipto, da Pérsia, da Grécia e Roma.
Até aqui a história Sr. presidente; daqui em diante o Sr. Dr. Libório de
Meireles, o jovem poeta, que foi a França, e achou desmentidos Xenofonte e
Trucídides, Lívio e Tácito, Plutarco e Flávio.
O Sr. doutor, ao meu juízo, é sujeito de grande imaginativa. Bonita coisa é
idear fabulações em academia de poetas; porém, nesta casa, onde a Nação nos
manda depurar a verdade dos falaciosos ornatos com que a mentira se arreia, é
preciso que sejamos sinceros. Já o insigne autor dos Apólogos Dialogais disse
que a imaginação era curral do conselho, onde, por não ter portas, todo o
animal tinha entrada. Bom é também que os jovens muito imaginativos se não
pavoneiem até ao filaucioso sobrecenho de passarem alvará de sandeus à
gente que raciocina mais porque imagina menos. É permitido aos versistas
poetarem em prosa; mas as liberdades poéticas não ajustam bem nos debates
circunspectos da república.
Vou concluir, Sr. presidente, votando contra o projeto do ilustre colega, que
propôs a redução dos direitos aduaneiros das sedas, e pedido ao Sr. Dr.
Libório, que, se outra vez me der a honra de embicar com este pobre homem
lá das montanhas da raia, haja por bem de se expressar em linguagem rasa e
correntia. Não sou homem de salvas e rodeios; digo as coisas à moda velha.
Quero-me português com os do sujeito, verbo e caso no seu competente
lugar. E, se assim não for, ir-me-ei com aquelas palavras que ouviu Arsénio:
Fuge, quiesce et tace; «foge, sossega e não fales».
Sentou-se Calisto Elói. Alguns deputados anciãos do partido liberal foram
cumprimentá-lo; e outros, que se pejaram de imitar os velhos, encararam no
rústico provinciano com cortesia e tal qual veneração. Calisto Elói ganhara
consideração na Câmara e no País.
Os deputados governamentais acercaram-se dele, convidando-o em termos
delicados a aceitar, no banquete do progresso, o lugar que a sua inteligência
reclamava. Os deputados oposicionistas conjuravam-no a não levantar mão de
sobre os projetos depredadores com que a fação governamental andava
cavando novas voragens ao País.
O morgado da Agra respondia que estava descontente de gregos e troianos, e
acrescentava:
— Não sei, por ora, de qual dos lados da Câmara se fala pior a língua pátria.
Tenho ouvido os quinhentistas à la moda, e os galiparlas. Todos ressabem a
ervilhaca; uns estão gafados de francesias, outros tresandam nos seus dizeres a
bafio que os bons seiscentistas rejeitaram. Carecem de cunho nacional estes
homens. O mau português começa a sê-lo, desde que mareia a pureza da sua
língua. Dêem-me portugueses de língua, e eu me bandearei com eles, como
com portugueses de coração. Com aquele Dr. Libório do Porto nem para o
céu. Tenho medo que Deus o não entenda, e nos ponha ambos fora de cambulhada.