Era por uma noite escura e fria de Abril

Era por uma noite escura e fria de Abril.
O vento esfuziava nas ramalheiras de Campolide.
A lua, a longas intermitências, parecia, wagon dos céus, correr velocíssima
entre nuvens pardas, para ir engolfar-se noutras.
Então era o carregar-se a escuridão da terra, e mais para pavores o rangido das
árvores sacudidas pelos bulcões do setentrião.
Soaram doze horas por igrejas daqueles vales. Era um como crebo soluçar da
natureza por pulmões de bronze. Era o grão clamor da terra em angústias
parturientes de alguma enorme calamidade.
Àquela hora, e por aquela noite capeadora de assassinos e bestas-feras, Calisto
Elói, embrulhado num capote de três cabeções e mangas, que trouxera de
Caçarelhos, passava rente com o muramento da quinta de Adelaide.
Depois, como saísse da vereda escura a um ressio que defrontava com a
frontaria da casa, aqui parou, e, cruzando os braços, se esteve largo espaço
quedo, e fito nas janelas.
Nem lua nem cintila de estrelas no céu! As confidentes daquele amador torvo
como o cerrado da noite, negro como o coração que lhe arfa a lapela esquerda
do colete, são as trevas.
Quis acender um charuto.
Nem os fósforos vingaram lampejar na escuridão.
E o vento assobiava no vigamento da casa, e nas orelhas de Calisto, o qual,
levado do instinto da conservação, levantou a gola do capote à altura das
bossas parietais, e disse, como Carlos VI:
— Tenho frio!
E passou-lhe então pelo espírito um painel da sua situação tirado pelo natural.
Viu-se no espelho que a razão lhe ofereceu, e cobrou horror da sua figura.
Bem que tal acto não implicasse delito, nem afrontasse os bons costumes,
Calisto, apertado no trânsito difícil das índoles que se passam do
comportamento austero e cativo às liberdades e solturas do vício, olhava com
saudade o seu passado, as suas alegrias puras; e, mais que tudo, àquela hora,
como o frio lhe cortava as orelhas, lembrou-se da quentura e aconchego do
leito nupcial.
E como esta visão honesta, para mais o pungir, havia de ser encarecida com
uma imagem de mulher leal e imaculada, Calisto viu D. Teodora de touca,
naquele dormir plácido de quem adormeceu com a alma quieta e intemerata.
Não bastava a touca, tão pudica quanto higiénica, a penitenciá-lo com
remordentes saudades; viu-lhe também o lenço de três pontas de algodão azul
com que ela costumava resguardar os ombros, antes de subir as quatro
escadinhas que conduziam ao alteroso leito de pau-santo.
Se visões análogas, alguma vez, puseram guerra ao demónio tentador dos
maridos infiéis e o venceram, desta feita não se logra a sã virtude do triunfo.
É que as toucas e lencinhos pudibundos, sobre não serem enfeites muito
sedutores, algumas vezes tornam a virtude rançosa e tão-somente boa para
adubar palestras de avós com as netas casadoiras. Este mal deve-se às artes da
estatuária, artes em que a imaginativa não põe nada seu, porque tudo é
copiado da natureza nua, ou quase nua. Nem sequer as Níobes, as Lucrécias, e
Penélopes o buril respeita. Nos casos mais lacrimáveis e trágicos, querem
fados maus que os olhos achem sempre pasto à cobiça, quando a impressão
devera ser toda para levantamentos de espírito, e «visões altas», como diz o
bom Sá de Miranda.
Quando a arte desonesta não despe as figuras, veste-as de feitio que pelo
ondeado das roupas transparentes esteja o pecado a fazer negaças a conjeturas
tais que, certo estou, Calisto Elói, antes de se empestar em Lisboa, se tais
impudicícias visse, romperia no Parlamento os vesúvios da sua eloquente
indignação. E a posteridade, ajuizando da moral desta nossa idade de limos e
alforrecas, viria a este lameiral esgaravatar a pérola da idade áurea, caída dos
lábios do marido de D. Teodora, a qual, segundo fica dito, dormia de touca e
lencinho de algodão azul de três pontas.
Esta peregrina imagem não bastou a desandar Calisto pelo caminho de Lisboa,
e do seu gabinete, onde os pergaminhos dos seus livros pareciam rever
lágrimas de amigos descaradamente desprezados. O infeliz não desfitava olhos
de certa janela, desde que vira perpassar uma luz pelos resquícios das
portadas. Podia a traída Teodora antepor-se aos olhos extasiados do esposo,
com a pudenda touca, ou com as madeixas estreladas de brilhantes, que ele
não a via nem queria ver.
Aí por volta da meia-noite estava Calisto recordando o que dissera, em
circunstâncias análogas, Palmeirim, aquele grão cavaleiro de Francisco de
Morais, diante do castelo de Almourol que fechava nos seus arcanos a
formosa Miraguarda.
Nisto cismava, compreendendo então as frases mélicas dos famosos
amadores, quando as portadas da janela se abriram subtilmente, e logo a
vidraça foi subindo muito de leve.
