In Liborium ...

Estavam cheias as galerias da Câmara.
Entre as mais formosas, extremava-se a filha do desembargador Sarmento. A
pedido de Calisto Elói, fora o abade de Estevães levar as entradas ao
magistrado, e oferecer-se a conduzir as senhoras à galeria.
O vistoso coreto das damas exornavam-no, talvez mais que a formosura,
algumas senhoras doutas enfrascadas em política, amoráveis Cormenins, que
aquilatavam o mérito dos oradores com incontrastável retidão de juízo e
apurado gosto. Lisboa tem dezenas destas senhoras Cormenins.
Não direi que o renome de Calisto atraísse as damas ilustradas; era grande
parte neste concurso femeal a esperança de rir. A nomeada do provinciano,
bem que favorecida quanto a dotes intelectuais, cobrara fama de coisa
extravagante e imprópria desta geração.
Entrou Calisto na sala um pouco mais tarde que o costume, porque fora
vestir-se de calça mais cordata em cor e feitio. Não me acoimem de arquivista
de insignificâncias. Este pormenor das calças prende muito intimamente com
o cataclismo que passa no coração de Barbuda. Aquela alma vai-se
transformando à proporção da roupa. Assim como o leitor, à medida que o
amor lhe fosse avassalando o peito, escreveria páginas íntimas, ou ainda pior,
cartas corruptoras à mulher querida, Calisto, em vez disso, muda de calças.
As damas, que o esperavam vestido conforme a fama lho pintara,
desgostaram-se de vê-lo trajado no vulgar desgracioso do comum dos
representantes do País.
Apenas Calisto Elói se assentou, entrou-se na ordem do dia, e logo o
presidente lhe deu a palavra.
Cessou o reboliço e falario daquela feira veneranda, assim que o deputado por
Miranda começou deste teor:
— Sr. presidente! Muito há que se foi deste mundo o único sujeito, de que eu
me lembro, capaz de entender o Sr. Dr. Libório, e capaz de falar português
digno de S. Exa.. Era o chorado defunto um personagem que foi uma vez
consultar o Dr. Manuel Mendes Enxúndia, acerca daquela famigerada casa que
ele tinha na ilha do Pico, com um passadiço para o Báltico. V. Exa. e a
Câmara podem refrescar a memória, lendo aquele pedaço de estilo, que
pressagiou estas farfalharias de hoje.
Sr. presidente, a mim faz-me tristeza contemplar a ribaldaria com que os
belfurinheiros de missangas e lentejoulas adornam a língua de Camões,
despojando-a dos seus adereços diamantinos. A pobrezinha, trajada por mãos
de gente ignara, anda por aqui a negacear-nos o riso como moura de auto, ou
anjo de procissão de aldeia. Se acerta de lhe pegarem os farrapinhos broslados
de folha-de-flandres nalgum silvedo, a mesquinha fica nua, e nós a corar-mos
de vergonha por amor dela.
É forçoso, Sr. presidente, que a linguagem castiça vá com a Pátria a pique?
À hora final da terra de D. Manuel, não haverá quem lavre um protesto em
português de João Pinto Ribeiro, contra os Iscariotas, Juliões, Vasconcelos e
Mouras, que nos vendem?
Vozes: — À ordem!
O orador: — É contra o Regimento desta casa repetir o que está dito na
história, Sr. presidente?
O presidente: — Sem ofensa de particulares.
O orador: — Autoriza-me, portanto, V. Exa. a crer que nesta casa está
Iscariotas, e o bispo Julião, e Miguel de Vasconcelos, e...
Vozes: — À ordem!
O orador: — Pois então eu calo-me, se ofendo estes personagens a quem me
não apresentaram, ainda bem! As minhas intenções são inofensivas; no
entanto, desconsola-me a camaradagem. Se eu soubesse que estava aqui
semelhante gente, não vinha cá, palavra de homem de bem!
O Dr. Libório: — Mais prestimoso fora ao cosmos, se o Sr. Calisto
estanciasse no agro do seu covil a lidar com a fereza dos javalis.
O orador: — Não percebi o dito bordalengo; faça favor de explicar-se.
