Virtuosas parvoiçadas

A estreia parlamentar de Calisto de Barbuda fez hiperbólico estrondo nos
salões da aristocracia legitimista, que abriu suas portas ao esperançoso Berryer
de Portugal.
Algum tempo se andou furtando o morgado às solicitadas apresentações.
Impediam-no o natural acanhamento de provinciano e o afeto entranhado aos
seus clássicos, que lhe eram o deleite das horas feriadas do dia, e dos serões do Inverno.
Como à força, fora ele uma noite ao teatro lírico, em companhia do abade de
Estevães, que amava a música pelo muito amor que tinha à guitarra, delícias
da sua juventude, e consoladora da velhice, já saudosa do tempo em que o
coração lhe gemia nos bordões do instrumento apaixonado.
Calisto inteirou-se do enredo da ópera, e assistiu em convulsões ao espetáculo,
que era a Lucrécia Bórgia. Saiu da plateia frio de horror e protestou, em
presença de Deus e do abade, nunca mais contribuir com oito tostões para a
exposição das chagas asquerosas da humanidade. Rompeu-lhe então do imo
peito esta exclamação sentida: Amici, noctem perdidi! Melhor me fora estar lendo
o meu Eurípides e Séneca, o trágico! Medeia não mata os filhos cantando,
como a celerada Lucrécia! As devassidões postas em música dão bem a
entender que geração esta é! Brinca-se com o crime, abafando-se os gemidos
da humanidade com o estridor das trompas e dos zabumbas. É um tripúdio
isto, amigo abade! Quem sai do seio da natureza rude, e de repente se acha à
lavareda destes focos das grandes cidades, é que atina com a providencial
filosofia destas tramoias de teatros!
Assanhou o abade de Estevães o azedume do fidalgo, dizendo-lhe que o
Estado subsidiava o teatro de S. Carlos com vinte contos de réis anuais.
Calisto fez pé atrás, e exclamou:
— Obstupui!... O abade zomba!. O Estado!... O meu colega disse o
Estado!
— Sim, o tesouro. — confirmou o clérigo.
— A república? o dinheiro da Nação?
— Certamente: pois de quem há de ser o dinheiro, senão da Nação?
— Pois eu e os meus constituintes estamos pagando para estas cantilenas
do teatro de Lisboa!
— Vinte contos de réis.
Calisto Elói correu a mão pela cara humedecida de suor cívico, e sentou-se
nas escadas da igreja de S. Roque, porque ao espanto, cólera e dor de alma
seguiram-se cãibras nas pernas. Minutos depois, ergueu-se taciturno, despediuse
do abade, e foi para casa.
Os alvores da primeira manhã acharam-no passeando e declamando na
estreita saleta do seu aposento. Via-se-lhe no rosto a palidez dos Fabrícios.
Às onze horas entrou na Câmara. Dir-se-ia que entrava Cícero a delatar a
conjuração de Catilina. Deu nos olhos dos seus três correligionários que entre
si disseram:
— Calisto vai fazer alguma interpelação de grande alcance!
Acabava de sentar-se, quando um deputado do Porto se ergueu e disse:
— Sr. presidente. Muito ao meu pesar, e talvez da Câmara, volto de novo a
expender as razões já três vezes inutilmente expendidas sobre o dever e justiça
com que o Porto reclama um subsídio para o seu teatro lírico. Sr. presidente.
— Peço a palavra! — bradou Calisto Elói, erguendo-se inteiriço e
fulminante. — Peço a palavra!
O representante do Porto expendeu a quarta edição piorada das suas ideias
sobre o dever e justiça com que o teatro de S. João reclamava subsídio, e
sentou-se.
— Tem a palavra o Sr. Calisto Elói de Silos e Benevides de Barbuda —
disse o presidente.
