Santas ousadias

Natural coisa é que este sujeito, intangível às carícias do amor, seja severo e
intolerante com as fragilidades do coração.
Aconteceu-lhe frequentar, uma noite por outra, a sala de um antigo
desembargador do paço, que era pai de duas galantes senhoras, uma casada e
outra solteira.
Soou aos ouvidos de Calisto Elói que uma das ilustres damas enodoava sua
gentileza e prosápia, violando os deveres de esposa. Fez-lhe sangrar o coração
honrado tão funesta nova, e comunicou ele o seu espanto e dor ao colega abade.
O abade desfechou-lhe na cara uma estralada de riso civilizado, e disse-lhe:
— Ora o morgado tem coisas! V. Exa. parece que caiu, há pouco, de
algum planeta! Olhe que Lisboa não é Miranda, meu amigo. Se o morgado
tem de espantar-se por cada caso destes que chegar ao seu conhecimento, a
sua vida na capital tem de ser um permanente ponto de admiração!. Deixe
correr o mundo.
— Que remédio! — atalhou o morgado — mas o que eu farei é sacudir o
pó dos meus botins à porta das casas cuja desordem de costumes me
escandalizar. Não voltarei a casa do desembargador Sarmento.
— Faça V. Exa. o que quiser; porém, consinta que eu reprove semelhante
procedimento, por duas razões: seja a primeira, que o desembargador e a
família receberam o Sr. morgado com cordial afeto; segunda razão, é que V.
Exa. já não está em idade de perder a sua virtude seduzida por maus
exemplos. Faça como eu: lamente as misérias dos homens, e viva com eles,
sem participar-lhes dos defeitos; porque, meu nobre amigo, se a gente vai a
rejeitar as relações das famílias, justa ou injustamente abocanhadas pela
maledicência, a poucos passos não temos quem nos receba.
— Eu tenho os meus livros — acudiu Calisto.
— E os seus livros, as suas crónicas, os seus clássicos gregos e latinos não
lhe contam enormes desmoralizações? V. Exa., que leu a vida romana em
Tácito, e Apuleio, e no Festim de Trimalcião de Petrónio...
— De qual Petrónio? — interrompeu o morgado. — Foram doze os
Petrónios em Roma, e todos escreveram com mais ou menos despeja.
— Pois melhor. Se V. Exa. leu doze, eu li um, que era o ecónomo, ou
árbitro dos prazeres de Nero, e este me bastou para edificação do meu
espírito. Pois, se o meu amigo pode ler sem horror as infâmias das saturnais, e
os mistérios da deusa Bona, e quejandas protérvias dos antigos tempos, como
pode espantar-se do que ouve dizer da filha do desembargador Sarmento, que,
afinal de contas, pode estar inocente do crime que lhe assacam?! Não a vê V.
Exa. filha cuidadosa, mãe estremecida, e esposa honesta na aparência? Já a
ouviu defender teses da moral do adultério? Que lhe importa a V. Exa. o que
se passa lá na vida particular da mulher?
Calisto deteve-se breves instantes com a resposta, e disse:
— Acho-lhe razão, Sr. abade, não tanto pelo que disse, como pelo que não
disse. As pessoas de vida impoluta devem acercar-se daquelas que prevaricam.
Lá vem uma hora em que o conselho é tábua salvadora. Quem sabe se eu terei
predestinação de desviar aquela senhora do caminho mau?!.
— É verdade — assentiu o abade; — mas é justo e urbano que V. Exa.
não vá interrogá-la sobre coisas do foro íntimo.
— Não me ensine as leis da cortesia, abade — replicou algum tanto
afrontado o morgado da Agra. — Eu não me fiz em alcatifas de salas; mas
aprendi a polícia e trato humano nas lições de galãs afamados como D.
Francisco Manuel. E, demais disso, meu caro Sr. abade, não me peça Deus
conta da minha soberba, se eu lhe digo que o bom sangue como que já tem
congeniais e infusas em si as regras da urbanidade cortesã. Não se fazem
diretórios de civilidade a sujeitos que herdam com a fidalguia a índole dos
avoengos palacianos, feitos nas cortes, e afeitos a sentarem-se na ourela dos tronos.
