Capítulo XX

No oitavo dia de residência em Paris, Afonso de Teive não sabia que fazer da
sua pesada inércia. Fechado no quarto de um hotel, ouvia os estrondos da
Babilónia e suspirava pelos silêncios da sua aldeia. Apresentara as cartas de
cavalheiros de Lisboa na Embaixada portuguesa, recebera a visita dos
compatriotas distintos em Paris e convivera nos primeiros dias em bailes,
teatros e jantares. Saciou-se prestes aquela contrafeita sofreguidão de vida, e
logo uma súbita e glacial atonia lhe enegreceu os prazeres almejados de longe,
como iniciação para outros que inteiramente lhe obliterassem da memória as
dores passadas.
E, no termo de oito dias, uma consolação única lhe restava: era o antegosto de
voltar à casa deserta de Ruivães e esperar ali ao lado do jazigo de seus pais o
breve termo de sua irremediável tristeza.
Afonso, porém, tinha vinte e quatro anos. A natureza contramina estas
renunciações intempestivas. Uns repentes impensados sacodem a alma de sua
modorra e a sobreexcitam a desejos vagos, bem que efémeros. A matéria não
é um impassível envoltório de corações entorpecidos. E preciso que a vida
sensitiva se amorteça antes da atividade moral para que as paixões malogradas
vinguem o total quebranto do homem.
Entrou Afonso na sociedade, levado pela mão da esperança, que prometia
guiá-lo ao pé da mulher salvadora. Mal encaminhado ia aos salões de Paris. Os
conhecedores daquele «mundo» contaram-lhe as histórias de cada mulher que
tinha ares de poder salvar alguém; no geral eram criaturas que procuravam
quem as salvasse das incertezas do futuro pelo casamento justificado e
santificado com algumas centenas de milhares de francos. Estas eram as filhas
dos generais do império, as filhas dos estadistas em começo de fortuna, as
filhas dos gentis-homens cujos apelidos contavam sua antiguidade de Carlos
Magno para além. E todas estas meninas, esperançadas em salvação e em
requesta de salvadores, quando encaravam no vulto melancólico de Afonso de
Teive, imaginavam-no um galante jovem que, ao contemplá-las, dizia
magoadamente entre si: «Se eu fosse rico!...» Elas, olhando-o de soslaio com
discreta reserva, diziam: «Se tu fosses rico!...»
Quando Afonso tomou a peito retificar este juízo dos seus amigos, avizinhouse
das mais aureoladas do azul-celeste da inocência e averiguou que as mais
singelas à vista eram as que menos a ponto falavam, em termos rigorosamente
aritméticos, de fortunas deslumbrantes, de casamentos projetados. E se ele,
com a portuguesa e bendita poesia dos nossos amores de sala, aventurava
algumas frases de idílio sobreposse, as ligeiríssimas criaturas ouviam-no
distraídas, como, no teatro, ouviriam música de Donizetti, e encheriam de
melodias a alma, enquanto assestavam o binóculo no filho do banqueiro.
Compreendeu logo Afonso de Teive que não servia à alta sociedade
parisiense. Um forasteiro que vai a Paris com trinta mil cruzados e deixa na
Pátria uma quinta que valeria menos de metade daquela quantia improdutiva
deve contar que no caminho do hotel aos teatros e salas, aos festins e
concertos, em menos de dois anos, com alguma parcimónia nas despesas, se
lhe hão de escoar as últimas mealhas. Os haveres de Afonso, postos à
disposição da filha do marechal do império ou do marques decaído com os
Bourbons, dariam uma dezena de toilettes da esposa. Esta dura verdade calou
lhe no ânimo, afastando-o do concurso de mancebos que malbaratavam cada
mês fortunas sobre-excedente à dele. Penoso desengano às portas do grande
mundo onde ele tencionara retemperar o coração ao bafejo das primeiras
mulheres da época e da França. Tinha, portanto, que descer às inferiores
camadas, abaixo mesmo da média. Nesta mais difícil lhe seria o escolher um
rosto distinto e uma alma no estado da inocência do anjo; trancava-lhe as
portas a cobiça que lá vai dentro, incitando-as a elevarem-se até emparelharem
com as invejadas mulheres da classe alta. Ele, cuja razão se iluminara à luz do
facho do universo, à luz de Paris, viu-se qual era, correu-se da sua comparativa
pobreza e refugiu dos bailes, das ceias e dos concursos em que o seu pecúlio
se ia desnervando à custa de sangrias inevitáveis.
Madrugou, um dia, Afonso de Teive, ambicioso de riqueza. Nesta hora, e pelo
tempo fora de oito meses, fez-se em seu coração um quietismo espantoso!
