Capítulo VI

O escândalo, que felizmente abortou à portaria do convento, pôs de
sobrerrolda os pais de família que tinham meninas a educar nas Ursulinas e
deu às insones freiras um sexto sentido de observação. Dentro do mosteiro
reinava a opinião de que Teodora tinha bastante capacidade para tomar criada,
conforme o gorado sistema de Libana. Além disto, depois da expulsão da
transmontana, a morgadinha, em vez de quebrar do orgulho e reportar-se,
enfuriou-se mais, e saia com invetivas e chacotas às freiras velhas, clamando a
vozes descompostas que a mandassem embora, se lhes não servia assim. A
comunidade, ofendida e esgotada de paciência, consultado o tutor da
educanda, assumiu o uso ou o abuso dos antigos poderes monásticos, e
encerrou-a no seu quarto, com ameaças de a fecharem no tronco. Teodora
esmoreceu diante da força mista das freiras e dos padres capelães, que
prometiam suprir com o pulso a ineficácia da eloquência persuasiva.
Vagamente informado da situação da sua amada, Afonso de Teive foi à
portaria do convento, no heroico propósito de ir arrancar a vítima de sobre as
asas da teocracia despótica. A porteira, senhora de óculos e de muita virtude,
ofereceu peito de mártir às injúrias ímpias do acriançado amante. Porém,
como quer que o acaso ali encaminhasse uni cabo de polícia, quando Afonso
gesticulava e vociferava um menos mau improviso contra os conventos, o
cabo, com as mãos atadas na cabeça, correu ao regedor, e este acudiu no
supremo lance, já quando o alucinado aluno de Retórica estrondeava na porta
valentes murros, chamando Teodora a clamorosos gritos.
Travado pelos braços pujantes das autoridades, Afonso não pode resistir à
surpresa do assalto. Escabujou e esbraveou enquanto as forças da raiva o
aqueceram; afinal caiu exânime nos braços da lei, balbuciando ainda
«Teodora!». Estava a instaurar-se-lhe processo, quando a fidalga de Ruivães
chegou a desfazer com a sua respeitável presença, e auxilio dos mais
importantes cavalheiros de Braga, a criminalidade pueril do filho.
Afonso, levado por sua mãe, foi para casa, deliberado a deixar-se morrer. Caiu
de cama, e tresvariou em febres de mau carácter. Todavia, os cuidados
maternais, cooperados pela robusta natureza dos dezasseis anos, salvaram-no.
Os olhos, durante a morosa convalescença, choraram-lhe de contínuo; os
sonhos eram-lhe ainda suplícios de que despertava em brados e soluços; não
obstante, a cura do amor, que chora, é certa: ferida de coração, onde possa
chegar o agro e adstringente de uma lágrima, cicatriza cedo ou tarde. Amores
incuráveis são os que desabafam em rancorosas explosões.
A parentela do ilustre pimpolho, alvorotada pelas lástimas da fidalga, reunira
se em conselho, e alvitrara que Afonso de Teive fosse completar os estudos
preparatórios em Lisboa, hospedando-se em casa de um seu tio desembargador.
O rapaz obedeceu às exortações e rogos de sua mãe, depois
que a extremosa senhora lhe prometeu e asseverou que, a despeito de tudo e
de todos, Teodora, no prazo de um ano, seria sua esposa.
Os parentes embicaram, resmoneando que o morgado da Fervença o era só
em nome, sem vínculo nem foro em ascendente conhecido. Contra estas
razões se insurgiu Afonso em termos que feririam a ilustração democrática de
um botequineiro antes de ser cavaleiro do hábito de Cristo. A fidalga, mais
ufana de proceder do tronco dos primitivos cristãos, iguais entre si e iguais
ante Deus, que vaidosa de aparentar-se com os Pinheiros de Barcelos e os
Correias e Lacerdas da Honra de Farelães, votou com seu filho, dizendo «que
na casa de Ruivães sobejava a fidalguia e faltava a felicidade».
Foi Afonso para Lisboa com o capelão. O tio desembargador agasalhou-o nos
braços, e as primas, filhas do bondoso magistrado, a míngua de um irmão,
começaram logo a dizer que Deus lhes dera um, e, como tal, o não deixariam
voltar mais, sem elas, à província.
Pouco montam tantas carícias para o contentamento de Afonso. Ralam-no
saudades, emagrecem-no os jejuns, amarelece-o a tristeza. Nas aulas é mau
estudante; no círculo dos condiscípulos é um autómato que ri por comprazer,
e vai sem saber que vai para onde o impelem; em casa com as primas é um
aborrecido, que nem ao menos as acha bonitas, nem pensa sequer em
adivinhar as charadas maricas, e logogrifos figurados, em que todas são
exímias e sobremodo impertinentes.