— Não ponho dúvida nisso; — obtemperou o abade, e acrescentou com
malícia e bem rebuçada ironia — alguns fidalgos muito malcriados que tenho
topado, quanto a mim, não lhes faltou a herança de polidez; foram eles que
propriamente derrancaram sua índole, até se fazerem plebe grosseira e ignóbil.
— Acertadamente — disse o morgado.
— Eu ensinar cortesia a V. Exa.! — insistiu o deputado bracarense. — A
minha observação tendia a moderar os impulsos descomedidos da sua justa
censura aos maus costumes da Sra. D. Catarina Sarmento. Noli esse multum
justum, diz o Eclesiastes. Bem fidalgos e policiados eram S. Domingos de
Gusmão, S. Francisco de Bórgia e Santo Inácio de Loiola; todavia, bem sabe
V. Exa. com que isenção e santa descortesia eles invectivavam as corruptelas
da mais elevada sociedade, em rosto dos delinquentes.
— Mas eu não sou apóstolo — acudiu Calisto. — Conheço que já não vim
a tempo, nem a missão me condecora. Assim mesmo, sem desaire das
pessoas, hei de pôr a pontaria aos vícios, e, se puder, influirei pensamentos de
emenda ao ânimo dos viciosos.
Numa das seguintes noites, foi Calisto ao chá do desembargador Sarmento.
Achou mais abatido e melancólico o antigo magistrado. Estiveram
conversando à puridade sobre o desgosto que revia a face do hospedeiro
ancião. Crê-se que Sarmento lhe dissera que a sua filha Catarina, depois de
haver casado por paixão, com cedo se desaviera da vontade do marido, e este
da estima dela; de modo que raro dia deixavam de alterar e renhir por motivos
insignificantes. Disto resultava a tristeza constante do velho, acrescentada
agora com ter-lhe dito alguém que a sua filha andava infamada pela voz pública.
— Ferro penetrante — exclamou o desembargador — que me traspassou
este corpo já fraco e pendido à campa.
Calisto apertou-o nos braços e clamou:
— Amigo e senhor meu! A desgraça não derrete o aço dos peitos fortes.
Tenha-se V. Exa. arrimado ao bordão da sua honra, que não hão de
adversidades derribá-lo. Aqui me ponho do seu lado, com a fortaleza da
amizade, para, como filho de V. Exa. e irmão da Sra. D. Catarina, minha
senhora, tirar a limpo da sujidade da calúnia, se o é, a virtude dela, e o
contentamento de V. Exa.. Aqui vem de molde o repetir as palavras afetivas
do meu dileto Heitor Pinto, no tratado da Tribulação: «O que eu queria é que
a boceta das vossas angústias estivesse depositada na minhas entranhas, e que
os meus bens fossem vossos, e os vossos males fossem meus.»
Ouvido isto, o desembargador comoveu-se até às lágrimas, e disse com muito
entranhado afeto:
— Quem me dera assim um marido para a minha Adelaide, que nesta casa
reinaria o sossego da virtude! Agora vejo que lá nos esconderijos dos matos
das províncias se refugiaram as relíquias da honra portuguesa! Ditosa senhora
a que avassalou tão honesta alma!
Daí a pouco, o morgado da Agra, buscando azo de estar apartado com
Catarina a um canto da sala, e praticando sobre livros perigosos, rompeu nesta pergunta:
— A Sra. D. Catarina já leu Homero?
— É romance? — disse ela.
— Romance ou fabulário de alta moral lhe havemos de chamar; já não
romances de uns que, de oitava o sei, por aí empestam a sociedade. Na Ilíada
de Homero achei dois pares de casados: um é Páris, que se matrimoniou com
Helena; o outro é Ulisses, que se casou com Penélope. Os primeiros,
cobiçosos e voluptuários, cobriram a Grécia de calamidades; os segundos,
prudentes e discretos, foram o modelo do tálamo ditoso.
Fez Calisto uma longa pausa, e prosseguiu, interpolando os dizeres com
algumas pitadas, que solenizavam a gravidade das falas.
— Ninguém devera casar sem muito ler e sem aplaudir aqueles preceitos
do casamento escritos pelo eminentíssimo Plutarco.
