Faz rir o parlamento

Andava o ânimo de Calisto Elói martelado pelo desejo de pôr cobro ao luxo
da gente de Lisboa, sendo grande parte neste intento o haverem-lhe os dois
pisa-verdes do Parlamento metido a riso a sua casaca de briche. Impugnavamlhe a
ideia o abade de Estevães, e outros correligionários cordatos, mais
entrados do espírito do século, e convencidos da inutilidade de atravessar
represas à torrente caudal da índole de cada época. O deputado de Miranda
respondia que viera da sua terra a cauterizar as chagas do corpo social, e não a
cobri-las de adesivos e lenimentos paliativos em respeito à sensibilidade dos
doentes. Rebelde às admoestações sisudas de amigos, que lhe receavam
alguma queda mortal no conceito da Câmara, Calisto, provocado por um
debate sobre importação e direitos de objetos de luxo, pediu a palavra, e o
mesmo foi alvorotar alegremente a Câmara, desejosa de ouvi-lo.
Concedida a palavra, e feito o silêncio da curiosidade na sala, ergueu-se o
morgado da Agra, e orou deste feitio:
— Sr. presidente. Os conselheiros dos antigos reis de Portugal, homens de
claro juízo e ciência bastante, cortavam os abusos do luxo com pragmáticas,
quando os vassalos se desmandavam em trajos, regalos e ostentações ruinosas
do indivíduo, e, portanto, da cidade. O senhor rei D. Sebastião, que santa
memória haja, promulgou justas e rigorosas leis sobre o uso das sedas. E,
naquele tempo, Sr. presidente, Portugal ainda se banqueteava com a baixela de
ouro do Pegu; ainda as paredes das salas nobres estavam colgadas de
guadamecins e raízes da Pérsia. Era o Portugal, já não robusto nem entusiasta,
mas ainda sopitado das embriagadoras delícias dos reinados de D. Manuel e
D. João III.
Nas Ordenações Filipinas, liv. 5.° t. 82, § 4.°, e seguintes, foram incluídas as
principais leis da reformação da justiça de 27 de Julho de 1582.
Lá se vê quão salutar era a vara férrea da lei no castigo dos contumazes em
proveito da comunidade. (Um deputado boceja contagiosamente: outros
bocejam; e o presidente de ministros tosqueneja). Vejamos a pena dos
infratores: o peão perdia o vestido defeso, e pagava da cadeia quinze cruzados;
e o nobre pagava da cadeia mais quinze cruzados que o plebeu. Note a
Câmara que as reformas liberais não complanaram tanto a igualdade entre
poderoso e fraco. Bradam por aí os ignaros contra os privilégios e isenções da
fidalguia dos tempos ominosos. Estes democratas, se acontece de caírem nas
presas da justiça, gritam pelo código das igualdades, e então experimentam o
que vai da bonita redação da lei à execução dela. Recolho-me ao assunto, Sr.
presidente.
Um deputado: — Faz bem.
O orador: — Não me lisonjeia o beneplácito do colega. Recolho-me ao
assunto, Sr. presidente. Lastimo este luxo que vejo em Lisboa! Por toda parte,
oiro, pedrarias, sedas, veludos, pompas, vaidades! Parece que toda esta gente
voltou ontem da Índia nas naus que trouxeram as páreas do Oriente! Essas
ruas estrondeiam de carruagens, calechas e berlindas, como se cada dia se
estivesse comemorando a passagem do Cabo Tormentório ou o
descobrimento da Terra de Santa Cruz, atirando às rebatinhas os tesouros que
de lá nos vêm. Por entre estas soberbas carroças.
Um deputado: — Carroças são de lixo.
O orador: — E bem pode ser que seja lixo o que vai nelas. Por entre estas
soberbas carroças, Sr. presidente, vejo eu passar mal arrimados às paredes, e
temerosos de serem esmagados, uns homens de aspeto melancólico, e mal
entrajados. Nestes julgo eu ver D. João de Castro, que empenhou as barbas, e
tem duas árvores em Sintra; Duarte Pacheco, que vai entrar no hospital; e Luís
de Camões, que vem de comer as sopas dos frades de S. Domingos. Cada
época tem centenares destas ilustres vítimas.
Um deputado: — Vê coisas magníficas!
O orador: — E também vejo o dedo do profeta escrevendo na parede o lema
daquele devasso festim. (Pausa. O orador conserva o braço em postura
escultural, apontando à parede. O presidente acorda estremunhado, com a
risada do ministro da Fazenda.) O que eu vejo? Quer o ilustre deputado saber
o que eu vejo? É a indústria agrícola de Portugal devorada pelas fábricas do
estrangeiro; é o braço do artífice nacional alugado à escravidão do Brasil,
porque a Pátria não lhe dá fábricas; é o funcionário público prevaricado,
corrupto e ladrão, porque os ordenados lhe não abastam ao luxo em que se
desbarata; é o julgador dos vícios e crimes sociais transigindo com os
criminosos ricos, para poder correr parelhas com eles em regalias; é a mulher
de baixa condição prostituída, para poder realçar pelos ornatos sua beleza; é a
aluvião de homens inábeis, que rompe contra os reposteiros das secretarias
pedindo empregos, e conjurando nas revoluções, se lhos não dão. O que eu
vejo, Sr. presidente, são sete abismos, e à boca de cada um o rótulo dos sete
pecados capitais que assolaram Babilónia, Cartago, Tebas, Roma, Tiro, etc. É
o luxo, Sr. presidente!