A senhora de Ruivães recebe de todos os correios instantes cartas de Afonso
acelerando as diligências para o casamento. A consternada mãe já por terceiras
pessoas mandou sondar as dificuldades que importa combater. De Braga
dizem-lhe que Teodora já saiu do encerramento da cela e tem o convento
todo por homenagem, salvo o palratório e a cerca. Ajuntam as informações
que o tutor da morgada frequenta semanalmente o convento, e algumas vezes
vai com ele um filho, rapaz de figura absurda, com uma gravata vermelha,
capaz de seduzir uma nação de pretos, e uma casaca arqueológica, de cabeção
tão copioso que parecia enrolar um capote.
A descrição poderia ser acoimada de desgraciosa; mas de hipérbole não.
Este sujeito chama-se Eleutério Romão dos Santos, por ser filho de Eleutéria
Joaquina e de Romão dos Santos, tutor de Teodora, lavrador abastado,
vizinho do Mosteiro de Tibães.
Eleutério tem vinte e dois anos; quis aprender a ler com seu tio padre Hilário;
mas a natureza opôs-se-lhe, logo que ele, após um ano de canseira, entrou a
soletrar palavras de três sílabas. Vencido pela natureza, padre Hilário desistiu,
visto que lhe era vedado arejar o cérebro do sobrinho por uma fresta aberta a
machado.
O filho único de Romão dos Santos recebeu em upas de alegria a notícia da
sua incapacidade para soletrar nomes de três sílabas. No dia seguinte, o pai
mandou-o à feira dos nove com uma junta de bois. O rapaz efetuou a venda
dos bois com tamanha astúcia e vantagem que logo dali se deu a conhecer a
sua vocação. Uma segunda mercancia robusteceu-lhe o crédito, que outras
vieram confirmando, até que Romão deu ordem ilimitada de dinheiro a
Eleutério para poder negociar em bezerros e vitelas.
Estava o rapaz neste auge de glorificação própria, e inveja dos vizinhos,
quando faleceu a mãe de Teodora. A órfã, apenas sua mãe cerrou olhos, foi
conduzida para casa de Romão, seu tio paterno. A criança ia lagrimosa e
carecida de meiguices e consolações de alguma senhora que lhe falasse a
linguagem polida à qual estava afeita. Em casa de Romão havia somente a Sra.
Eleutéria Joaquina, criatura chã, que, a cada soluço da sobrinha, dizia quase
sempre:
— Não chores, pequena; que a morte é portelo que todos temos de passar.
E, para não dizer sempre o mesmo, variava deste teor:
— Isto, como o outro que diz, é hoje tu, amanhã eu.
Eleutério, porém, menos versado em lugares-comuns de pêsames aldeãos,
querendo consolar sua prima, tirou estas palavras do peito:
— Senhora prima, olhe que o chorar faz mal às meninas dos olhos. Deixe
se de estar a suspirar, que não lhe dá remédio. Agora o mais acertado é
divertir-se pelas feiras. Vem aí a de Vila Nova de Famalicão, onde eu levo
vinte e duas juntas de bezerros. Se a senhora prima quiser, vamos comprar de
meias algum gado, e deixe cá isso à minha vigilância, que eu, dentro de um
ano, prometo dar-lhe dinheiro de ganho com que há de comprar um grilhão
de duzentos mil réis e umas arrecadas de lhe chegarem aos ombros. O mais
quem morreu, é ditado dos velhos.
— Quem morreu é rezar-lhe por alma atalhou com má gramática, mas
com piedosa intenção, o tio padre Hilário.
Teodora estava a rebentar de raiva quando Eleutério recolheu ao bucho das
cruas sandices outras muitas que já lhe ferviam nos gorgomilos.
Aí está uma amostra de Eleutério Romão dos Santos.
O conselho de família deliberou o ingresso da órfã nas Ursulinas. A menina
acolheu agradavelmente a notícia, por se desentalar assim da opressão do
primo alvar, e da tia, mais boçal do que racionalmente se deve permitir à
bondade de uma pessoa qualquer.
Logo que a mãe de Teodora morreu, o tio, que lhe conhecia o valor dos bens,
lançou contas ao futuro e deu como realizável um casamento que vinha a ligar
as duas casas maiores da freguesia. Custou-lhe a ceder que a pupila se lhe
distanciasse de casa; mas os votos dos outros membros venceram, fundados
na precisão de educar a menina, que fora criada com mestres, e de todo
estranha à vida agrícola.