O morgado da Agra escorvou-se de rapé, trombeteou a pitada, e orou deste teor:
— Sr. presidente. Em Grécia e Roma as festas anuais eram solenizadas com
espetáculos. Os cidadãos timbravam em se despenderem aporfiadamente para
o maior realce das representações teatrais. Na Grécia, o arconte epónimo, a
cargo de quem o Estado delegava as despesas das representações, esmava o
dispêndio de cada uma em dois talentos, 3250$000 réis, pouco mais ou menos
da nossa moeda. Este dispêndio faziam-no espontaneamente os ricos; e, se era
o tesouro nacional que adiantava as despesas, a concorrência convidava pelo
preço diminutíssimo do theorikon ou entrada, que correspondia ao vintém na
nossa moeda. E de Péricles em diante, Sr. presidente, tomou o Estado à sua
conta o pagamento das entradas dos pobres. Entre os Romanos, eram os
poderosos, como Lépido e Pompeu, e, ao adiante os imperadores, que
sustentavam do seu bolsinho as representações teatrais. Os impérios
opulentos, Sr. presidente, os impérios que dirigiam a substância do universo,
os impérios que edificavam teatros para trinta mil espectadores, não
impunham aos povos a obrigação de se privarem do necessário para
abrilhantarem Atenas ou Roma, com luxuosas superfluidades. Os serranos das
províncias do Lácio não eram constrangidos a pagarem as delícias dos
patrícios romanos. Estes, Sr. presidente, quando queriam divertir-se em
espetáculos teatrais, pagavam-nos, e regalavam a gente pobre em vez de a
obrigarem a entrar no erário com o estipêndio dos atores. (Sussurro e alguns
«apoiados» provocados pelo sussurro.)
Sr. presidente — continuou o orador, tomando rapé com a sofreguidão de
quem teme que o raio inspirativo se arrefente — Sr. presidente! Eu tenho o
desgosto de ter nascido num país em que o mestre-escola ganha cento e
noventa réis por dia e as cantarinas, segundo me dizem, ganham trinta e
quarenta moedas por noite. Eu sou de um país, Sr. presidente, em que se pede
ao povo o subsídio literário para pagar com ele as tramoias da Lucrécia
Bórgia. Eu sou de um país pobríssimo em que a vaia da Nação exangue sofre
cada ano a sangria de algumas dúzias de contos para sustentar comediantes,
farsistas, funâmbulos e dançarinas impudicas! Sr. presidente, V. Exa. sorriu-se,
vejo que a Câmara está sorrindo, e eu ouso dizer a V. Exa. e aos meus colegas,
como o poeta mantuano: Sunt lacrimw rerum. Aqui é o ponto de se carpirem
pelos seus filhos aqueles que pensam ser muito avantajados em civilização e
os seus avós. Aqui é o ponto de nos alembrarmos dos Israelitas livres, que
sorriam em Jerusalém, e choravam depois escravos às margens do rio
estranho. Depois será o declamarmos com o épico:

Em Babilónia, sobre os rios, quando
De ti, Sião sagrada, nos lembramos,
Ali com grã saudade nos sentamos
O bem perdido, míseros, chorando.
Os instrumentos músicos deixando

Peço à Câmara que repare nos três versos que completam a quadra e a
profecia:
Os instrumentos músicos deixando
Nos estranhos salgueiros penduramos,
Hic, Sr. presidente:
Quando aos cantares que já em ti cantamos
Nos estavam imigos incitando.
Nos cantares, Sr. Presidente, é que bate o ponto do meu discurso. (Hilaridade.
Sussurro nas galerias. O presidente tange a campainha.)
O orador: — Sr. presidente! que me não queiram persuadir de que estou em
casa de orates! Que é isto? Que bailar de ébrios é este em volta de Portugal
moribundo? Como podem rir-se os enviados do povo, quando um enviado do
povo exclama: Não tireis à Nação o que ela vos não pode dar, governos! Não
espremais o úbere da vaca faminta, que ordenhareis sangue! Não queirais
converter os clamores do povo em cantorias de teatro! Não vades pedir ao
lavrador quebrado de trabalho os ratinhados cobres das suas economias para
regalos da capital, enquanto ele se priva do apresigo de uma sardinha, porque
não tem uma pojei-a com que comprá-la.
E vinte contos e trinta contos de subsídios que moralidade fomentam, que
lâmpadas acendem nos altares da civilização? Eu peço à Câmara que leia
atentamente o discurso teológico do padre Inácio de Camargo, lente no real
colégio de Salamanca, acerca dos teatros. Não menos fervorosamente peço a
V. Exa. e às Câmaras que leiam as miríficas páginas do nosso oratoniano
Manuel Bernardes sobre representações teatrais. O que são comédias?