Descuidou-se do esmero de trajar; era-lhe já como indiferente o reparo da
mulher. Vendeu o tílburi e o cavalo. Mudou para hotel menos dispendioso.
Traçou plano de batalha à fortuna e entrou no jogo de fundos, onde os felizes,
a um relanço de olhos da boa fada, acumulavam enormes cabedais, facto
demonstrado por milhares de exemplos.
Foi feliz nos ensaios tímidos, e em pouco. Prosperavam-lhe outros de maior
risco. Pensou-se bem-fadado para empresas maiores. Vieram as alternativas,
equilibrando-se. Começou Afonso a estudar seriamente os mistérios daquele
jogo, com entusiasmo e absoluto menosprezo de tudo mais. Dizia-se ele:
«Refaça-se a fortuna, que depois se reconstruirá o coração. Dinheiro, muito
dinheiro, para comprar uma alma pura em Paris, onde a raridade voltou
caríssimo o género!»
Soçobrado por um revés, perde metade do seu capital. Desanima e esmorece
em força moral. Vai a medo à barra do Potosi e crê que está ali um abismo a
tragar-lhe o restante e depois a ele. Que fará empobrecido no extremo?
Venderá a casa, a quinta, a capela e o túmulo de sua mãe? Lembra-lhe a mãe, e
invoca a alma santa a coadjuvá-lo na empresa imoral. A santa infunde-lhe uma
insuperável desanimação diante do perigo. Associa-se a jogadores felizes.
Balanceia-lhe a fortuna entre pequenos desastres e pequenos lucros. Ao fim
de oito meses, a sociedade quebra, e Afonso de Teive tem de seu algumas
libras, e cinquenta que o Tranqueira delicadamente lhe introduz na sua gaveta,
os seus ordenados e economias de muitos anos.
O criado amigo, testemunha das lágrimas e das vertigens, ousa aconselhá-lo
que volte para Ruivães e se restaure limitando-se ao rendimento de sua casa.
Afonso enfurecia-se contra o criado, exclamando: «Sabes O que é a minha
casa de Ruivães? São quarenta carros de pão cada ano.» «E vinte pipas de
vinho e uma de azeite», juntou o criado. «Que vale tudo isso?», perguntou
Afonso. O Tranqueira fez a conta pelos dedos e respondeu: «Feitas as
despesas do granjeio, vale seiscentos mil-réis.» «E hei de eu viver com
seiscentos mil-réis por ano!», exclamou Afonso. «Eu, habituado ao luxo, com
vinte e cinco anos, com precisão de aturdir a minha existência nos prazeres,
que só a muito dinheiro se encontram em toda a parte do mundo!»
O criado encolheu os ombros e disse entre si: «Valha-nos a alma de minha
santa ama e senhora!»
Medita Afonso vender o resto do seu património; e para logo lhe ocorrem
estas palavras da última carta de sua mãe moribunda: «Dos desbarates e
perdimento dos teus haveres, faz muito por salvar ao menos esta casa onde
nasceste e a quinta que te dará abundante pão na velhice, se Deus ta der,
como tempo de merecer o Céu. Aqui nasceu teu pai, e muitas e muitas gerações de
santas e honradas pessoas. Salva esta casa, que tens nela a sepultura de teus
pais e avós. »
Desfalece-lhe a sacrílega coragem de negar a sua mãe o derradeiro pedido.
Mas a necessidade atroz obriga-o a desviar os olhos de um túmulo para
enxergar não longe a indigência em Paris, a indigência relativa com as galas do
passado.
Estas agonias são as supremas de sua vida. Palmira, a memória da mulher
fatal, nem por sonhos ó perturba. Aparelham-se afrontamentos maiores. A
vergonha de pobre mostra-se-lhe mais aviltante que a vergonha de atraiçoado.
Pensa, sonha, contorce-se, alenta-se, desmaia, recobra-se, sempre a pensar na
reabilitação pelo ouro, na reparação do seu capital; porém, de que modo, sem
capital nenhum?... Salvadora ideia!... Escreve ao tio Fernão deste teor:
Perdi-me, perdi o que trouxe de Portugal, estou pobre. Eis-me mais castigado
que o padecente dos pardieiros das Taipas. Ele refugiou-se aos quarenta anos,
ainda rico do mundo. Eu tenho vinte e cinco anos, a honra perdida, a
reabilitação impossível, aptidão para nada, o espírito derrancado no gozo de
infames delícias; e, para sustentar esta vida corroída de lepra, resta-me a quinta
de Ruivães. Eu sei que a fome não iria lá bater-me às portas, sei que ainda
tenho de meu o talher na sua mesa, meu tio, mas Afonso de Teive antes de
estender a mão à piedade mesmo dos seus há de esconder a sua ignomínia
num destes cômoros de terra onde os sepultados não têm nome. Minha mãe
pediu-me que não vendesse a casa onde está o jazigo de meus avós. Os meus
avós são os do meu tio Fernão de Teive. Aqui venho eu oferecer-lhe a minha
quinta. Compre-ma. meu tio, que a vontade de minha mãe está cumprida. Lá
fica Mafalda, o anjo, para ajoelhar diante daquelas lápides sagradas. Compre-
ma, sendo eu, de mãos postas, pedirei a minha mãe que perdoe ao réprobo,
que lhe vendeu os ossos, na véspera do dia da fome. Seu sobrinho, Afonso.