O recanto, em que o morgado da Agra se abrigara do vento, estava fora do
caminho, sumido aos olhos da pessoa que abrira a janela. Ao mesmo tempo,
ouviu ele passos na estrada, e logo viu acercar-se um vulto rebuçado da casa
de Adelaide, e parar debaixo da janela que se abrira.
Conjeturou Calisto de Barbuda que D. Catarina Sarmento, a esposa infida,
reincidira nas presas do velho pecado, e sentiu algum tanto molestada sua
vaidade de regenerador de corações estragados.
Também suspeitou que Bruno de Vasconcelos, quebrando a palavra jurada,
voltara do estrangeiro a reatar a criminosa aliança.
Não lhe deram tempo a mais conjeturas. O encapotado expetorou um
cacarejo de tosse seca; da janela, como contra-senha, respondeu outro
cacarejo de mais simpático timbre, e logo as duas almas se abriram neste diálogo:
— Ainda bem que recebeste a minha carta, Vasco!. — disse Adelaide. —
Estavas em casa da tia condessa? Eu mandei lá por me lembrar que se fazia lá
hoje a novena das Chagas.
— Fiquei espantado — disse Vasco da Cunha. — Que rápida deliberação
foi esta?! Vir para uma quinta com tão mau tempo! Foi caso de maior!.
— Fui eu a causa — disse ela. — São melindres do meu coração, que, por
amor de ti, não sofre que outra voz de homem lhe fale a linguagem que eu só
quero e aceito da tua boca. Antes me quero aqui escondida com a tua imagem,
que ver-me obrigada a tolerar os atrevimentos de Calisto de Barbuda.
— Quê! — atalhou Vasco — pois aquele homem tão sério!. tão temente a Deus!.
— É um hipócrita com a brutalidade de um provinciano!. Ofereceu-me
uns versos em segredo! Que ultraje! Que falta de respeito à minha posição.
— E que desmoralizada e irreligiosa criatura! Casado, já daqueles anos,
legitimista, e católico, segundo diz, e ousar. Estou espantado! E a tia condessa
que me tinha encarregado de o convidar para assistir no domingo à festa das
Chagas! Fiem-se lá!. E tu, não faltes à festa, Adelaide. Este ano fazemo-la com
toda a pompa. O pregador já me leu o discurso, e trata eruditamente a
matéria. A prima Lacerda vai cantar um Benedicite, e a prima viscondessa de
Lagões canta um Tantum ergo. Havemos de fazer melhor festa que a do
conde de Merles. Eu começo amanhã a colher flores e a pedi-las para enfeitar
o altar dos três reis magos e das três virtudes cardeais, de que me fizeram
mordomo, não sei se sabias?
— Não sabia, meu amor — disse Adelaide, congratulando-se com os
entusiasmos pios do excelente jovem.
A palestra prosseguiu neste tom por espaço de uma hora.
A lua espreitava estas duas pessoas por entre as nuvens, que a pouco e pouco
se foram descondensando. O céu azulejou-se e estrelou-se para galardoar a
virtude do mordomo das três virtudes cardeais e da bela menina destinada a
maridar-se com o mais enérgico influente da festa das Chagas, com o que o
devoto conde de Merles se havia de dar a perros.
No entanto, Calisto Elói, consultando a sua consciência a respeito de Vasco
da Cunha, decidiu que o homem, se não era um santo, propendia
grandemente para a sensaboria do idiotismo. Esta crítica é a prova de um
ânimo já iscado da peçonha da meia impiedade que degenera em impiedade
inteira. Já como castigo de escarnecer um jovem virtuoso, sentia ele encher-se
lhe de amargura o coração. Não bastava ouvir-se qualificado de hipócrita
brutal por Adelaide; quis demais disto a providência dos amantes lerdos,
providência que eu não posso escrever senão com p pequeno, quis, digo, que
Vasco da Cunha, mancebo em flor de anos e gentileza, se estivesse ali
rejubilando em novenas e mordomias das três virtudes cardeais, enquanto ele,
Calisto, a mais de meio caminho da morte, ardia em fogo impuro e cobiça
pecaminosa, com os olhos cerrados à visão duas vezes pura de uma esposa de
touca e lencinho azul de três pontas sobre as espáduas não despiciendas,
segundo me consta.
Merecem escritura as últimas frases de Adelaide e Vasco.
A menina, interrompendo os enlevos do devoto jovem, que se deleitava em
conjeturar a zanga do conde de Merles, perguntou-lhe, com doce requebro,
quando viria o dia suspirado da sua união.
Vasco deteve a resposta alguns segundos, e disse:
— Deixemos ver se morre minha tia Quitéria, que me quer deixar os
vínculos do Algarve.
— Pois nós — volveu Adelaide magoada — não poderemos ser felizes
sem os vínculos da tua tia Quitéria, meu Vasco?
— Ninguém é feliz desobedecendo aos seus maiores, — replicou Vasco.
— A tia Quitéria quer que eu espere a volta de el-rei para depois tomar ordens
sacras, e trazer mais uma mitra episcopal à nossa linhagem onde estavam
como em vínculo as principais preluzias do reino.
Adelaide, não obstante o coração, quando aquilo ouviu, sentiu-se mal do estômago.