Dois candidatos

Desde o qual incidente, o morgado, convicto da podridão dos vereadores em
particular, e da humanidade em geral, prometeu a onze retratos, que tinha de
onze avós, pintados indignamente, nunca mais tocar o cancro social com as
suas mãos impolutas.
Neste propósito, nem ao menos consentiu que o vigário lhe mandasse o
Periódico dos Pobres do Porto, de que era assinante emparceirado com mais
quatro reitores limítrofes, e o mestre-escola e o boticário.
Um dia, porém, quando ele saía da festividade de S. Sebastião, cujo mordomo
era, deteve-se no adro, onde o rodearam os mais graúdos lavradores da sua
freguesia e das vizinhas. Noutro grupo, falava-se do sermão, e da constância
do santo capitão das guardas do bárbaro Diocleciano, e da desmoralização do império.
Estas puxadas reflexões era o boticário que as expendia, coadjuvado pelo
mestre de primeiras letras, sujeito que sabia mais história romana do que é
permitido a um professor da preciosa e capitalíssima ciência de ler, contar e
escrever, pelo que o sábio vinha a granjear para a humanidade a ciência, e para
ele nove vinténs e meio por dia. E comia o sábio estes nove vinténs e meio
quotidianos, e ensinava os rapazes, e sobrava-lhe tempo para ler história!
Pudera!. Os governos davam-lhe férias grandes ao estômago, em proveito do
espírito. Se ele andasse bem nutrido e sucado de tripa, não aprendia nem
ensinava coisa de monta. Que a pobreza é o estímulo das maiores façanhas da
inteligência. Paupertas impulit audax. Isto que o Horácio faminto dizia de si,
acomodam-no os regedores da coisa pública aos professores de primeiras
letras; porém, outros muitos versos do Horácio farto, esses, tomam-nos eles
para seu uso.
Estava, pois, o mestre-escola, de parceria com o boticário, a castigar a
perversidade dos imperadores romanos, por amor do mártir S. Sebastião, que,
segunda vez, acabava de ser frechado no panegírico. Neste comenos,
aproximou-se deles Calisto Elói, e para logo se calaram as duas capacidades,
em deferência ao Salomão da terra.
— Que dizem vossemecês? — perguntou Calisto benignamente. —
Continuem. Parece que falavam do santo.
— É verdade, Sr. morgado — acudiu o boticário, ajustando os colarinhos
percucientes do verniz da goma. — Falávamos na malvadez dos imperadores pagãos.
Sim! — disse Calisto, com proeminência declamatória — sim! Horrorosos
tempos aqueles foram! Mas os tempos atuais não se diferençam tanto dos
antigos que possamos, em consciência e ciência, encarecer o presente e
praguejar o passado. Diocleciano era pagão, cego à luz da graça: os crimes dele
hão de ser contrapesados, e descontados, na balança divina, com a ignorância
do delinquente. Ai, porém, dos que prevaricaram fechando os olhos à luz da
notória verdade, a fim de se fingirem cegos! Ai dos ímpios, cujas entranhas
estão afistuladas de herpes! No grande dia, funestíssima há de ser a sentença
deles, novos Calígulas, novos Tibérios, e Dioclecianos novos!
Relanceou o farmacêutico uma olhadela esguelhada ao professor, o qual,
abanando três vezes e de compasso a cabeça, dava assim a perceber que
abundava na admiração do seu amigo e consócio erudito em história romana.
Obrigado às orelhas do auditório atento, Calisto, em toada de Ezequiel, continuou:
— Portugal está alagado pela onda da corrupção, que subverteu a Roma
imperial! Os costumes dos nossos maiores são metidos a riso! As leis antigas,
que eram o baluarte das antigas virtudes, dizem os sicofantas modernos que já
não servem à humanidade, a qual, em consequência de ter mais sete séculos,
se emancipou da tutela das leis. (Alusão ervada aos vereadores de Miranda,
que discreparam do intento restaurador do foral dado por D. Afonso. Vinham
a ser sicofantas os colegas municipalenses.) Credite, posteri! — exclamou
Calisto Elói com ênfase, nobilitando a postura.
O latim não lho entenderam, salvo o mestre-escola, que, antes de ser sargento
de milícias, havia sido donato no convento dominicano de Vila Real.
E repetiu: Credite, posteri!
Nesta ocasião, saiu da igreja a Sra. D. Teodora Figueiroa, e disse ao esposo:
— Vem daí, Calisto. Vamos jantar, que é uma hora, e já vai o padre
pregador para casa.
Engoliu o morgado três frases de polpa, que lhe inflavam os bócios, e foi ao
jantar, sacrificando-se à regularidade das suas horas inalteráveis de repasto.
Ficaram o boticário e o professor de primeiras letras, e mais os lavradores,
ruminando as palavras do fidalgo, e glosando-as de notas ilustrativas, ao
alcance das capacidades.
Um dos mais graves e anciãos lavradores, regedor, ensaiador e ponto nos
entremezes do Entrudo, exclamou:
— Aquilo é que dava um deputado às direitas! Um homem assim, se fosse
a Lisboa falar ao rei, as contribuições tinham de acabar!
— Isso não, perdoará vossemecê, tio José do Cruzeiro — observou o
mestre-escola — os impostos é necessário pagá-los. Sem impostos, não
haveria rei nem professores de instrução primária (observem a modéstia da
gradação!) nem tropa, nem anatomia nacional.
O mestre-escola havia lido, repetidas vezes, no Periódico dos Pobres, as
palavras autonomia nacional. Falhou-lhe desta feita a memória, lapso que não
destoou em nenhumas orelhas, excetuadas as do boticário, que resmungou:
— Anatomia nacional!
— Que é?! — perguntou ao farmacêutico um estudante de clérigo.
— Parece-me que é asneira! — respondeu o outro com certa indecisão.
Prosseguiu, concluindo, o mestre-escola:
— E, portanto, os tributos, tio José do Cruzeiro, são necessários ao Estado
como a água aos milhos. Ora, agora, que há muito quem bebe o suor do povo,
isso há; e aqueles que deviam ser bem pagos são os que menos comem da
fazenda nacional. Aqui estou eu, que sou um funcionário indispensável à
Pátria, e receberia cento e noventa réis por dia, se não trouxesse rebatidos seis
recibos a trinta e seis por cento, de modo que venho a receber seis e cinco!
Que país!. O senhor morgado disse bem: estamos chegados aos tempos dos
Dioclecianos e Calígulas!
O auditório já vacilava em decidir qual dos dois era mais talhado para ir falar
ao rei a Lisboa, se Calisto, se o mestre-escola.