Entretanto, Romão predispôs o filho a pensar seriamente no bonito arranjo,
que lhe saía a talho de foice: estilo figurado e pitoresco em que são inventivos
os nossos camponeses, e em que Romão primava sempre que tinha entre
mãos algum bonito arranjo, o qual vinha a ser sempre um arranjo feio para o
próximo.
Eleutério, ao princípio, disse que a prima lhe parecia um arenque. Fundava o
desdenhoso a sua crítica na magreza delicada e cortesã de Teodora. Entre
galãs da estofa de Eleutério, mulher de encher olho queria-se vermelhaça, alta
de peitos, ancha de quadris, roliça e grossa de pulsos, com os queixos túmidos
de gargalhadas estrídulas, e as facécias equivocas, e os estribilhos patuscos
sempre engatilhados nos beiços grossos e oleáceos. Teodora era o invés de
tudo isto.
Faz pena vir aqui a ponto o descrevê-la, quando o contraste lhe fica tão de perto.
Teodora, aos dezasseis anos, era um modelo acabado de formosura, como
raras se vos deparam nas raças patrícias, que o concurso de circunstâncias,
umas espirituais, outras fisiológicas, aprimoraram. A palidez era nela o
principal característico das belezas de eleição, à escolha de olhos onde parece
que os nervos óticos vêm da alma, e não do cérebro, a tecerem a retina. A
mulher pálida é a que vem cantada em poemas e extremada em romances: ora,
quando a poesia e prosa conspiram a dar a realeza do amar e padecer à mulher
pálida, havemos de curvar-lhe o joelho, na certeza de que ela se fará amante e
mártir, por amor do poema e do romance, ainda mesmo que a natureza lhe
tenha temperado o coração de aço. Pode ser que semelhante cláusula, no
decurso deste livro, acuda à retentiva do leitor.
Relumbravam no alvor das faces de Teodora olhos negros, não vivos, antes
mórbidos, como se a queda das longas pálpebras, iriadas de veias azuladas,
lhes vedasse o raio de luz em cheio que rebrilha, aquece, e regira os globos
visuais. Do nariz diremos que, nesta feição, a mais rebelde aos desvelos da
natureza, tão extremada se mostrara ela, que bastante lhe fora aquela perfeição
para desmentir os que a taxam de desprimorosa. Em lábios, não sei se me
valha das figuras antigas rosas e corais, romãs e carmim — , se me avenha
com esta verdade pronta e fluentíssima que de um traço copia como o pincel e
de uma frase exprime tudo, como em frases de Castilho: «era um ósculo
perpétuo de inocência». Como isto sai bem na música da expressão; e que
belo seria o mundo se as bocas formosas estivessem sempre absorvidas no
ósculo perpétuo da inocência! Ó Teodora, se tu então morresses, o teu rosto,
trasladado em marfim, ainda agora nos seria a imagem dos lábios nunca
despregados do beijo de algum anjo, ressabiado ainda da voluptuosidade dos
anjos mal-aviados com o candor celestial. Mas tu cresceste, e deformaste-te, à
crisálida! A tua essência do Céu vaporou para lá no alarse de alguma virgem,
irmã tua, que o Senhor chamou na antemanhã do primeiro dia nebuloso de
sua vida; e o que de ti ficou foi a formosura e a desgraça da mulher.
Mas, afora a essência pura do Céu, que esbelta, que peregrina mulher cá se
ficou a ostentar as galas mundanas, esse opulento nada que desaba do altar da
nossa idolatria a uni roer surdo de vermes e podridão!
Esta última palavra tolhe-me de continuar a descrever Teodora.
Esmoreceram-me os espíritos. Caí da minha fantasia na lagoa fétida da
verdade. Achei-me como às margens de uma sepultura regélida do gear de
uma noite de Dezembro. Parou-me o sangue no pulso, inteiriçaram-se-me os
dedos e a pena desprende-se. Assobia o nordeste pelas arestas dos jazigos e
remexe e sacode de sobre esta pedra umas coroas húmidas de orvalho,
cristalizado em lágrimas; são coroas de perpétuas sagradas à formosura, que se
julgou imorredoura, à sexta hora do seu breve dia. Lá vão as coroas no bulcão
do vento; lá vão esgalhadas as frondes do chorão e do cipreste; lá vai tudo; a
memória dos vivos lá se foge também desta sepultura; tudo foi; só tu ficaste, ó Cruz!