Responda por mim o eminente moralista e mais que todos vernaculíssimo
escritor: «Os assuntos das comédias pela maior parte são impuros, cheios de
lascivos amores, de galanteios profanos, de papéis amorosos, de rondas,
passeios, músicas, dádivas, visitas, solicitações torpes, finezas loucas,
empenhos desatinados, quimeras, empresas impossíveis, que as solicita
ordinariamente um criado, uma mulher terceira, uma chave, um jardim, uma
porta falsa, um descuido do pai, ou do irmão, ou do marido da dama, e tudo
isto costuma parar numa comunicação desonesta, num incesto, ou num
adultério, em que há muitos lances torpes, louvores lisonjeiros da formosura,
expressões afetadas de amor, promessas de constância, sustos, desesperações,
e em suma, uma gentílica idolatria, ajustada pontualmente às infames leis de
Vénus e Cupido, e aos torpes documentos de Ovídio no livro de Arte
amandi.»
Vozes da galeria: Muito bem! Bravo! (Espirram as risadas de vários sujeitos.
Gargalhada compacta.)
O orador — Sr. presidente! Eu irei contar aos povos que me aqui mandaram
as gargalhadas com que fui recebido no seio da representação nacional,
porque ousei dizer que um país carregado de dívidas não instaura
divertimentos atentatórios dos bons costumes com o dinheiro da Nação. Irei
dizer aos meus constituintes que se desfaçam das arrecadas e cordões das suas
mulheres e filhas, para enfeitarem as gargantas despeitoradas das Lucrécias
Bórgias que custam quarenta libras por noite!.
Sr. presidente, nossos avós, os coevos de el-rei D. Manuel e D. João III,
tiveram teatros. Era no tempo em que as frotas da Índia rompiam Tejo acima
carregadas de oiro. O Plauto português deliciava os paços dos reis, e os pátios
e tablados do povo. Quando se abriu o erário para locupletar o auto engenho
de Gil Vicente? Quando foi necessário ir mundo fora em cata de gritadores
que vendem tão caro o ar dos pulmões vibrado no mecanismo da garganta?
Uma voz: — Fez-se a civilização depois.
O orador: — E a pobreza também. A civilização que canta e dança, enquanto
três partes do País choram. A civilização dos civilizados que dizem:
Coronemus nos rosis antequam marcessant. A civilização do perdulário
irrisório, que traja de luzente lemiste no exterior, e aconchega da pele uma
camisa surrada e fétida. Magnífica civilização! Não sei de selvagens que no-la
possam invejar, e queiram cambiar connosco a sua selvatiqueza!
Sr. presidente, gozem nas boas horas os sátrapas da capital os deleites da sua
civilização teatral. Despendam-se, arruínem-se, doudejem com essas ficções e
visualidades, que relembram factos de alto escândalo que não deviam ser
vistos à luz da civilização que o meu ilustre colega preconiza. Se gostam, não
serei eu, homem de outros tempos e gostos, quem lhes impugne a
racionalidade do seus passatempos. O que eu requeiro, em nome da justiça e
da pobreza do País, é que se não sisem os povos provinciais para manutenção
dos divertimentos de Lisboa. O que eu contesto é o direito de me fazerem
pagar a mim e aos meus vizinhos as notas garganteadas dos ganha-pães que
não têm na sua terra ofício honesto em que vivam com seriedade e utilidade
comum. O que eu sobretudo lamento, Sr. presidente, é o silêncio
desaprovador dos meus colegas. Sou eu só: serei eu só o vencido. Não
importa! Victis honus!. As pequenas coisas tratam-nas os pequenos: Parvum
parva decent. Eu abro mão das glórias prometidas ao nobre colega que, há
pouco, pediu subsídio para o teatro do Porto. Dêem-lho. Desenrolem a onda
aurífera do Pactolo do nosso tesouro até Braga. Quem pede subsídio para o
teatro bracarense? A equidade reclama-o. O meu círculo também quer um
teatro. Teatro e subsídio para todo o lugarejo onde morar um contribuinte.
Estamos em vida fictícia como país independente. Somos como o sapateiro
que se veste de príncipe no Entrudo. Pois bem! Comédia geral! Seja Portugal
um teatro desde Monção ao cabo da Roca! Peço uma companhia italiana para
a minha terra. Os meus constituintes querem provar o sabor das delícias que
têm estipendiadas em Lisboa. Se eu não posso, Sr. presidente, levar-lhes a
boa-nova de que vão ter estradas que os liguem à sua nação, seja-me permitida
a glória de lhes levar a Lucrécia Bórgia, a incestuosa e envenenadora Lucrécia,
que os há de edificar e converter à civilização. Disse.
Algumas vozes por entre frouxos de riso: Muito bem! Bravíssimo!
Eram as ironias dos sublimes engenhos, que, às vezes, não sabem como hão
de havê-las com espíritos selváticos do desplante montesinho de Calisto de
Barbuda.