Um deputado do Porto: — Peço a palavra.
O orador continuando:
— De que desconhecida lua choveu ouro sobre estes peraltas enluvados e
encalamistrados que pejam os teatros, praças, e botequins de Lisboa? Foi para
estes tempos que um sábio e claro varão de outro século escreveu: «Desde o
bico do pé até à cabeça anda um destes cavalheiros bizarros (ou qualquer
destes bizarros ainda que não sejam cavalheiros) armado de vaidade e de
estudos da sua compostura, que são cativeiros de espírito, corrupções dos
costumes, da república, e despesas da sua fazenda, ou talvez da fazenda que
não é sua».
Aqui é que bate o ponto: da fazenda que não é sua. À custa de quem se
vestem estes Narcisos e Adónis? Que incógnitos veios de ouro exploram?
Qual é a sua arte, se não devo antes perguntar quais sejam suas manhas ou
ronhas? Que sabe a polícia deles?
E eu já vi, Sr. presidente, andarem as senhorias e excelências, as pobres
esfarrapadinhas, por meio destes peralvilhos, que saem de casa do alfaiate com
o foro grande e o desaforo maior. Que desbarato e corruptela é esta dos
tratamentos em Lisboa? Abandalha-se tudo para passar a rasoira por sobre um
lamaçal plano? Isso é congruente; mas então tapem lá o roto cofre das graças,
que a toda a hora nos está despejando coroas e veneras, cruzes e mais cruzes,
cruzes onde a honra de Portugal geme cravejada! Fechem lá esses decretos de
permanente Carnaval, que nos trazem sempre acotovelados com máscaras,
que eram ontem os nossos fornecedores de bacalhau, e hoje nos não
conhecem a nós, receosos de que os conheçamos a eles!
Sr. presidente! V. Exa. conhece a pragmática do Sr. D. João V, acerca de
tratamentos. Eu tenho de a ler amanhã a um tendeiro, que me vendeu figos de
comadre, porque o homem se ofendeu de receber um vossemecê, que eu
longanimamente lhe dei. O alvará reza assim: «Que aos viscondes e barões,
aos oficiais da minha casa, e aos das casas das rainhas, e princesas destes
reinos; aos gentis-homens das câmaras dos infantes; aos filhos e filhas
legítimos dos grandes, dos viscondes e barões. como também aos jovens
fidalgos. se dê o tratamento de senhoria.»
Senhoria aos ministros no estrangeiro; senhoria aos governadores das praças;
reitor da universidade; senhoria às dignidades prelaciais e civis; Sr. presidente,
falta uma senhoria legal para o homem que me vendeu os figos. Criemos esta
senhoria, para aliviarmos de escrúpulos os que lha derem a medo. Legislemos
a podridão dos tratamentos nobilitários. Atiremos ao esterquilínio com esta
moeda refece. Isto já não vale nada, não prova nada, não estrema coisa
alguma. Latíssima licença de condecorar-se a gentalha! Se algum mesteiral,
uma vez, praticar feito nobre, que lhe conquiste justo galardão, havemos de
honrá-lo chamando-lhe homem do povo, daquela raça de povo que D. Dinis e
D. João I amaram cordialmente.
Desviei-me algum tanto, Sr. presidente. Vou chegar-me à questão, e concluir,
porque a hora me não permite delongas, nem a Câmara terá a benevolência de
mas tolerar.
Invoco a atenção dos representantes do País para a mortal peçonha, que vai
cancerando o maquinismo vital da nossa independência. Rédeas ao luxo!
Tranquem-se as alfândegas às drogas estrangeiras. Carreguem-se de direitos as
mercadorias que incitam o apetite e pervertem as condições melhormente
morigeradas. Vistamo-nos do que podemos colher da nossas possessões, e do
estofo que as nossas fábricas podem dar. Sigam-se as leis velhas do último rei
da dinastia de Avis. Coimem-se e castiguem-se os que venderem tecidos
estrangeiros e os que os puserem em obra.
Um deputado: — Como redigirá o ilustre deputado semelhante absurdo de lei?
O orador: — Como redigirei? Facilmente. Como D. João II legislou a respeito
das mulas dos frades. Ora aconteceu que os frades teimaram em cavalgar
mulas. Que fez então o estomagado rei? Deu sentença de morte aos
ferradores que ferrassem as mulas dos frades. E o caso foi que os desmontou.
Concluí, Sr. presidente.
O presidente: — Fica reservada para amanhã a palavra ao Sr. Dr. Libório de
Meireles, e está fechada a sessão.
O Dr. Libório de Meireles era o deputado portuense que pedira a palavra,
durante o discurso de Calisto Elói.
— Que sairá daquele arganaz? — perguntou o morgado da Agra ao abade
de Estevães.
— Dizem que é jovem de muita sabedoria, e que já escreveu livros.
Calisto sorriu-se e disse:
— Estou bem aviado, se ele já escreveu livros!