O Dr. Libório: — Já disse que não desço.
O orador: — Se não desce, cairá de mais alto. Refiro a V. Exa. a fábula da
águia e do cágado, na linguagem lídima e chã de D. Francisco Manuel de
Melo. É o Relógio da Aldeia, que fala no diálogo dos Relógios Falantes:
«...Lembra-me agora o que vi suceder a um cágado com uma águia, lá em certa
lagoa da minha aldeia: veio a águia e de repente o levantou nas unhas, não
com pequena inveja das rãs, e de outros cágados, que o viam ir subindo,
vendo-se eles ficar tão inferiores ao seu parceiro. Julgavam por grã fortuna
que um animal tão para pouco fosse assim sublimado à vista do seus iguais.
Quando nisto, eis que vemos que, retirada a águia com a sua presa a uma
serra, não fazia mais que levantar o triste animal, e deixá-lo cair nas pedras
vivas até que quebrando-lhe as conchas com que se defendia.» Não me lembra
bem se D. Francisco Manuel diz que a águia lhe comeu o miolo.
Se o sibilino colega figura na moralidade deste conto, oferece-se-me julgar que
não é a águia.
(Pausa do orador: riso das galerias).
Sabido, pois, Sr. presidente, que as citações históricas fazem repugnâncias ao
Regimento e à ordem, abjuro e exorcizo os demónios íncubos e súcubos da
história, pelo que rogo a V. Exa. muito rogado que me descoime de desordeiro.
Direi de Quintiliano, se este nome não desconcerta a ordem. Trata-se de
oradores, e de estilos viciosos. Diz este mestre dos retóricos que «há um
natural prazer em escutar qualquer que fala, ainda que seja um pedante, e
daqui aqueles círculos que a cada hora vemos nas praças à roda dos
charlatães». Nesta nossa idade, Quintiliano redivivo diria: «nas praças e nos
parlamentos».
Vozes: — À ordem!
O orador: — Pois também Quintiliano?!
Bem me quer parecer que raríssimas vezes o admitem aqui a ele!.
O presidente: — Lembro ao nobre deputado que a Câmara não é obra de retórica.
O orador: — Assim devo presumi-lo, vendo que todos a professam com
dignidade, excetuado eu, que me não desdoiro em confessar que sou o
discípulo único e mau de tantos mestres. Eu direi a V. Exa. qual eloquência
considero necessária nesta casa da Nação: é a eloquência que a Nação
entenda. A arte de bem falar, ars bene dicendi, é o estudo da clareza no
exprimir a ideia. Os afetos, as galas da linguagem, que lhe tolhem o mostrar-se
e dar-se a conhecer dos rudos, não é arte, é tramoia, não é luz, é escuridão. Os
meus constituintes mandaram-me aqui falar das necessidades deles em termos
tais que por eles V. Exa. e a Câmara lhas conheçam, ponderem e remedeiem.
Sou da velha clientela de Quintiliano, Sr. presidente. Com ele entendo que por
demais se enganam aqueles que alcunham de popular o estilo vicioso e
corrupto, qual é o saltitante, o agudo, o inchado, e o pueril, que o mestre
denomina proedulce dicendi genus, todo afetação menineira de florinhas,
broslados de pechisbeque, recamos de fitas como em bandeirolas de arraial.
Eis-me já de força inclinado à substância do discurso do Sr. Dr. Libório.
Primeiro me cumpre declarar que não sei pelo claro a quem me dirijo. Há dias
me regalei de ler o sucoso livro de um doutor grande letrado que escreveu da
Reforma das Cadeias. Achei-o lusitaníssimo na palavra; mas hebraico na
locução. Tem ele de bom e singular que tanto se percebe lendo-o da esquerda
para a direita como da direita para a esquerda. Soou-me que o Sr. Dr. Libório,
amador do que é bom, se identificara com o livro, e aformosentara o seu
discurso com muitas louçainhas daquele tesouro.
