Capítulo XXI

Decorridos seis meses, Fernão de Teive, perigosamente enfermo e
desenganado, dialogava assim com sua filha, ajoelhada sobre o estrado do
leito, com a face inclinada aos lábios requeimados dele:
— Bem to disse eu, menina. A realização da profecia, se vier, encontra-me
sem vida.
— Não há de morrer, meu pai-clamou Mafalda beijando-lhe a fronte.
— Não peças a Deus isso, que os meus padecimentos são
incomportáveis... Verdade é que te deixo quase sozinha; mas aí estão teus tios
de Barcelos que te levarão para a sua companhia enquanto não puderes voltar
à casa onde morre teu pai. Não chores assim, que me afliges, Mafalda... Triste
coisa que um moribundo não possa falar aos seus com a presença de espírito
dos que esperam viver muito... E, afinal, Deus sabe quem vive e quem
morre!... Pois então, menina, que tem que conversemos placidamente...?!
Bem... esse ar de conformidade está bem ao rosto angélico de minha filha...
Falemos no nosso Afonso... Inventa lá tu um meio de lhe mandar recursos. Se
é verdade o que soubemos por via do tio desembargador, o rapaz está mal. O
jogo dos fundos arruinou-o segunda vez, ou reduziu-o a muito pouco...
— Mas as últimas cartas atalhou Mafalda não falam em negócios...
— Pois isso é que mais me persuade da informação do tio de Lisboa. Se
Afonso prosperasse, dizia-o; ele, que se cala, é que está desgraçado.
— Oh! meu Deus! — exclamou a filha. Diz bem, meu pai, Afonso está
desgraçado... Não o confessa para que lhe não mandem alguma esmola os
parentes.
— Isso mesmo; e por isso mesmo pensemos em remediá-lo com todo o
melindre. Não te ocorre nada, filha?
— Manda-se-lhe o dinheiro, peço-lhe eu muito que o aceite... ele há de
condoer-se das minhas palavras...
— Não gosto desse meio: desaprovo a invenção. Aí vem padre Joaquim
dar-nos aviso.
Padre Joaquim era um modelo de padres, capelão da casa, havia trinta e cinco
anos; padre que se me ia fugindo deste romance por um cabelinho: o que seria
novidade nos meus livros. Quando eu puder arquitetar uma novela sem padre,
hei de chamar-me romancista puxado de imaginação. O mestre dos escritores
floridos, Almeida Garrett, segundo disse e provou, tinha o vezo dos frades.
Ele e eu, cá muito no coice processional dos seus discípulos, havemos de fazer
amar os frades e os padres, pelo menos os padres-capelães bem procedidos e
venerandos como padre Joaquim, capelão da casa de Fonte Boa.
Explicou Mafalda ao padre o motivo a cujo respeito se lhe pedia aviso.
O clérigo tomou rapé, refletiu, consolidou o seu raciocínio com outra pitada, e
disse:
— A minha opinião é que a Sra. D. Mafalda case com o Sr. Afonso.
Fernão, fraco do peito para rir, tossiu uns frouxos de riso que desconcertaram
a gravidade do reverendo. Mafalda fitou os olhos em seu pai, receando que o
esforço o estivesse mortificando.
Padre Joaquim, voltando-se à menina, disse no tom de quem dá satisfação:
— Dar-se-ão caso que eu dissesse algum despropósito?... Parecia-me que
sendo os dois contraentes primos em primeiro grau, obtida a devida dispensa,
nada mais acenado para o fim de melhorar a situação apertada do Sr. Afonso...
— Não disse despropósito nenhum, padre Joaquim acudiu Fernão de
Teive. —
Pelo contrário, aventou a mais moral e desejável das saídas nestes apertos.
Mas o que nós queríamos era socorrê-lo sem que ninguém casasse.
— Parece-me isso justo e exequível. É mandar-lhe dinheiro por pessoa
capaz respondeu categoricamente o sacerdote.
Fernão, com prazenteiro rosto, acudiu:
— Quer o padre Joaquim ir a Paris? Não temos outra pessoa que o iguale
em capacidade.
— Irei ao fim do mundo no serviço de V. Exa.
— E se o primo Afonso disse Mafalda rejeitar o dinheiro?
— Se rejeitar o dinheiro, volto com ele para casa; sinal é que lhe não é
preciso.
— Se o rejeitar por ser de condição independente e tomar como esmola o
favor do pai? replicou Mafalda.
— Nesse caso cito-lhe os meus autores nas matérias vaidade, soberba e
orgulho; e hei de convencê-lo a aceitar o dinheiro.
— Vai o padre a Paris — disse Fernão. Amanhã parte para o Porto: lá o
dirigirão. Prepara tu, Mafalda, a bagagem do Sr. Padre Joaquim. Tira o
necessário para o meu enterro e manda tudo mais que encontrares a Afonso.
— Enterro! exclamou Mafalda, escondendo o rosto no seio do pai.
Ao escurecer, recrudesceram os padecimentos de Fernão de Teive. Por volta
da meia-noite, com toda a luz da razão e clareza de voz, pediu os sacramentos,
e conversou até às duas horas. Ao amanhecer dormiu um sono quieto, e
acordou aflito. Pediu a extrema-unção e respondeu durante a cerimónia as
palavras rituais em irrepreensível latim. Depois chamou a filha, beijou-a e
deulhe a beijar o crucifixo, que tinha entre mãos, reclinou-se para o ombro dela,
dizendo:
— Sobre este ombro expirou minha irmã... Se alguma vez vires o filho da
santa mulher, dá-lhe um abraço... e tu, filha... adeus até ao Céu.
Mafalda rompeu em altos clamores. Fez-lhe o pai um gesto de silencio com os
olhos.
Foi este o derradeiro gesto daqueles olhos, fitos já na aurora da eternidade e
fechados para sempre sob os lábios de sua filha.