— Não conheço — disse a dama. — Li Le mariage, de Balzac.
— Não sei quem é; deve ser francês.
— Pois não leu?
— Eu não leio francês. Não me chega o meu tempo para tirar águas sujas
de poços infectos. Plutarco é oráculo nesta matéria. Um pensamento lhe li que
me chegou à medula, e que ainda agora em Lisboa me saiu explicado. Diz ele
algures: «Não podem as mulheres convencer-se de que Pasifaé, bem que
esposa de um rei, se enamorasse apaixonadamente de um touro; ao passo que
estão vendo, sem espanto, mulheres que menosprezam maridos beneméritos e
honrados, e se dedicam a homens bestificados pela libertinagem.» Asseveram
me os pilotos peritos nestes mares verdes e aparcelados da capital que há disto
muito por aqui.
— É possível. — balbuciou D. Catarina.
— E porque não há de ser, se algumas senhoras conheço eu casadas —
disse Calisto — que andam com os braços nus fora das alcovas do seu leito nupcial!.
— E isso que tem? — atalhou a dama — é a moda.
— A moda, que franqueia as portas aos ruins desejos, às cogitações
viciosas, aos afrontamentos, ao pudor. Aquela filha de Pitágoras, a quem
encareceram o feitio do braço, respondeu: «Belo é; mas não para ser visto.»
Na Andrómaca de Eurípedes, Hermione exclama: «Infelicitei-me, consentindo
que de mim se achegassem mulheres perversas.» Quantas damas de hoje em
dia poderão dizer, e na consciência o estarão dizendo: «Consenti, para a minha
desgraça, que perversos homens convizinhassem de mim!.»
— Mas onde quer V. Exa. chegar com o seu discurso? — interrompeu a
filha do desembargador.
— À razão da Sra. D. Catarina, minha senhora.
— Como assim?! Quem o autoriza.
— As lágrimas do seu Exmo. pai.
— Veja lá, Sr. Barbuda, que se não equivocasse com as lágrimas do meu
pai. A minha reputação e costumes repelem semelhantes alusões, se o são.
— Piores do que estas, Sra. D. Catarina, minha senhora, piores referências
do que estas lhe faz a voz do mundo.
— A mim?
— À fé! que sim! Dou-lhe em penhor da verdade a minha honra.
— Mas — interrogou irada e rubra de despeito a dama — que ousadia a de
V. Exa. falar assim a uma senhora que apenas conhece!. Olhe que essas
liberdades de província não se usam cá em Lisboa.
— Não se moleste assim, minha senhora — disse Calisto. — Respeito
tanto V. Exa. quanto estimo seu venerando pai. O atrevimento é grande,
maior será a magnanimidade de V. Exa. em perdoar-mo. Lágrimas de velho e
de pai dão estranho ousio. Desgraças sobranceiras incutem alentos destemidos
nas mais fracas almas. No propósito de conjurar a tormenta, que se encapela e
ameaça de soçobrar a felicidade de uma família ilustre, é que eu, Sra. D.
Catarina, me afoitei a ser o advogado espontâneo do bem de todos.
— Agradeço o zelo, mas agradecera-lhe mais a discrição — disse D.
Catarina; e, retirando-se, fez uma cerimoniosa mesura a Calisto.
Não voltou mais à sala a dama. O desembargador não desfitava olhos de
Calisto Elói, que se assentou meditativo no mais assombrado do recinto.
Erguera-se do voltarete o abade de Estevães, e aproximou-se dele, dizendo:
— Desconfiei que V. Exa. estava missionando a dama. Amoleceu-a?
Calisto ergueu a cara, enclavinhou os dedos nas mãos sobre o peito
consternado, e murmurou:
— Agora acabo de entender o meu padre Manuel Bernardes.
E repetiu em tom cavo:
— «Converto a minha atenção, e temor a ti, ó Lisboa, Lisboa,
considerando o que em ti passa. Medo me fazem as tuas corrupções tão
graves e tão devassas, que já o lançar-tas em rosto, não seja nos zelosos falta
de prudência, senão obra de mágoa.»
Depois, suspirou, e tabaqueou profusamente.