Não sei, pois, se me debato com o Sr. Dr. Aires, se com o Sr. Dr. Libório. Se
me debato, desavisadamente disse! O discurso não dá pega a debates que não
sejam filológicos. Estes não vêm aqui de molde. Retórica, gramática e lógica,
se alguém quiser tratá-las neste prédio, entretenha-se lá em baixo no pátio
com o porteiro, ou com as viúvas e órfãos, que pedem pão com a lógica da
desgraça, e com a retórica das lágrimas; gramática não sei eu se a fome a
respeita: parece-me que não, porque na representação nacional há famintos
que a não exercitam primorosamente. (Murmúrio e agitação na direita.
Aplausos na galeria. Um «bravo» estrídulo do desembargador Sarmento. Um
cauteleiro dá palmas na galeria popular. A tolice é contagiosa. O presidente
sacode a campainha. Restabelece-se o silêncio. Calisto Elói tabaqueia da caixa
do radioso abade de Estevães).
O presidente: — Relembro, já com mágoa, ao Sr. deputado que se abstenha
de divagações alheias do debate.
O orador: — De maneira, Sr. presidente, que V. Exa. quer à fina força
subjugar as minhas pobres ideias em aprisoamento, como disse gentilmente o
ilustre colega!
Pois assim sou esbulhado de um sacratíssimo direito? É então certo, como
disse o Sr. Dr. Libório, que não há direito em Portugal? V. Exa., sem o querer,
está sendo, na frase ingrata do ilustre deputado, o substituto do anjo S.
Miguel! (Riso) Oh! V. Exa. não será algoz do pensamento, já de si tão
entanguido que não é preciso matá-lo: basta deixá-lo morrer. Calar-me-ei, se
estou magoando V. Exa..
Vozes: — Fale! Fale!
O orador: — O ilustre colega referiu o que já vem contado no livro do Sr. Dr.
Aires de Gouveia: que o nosso rei D. Miguel, já mancebo saído da puerícia, se
entretinha a maltratar animais, chegando um dia a ser encontrado arrancando
as tripas a uma galinha com um saca-rolhas. É pasmoso, Sr. presidente, que os
dois doutores, protestando pela legitimidade do seu rei, um no livro, outro no
discurso, refiram a sanguinária história do saca-rolhas nos intestinos da
deplorável galinha! Eu suei quando ouvi este canibalismo, suei de aflição, Sr.
presidente, figurando-me o desgosto da ave!
Protesto, Sr. presidente, protesto contra a suja aleivosia cuspida na sombra de
um príncipe ausente, indefeso e respeitável como todos os desgraçados. Que
história vilã é esta? Quem contou ao Sr. Dr. Aires o caso infando do sacarolhas
nas tripas da galinha?! Em que soalheiro de antigos lacaios de Queluz
ou Alfeite ouviram os refundidores da justiça estas anedotas hediondas, e mais
torpes no esqualor de recontá-las?
E, depois, Sr. presidente, que me diz V. Exa. e a Câmara àquele filho da rainha
da Grã-Bretanha, que é um rapinante: uma pega humana! Que musa de
tamancos! uma pega humana! Que imagem! que alegoria tão ignóbil, e
extratada do vocabulário da ralé!.
Em desconto destas repugnantes notícias, fez-nos o Sr. doutor o bom serviço
de nos dizer que homem em latim é vir, e mulher é mulier, e que, em alguns
casos, homo também é homem. Ficamos inteirados e agradecidos. Uma lição
de linguagens latinas para nos advertir que a lei não legisla para a mulher!.
Teremos ainda de assistir à repetição do concílio em que havemos de
averiguar se a mulher é da espécie humana? Se os Srs. Drs. Aires ou Libório,
alguma vez, dirigirem os negócios judiciários e eclesiásticos em Portugal,
receio que os legisladores excluam a mulher das penas codificadas, e que os
bispos lusitanos as excluam da espécie humana!. E pior será se algum destes
ministros, no intento de puni-las, as classificam nas aves, e nomeadamente nas
galinhas! O horror dos saca-rolhas, Sr. presidente, não me desperta o ânimo!