Fernão, lida a carta, em presença de Mafalda, abriu os braços à filha, que
parecia finar-se neles. Das ânsias e lágrimas saiu ela com uns gritos
aflitíssimos, pedindo ao pai que valesse a Afonso, sem demora. Fernão,
carecedor de ser consolado da desgraça do sobrinho, tinha de aquietar o
alvoroço da filha prometendo e cumprindo logo tudo que fosse da vontade
dela, que era também um dever dele a cumprir já com o parente, já com a
memória de sua irmã. Foi instantâneo o contentamento de Mafalda.
— E depois? exclamou ela. E depois meu pai, em se lhe acabando o
dinheiro da quinta, quem lhe acudirá?
— Nós respondeu de alegre aspeto o pai.
— Nós? disse ela entre alegre e amargurada. Mas não vê o que ele diz?
— Que diz ele, criança, que diz ele? Lê-me tu o que ele diz...
— Olhe, meu pai.. «Afonso de Teive antes de estender a mão à piedade
mesmo dos seus há de esconder a sua ignominia num destes cômoros de terra
onde os sepultados não têm nome.» O meu pai entende isto muito bem...
— Entendo: mas não me assusto. A gente há de pensar; primeiro, o
essencial, é mandar-lhe o dinheiro e dizer-lhe que os túmulos de Ruivães, e as
casas, e as terras, são dele, como até aqui.
— E aceitará? replicou Mafalda. Tomará a dádiva como esmola?
— Ó mulher! retorquiu o velho — , tu estás uma argumentadora dos meus
pecados!... E o mais é que lembras com juízo essa espécie!... O doido é capaz
de rejeitar, se eu dou dinheiro e quinta! Pois bem: diga-se-lhe que eu compro a
quinta, e mande-se-lhe os quinze mil cruzados, que é o valor da coisa. Vou
amanhã ao Porto! O dinheiro está aí. Fico sendo o proprietário de três quintas
de Afonso. Cá te ficam, menina. Tu, depois, a teimares no propósito de
morrer solteira, dá-lhas, se ele viver. Que mais quer a minha filha?
Mafalda ajoelhou a beijar-lhe as mãos. Ergueu-a o pai com muita ternura,
enxugou-lhe as lágrimas no lenço em que embebia as dele e disse, sofreando
os soluços:
— Que esperas tu deste rapaz, Mafalda? Quando virá Deus em auxilio
desse tão fraco e desventurado coração? Filha... estima-o; mas não o ames
assim com esse amor que te devora a mocidade! Que vinte e quatro anos os
teus tão desconsolados e estranhos às menores alegrias da tua idade!... E tu
não cais em ti, filha, não vês que Afonso está cada vez mais longe de te avaliar!
— Sei, meu pai respondeu Mafalda com serenidade.
— E então?... sabes, e não te vences...
— Não posso vencer-me. Deus sabe que lhe tenho pedido auxilio, e nem
assim... As lágrimas saltaram-lhe novamente, e logo os arquejos do peito,
ansioso de ar.
— Pois bem, meu amor tomou o pai, duplicando as meiguices-, eu absolvo
a tua fraqueza, já que o Altíssimo te não fortalece. Quem sabe, filha, quem
sabe os segredos do porvir? Há milagres mais assombrosos. Pode ser que ele
ainda venha para ti com o coração purificado e o tributo da mocidade
avaramente pago. Mais bom marido será então. Que te diz lá no intimo a voz
do teu anjo? Serei profeta, minha filha, serei?
Mafalda sorriu-se e murmurou:
— E não podia ser assim, meu pai?! Às vezes, sonho-o; tenho horas em
que me julgo louca, no meu contentamento sem causa, sem esperança!... Três
canas recebi dele em oito meses, e que frias expressões! Quando eu o
considerava esquecido, por amor daquela criatura, é que ele me escrevia mais
amorável; agora, que é livre, e para além do mais infeliz, parece que nem
sequer me estima! E ainda assim, meu pai, eu tenho presságios, em meu
coração, alegres como a sua profecia.
— Pois então pede a Deus que mede vida para que eu os veja realizados.
— mas, filha, a realização da profecia, se vier, já me não achará vivo...