Porque não há de ser castigada a mulher por igual como o homem? Resposta
séria à pergunta que tresanda a paradoxo: «Porque, no delito, as faculdades da
mulher agitam-se perturbadas; é um período de evolução.» A mulher, que
mata, por ciúme é que mata; a mulher, que propina venenos, por ciúme é que
despedaça as entranhas da vítima. Isto é crime, ao que parece; crime, porém,
de faculdades que se agitam perturbadas, e período de evolução. Se o termo
fosse parlamentar, eu diria. farelório!
Quem há de enristar armas de argumentação contra estes odres de vento?
O que eu melhor entendi, graças à linguagem correntia e pedestre da arenga,
foi que o ilustre colega, avençado com o Sr. Dr. Aires, querem que todo o
preso seja de todo barbeado semanalmente, lave rosto e mãos duas vezes por
dia, e tenha o cabelo cortado à escovinha, e beba água com abundância, e não
beba bebidas fermentadas, nem fume.
Neste projeto de lei a pequice corre parelhas com a crueldade. Que o preso
lave a cara duas vezes por dia, isso bom é que ele o faça, se tiver a cara suja;
mas obrigá-lo a lavatórios supérfluos, é risível puerilidade, juízo pouco
asseado que precisa também de barrela.
Privar do uso do tabaco o preso que tem o hábito de fumar inveterado, é
requisito de desumanidade que sobreleva à pena de prisão perpétua ou
degredo por toda a vida. Tirem o cigarro ao preso; mas pendurem logo o
padecente, que ele há de agradecer-lhe o benefício.
Estes reformadores de cadeias, Sr. presidente, parece que têm de olho apertar
mais as cordas que amarram o condenado à sentença, picar-lhe as veias, e
dessangrá-lo gota a gota, na intenção de o regenerar e reabilitar! Ótima
reabilitação! Humaníssimos legisladores!
Querem que o preso se regenere hidropaticamente. Mandam-no lavar a cara
duas vezes por dia. Água em abundância, conclamam os dois doutores. Fazem
eles o favor de dar ao preso água em abundância; mas descontam nesta
magnanimidade proibindo-os de falarem aos companheiros de infortúnio,
com o formidável argumento de que saem das cadeias delineamentos de
assaltos, e assassinatos de homens que sabem ricos!...
«Delineamentos de assassinatos»! Que é isto? Assassinato é coisa que me não
cheira a idioma de Bernardes e Barros. Seja o que for, é coisa horrível que sai
das cadeias com os seus delineamentos, contra homens que os presos sabem
ricos. Aqui, Sr. presidente, neste sabem ricos, quem sofre o assassinato é a
gramática. O aticismo desta frase é grego demais para ouvidos lusitanos.
O que é um preso descomedido, Sr. presidente? Di-lo-ei? Vox faucibus haesit!...
É febricitante despedido do leito, que, como seta voada do arco, exaspera em
barulho os males de toda a enfermaria. Que se há de fazer a um patife que é
seta voada do arco? Faz-se-lhe lavar a cara terceira vez!
Que desperdício de poesia para descrever um preso bulhento!
Seta voada do arco! Que infladas necedades assopram estes estilistas de má morte!
Inclinando razoamento (peço vénia para me também enriquecer com esta
locução do Sr. Dr. Aires), inclinando razoamento a pôr fecho neste
palanfrório com que delapido o precioso tempo da Câmara, sou a dizer, Sr.
presidente, que a melhor reforma das cadeias será aquela que legislar melhor
cama, melhor alimento, e mais cristã caridade para o preso. Impugno os
sistemas de reforma que disparam em acrescentamento de flagelação sobre o
encarcerado. Visto que Jesus Cristo, ou seus discípulos, nos ensinam como
obra de misericórdia visitar os presos, conversá-los humanamente, amaciarlhes
pela convivência a ferócia dos costumes, não venham cá estes
civilizadores aventar a solenada aos ferrolhos, o insulamento do preso, aquele
terrível soli! que exacerba o rancor, e os instintos enfurecidos do delinquente.
Tenho dito, Sr. presidente. Não redarguo ao mais do discurso, porque não
percebi. Sou um lavrador lá de cima, e não adivinhador de enigmas. Davus
sum, non Cedipus.
O orador foi cumprimentado por alguns provincianos velhos.