Capítulo X

Afonso, passados dois minutos, continuou, demudado já o semblante da
jovialidade com que começara:
«Teodora reconheceu-me. A turbação do meu ânimo era como uma vertigem,
e assim mesmo vi-lhe todos os lances dos olhos, todas as linhas alteradas
daquele adorável rosto. Fitou-me. Estremeceu; vi-a estremecer na quase
paragem convulsiva que fez o cavalo. E eu busquei o apoio do ombro de
minha mãe e senti-me comprimido nos braços dela. E a magia satânica do
olhar da bela mulher empederniu-me; arrefeci; dai a pouco era fogo vivo a
minha fronte; pensava que a via ainda; e ela tinha passado. Pus então a mão
sobre o meu coração e já lá encontrei a de minha mãe.
»Caminhámos para casa e não trocámos palavra. Entrei no meu quarto, lancei
me sobre a cama, abafei o rosto nas almofadas e vinguei-me do meu
infortúnio a chorar. Chorei e senti-me desoprimido. Fui ao quarto de minha
mãe e achei-a de joelhos orando. Quais lágrimas me deram alívio? Seriam as
dela ou as minhas? As dela, que o homem, quando chora, desafoga uma
paixão e abafa noutra: a do ódio. Prantos que salvam são os da dor imerecida,
os apelos das iniquidades do mundo para o tribunal da Providência. E eu,
quando chorava, amaldiçoava e pedia vingança.
»No dia seguinte fui para Coimbra.
»Concentrei-me com a visão da ponte de Leça. Não me deixou aquele
adorado demónio recair na minha miséria da embriaguez. Para quê dizia eu —
, se tenho de voltar à razão para encontrá-la com a tenaz ardente da tortura?
»Quinze dias depois da minha chegada, abri uma carta marcada em Braga.
Oscilaram-me as pernas, e cuidei ouvir dentro do peito o despegar-se-me o
coração, uma dor que eu não sei se é comum de todas as organizações, dor
que eu tenho tantas vezes experimentado, que já a considero aleijão dos vasos
sanguíneos. A carta era de Teodora, as linhas muito poucas, e assim, se bem
me lembro:
Foi o mau anjo da minha vida que me levou para onde tu estavas, Afonso.
Faltava-me o inferno de hoje. Não bastava o remorso: era necessária a
fatalidade do amor, da paixão. Daqui por diante há de rasgar-me o peito a
desesperação dos réprobos, que Deus lançou de si. Arrasto-me a teus pés a
pedir perdão. Não me amaldiçoes tu de hoje em diante. Se tens padecido.
perdoa, e Deus te dê o triunfo na bem-aventurança; se te esqueceste,
escarnece-me. Que vingança maior? Adeus. Alegra-te, que eu desejo a morte e
ela virá salvar a minha pobre alma deste miserável corpo.
»Que luta, meu amigo! As horas daquele dia e daquela noite foram uma
continuada alternativa de alegria doida e de excruciante agonia! Começava a
escrever-lhe, e rasgava logo as cartas, envergonhando-me diante de minha
própria consciência. A paixão ia tocando as extremas onde começa a
perversão moral. Já me queria parecer que não era indignidade nenhuma
responder-lhe eu, quer insultando-a, quer atirando-lhe aos pés com o meu
coração infame. Ultrajá-la e adorá-la era então a despótica necessidade da
minha cabeça alucinada.
»Eu carecia de um amigo, e não tinha nenhum a quem mostrasse as secretas
dores, que escondera de todos. Tive ânsias de uma alma que me escutasse.
Lembraram-me todos os que mais tinham convivido comigo. Sem exceção de
um só, eram todos fúteis e incapazes de me pouparem à sua zombaria, se me
vissem chorar. Sufoquei-me, atirei-me aos braços da minha algoz fantasia,
deixei-me dilacerar pelo abutre da soberba, soberba de não ser ridículo em
nenhuma das minhas desgraças.
»Passaram três dias. Na minha banca estavam três cartas fechadas e
fragmentos de outras, que eu destinara a Teodora. Abri as canas, reli-as, tive
pejo e tédio de mim, rasguei-as e fui embriagar-me.
»Porquê? Porque não havia eu de ser o que seria todo o homem abrasado de
amor, ou sequioso de vingança? Que tinha que eu, condoendo-me ou
escarnecendo-a, lhe perdoasse? Se alguém se rira de mim abandonado dela,
que maior vitória queria eu senão a de fazer risível o marido da mulher
castigada por sua mesma abjeção? Esta filosofia hedionda, com que se
pavoneia a filáucia de muitos sujeitos, celebrados pela inveja e admiração de
outros miseráveis do mesmo formato, quem me privou de a seguir, e
aproveitar num caso de vida, em que a minha cura não podia esperar-se da
religião, da moral, ou da volubilidade de meu carácter? Não lhe respondi; é o
que sei dizer da minha inflexível coragem dos dezanove anos. Era uma feroz
vingança que me infligia à conta do cobarde quebranto em que me deixara a
aparição da mulher vil, arreiada com as pompas da felicidade.
»O meu segundo ano de Coimbra foi um continuado suicídio. Desbaratei a
saúde em toda a espécie de desregramento e libertinagem. Não dei nos olhos
da academia, porque, naquele ano de 1846, a fermentação da guerra civil
absorvia os espíritos alvorotados dos académicos. Fechou-se a Universidade
em Maio, quando eu, extenuado de insónias e empeçonhado de bebidas
estimulantes, caí de cama, com o sincero desejo e alegre esperança de que me
não levantaria mais.
»Escondi de minha mãe aquele estado enquanto me não assaltou o remorso
de a não chamar ao meu leito e confessar-me da vileza de alma que me levara
a destruir a minha vida por meios tão ignominiosos. Foi esta vergonha que me
salvou. Pedi com ânsia e lágrimas aos médicos que me salvassem. Disseramme que
fosse para a Madeira recobrar vigor e viajasse depois um ano nos
países temperados e arborizados. A meu ver, a ciência queria dizer no seu
receituário que eu estava em vésperas de encetar uma viagem barreiras adentro
da eternidade.
»Confiei na juventude, na vontade de viver, e ergui-me. Saí de Coimbra para o
Porto. Tentei o meu espírito, animando-me a procurar as montanhas
saudosas, os meus queridos pinheirais de Ruivães, os regatos cristalinos,
orlados de verduras, em que minha mãe me via criança, a colher boninas para
lhas entretecer nos cabelos. A minha alma amava então estas coisas com o
transporte arroubado e sereno dos tísicos; é que o invólucro já lhe não
empecia o filtrar-se nela o calor da luz ideal, aquele calmo ambiente em que se
degela o sangue coalhado no coração.
»Venceu o desejo da vida. Isto que, um ano antes, se me antolhou feio e
inabitável aformoseou-mo então o anelo de viver. Até a cor do céu, de onde
me choveram as alegrias dos dezasseis anos, me sorria e chamava. Nem já o
temor de me encontrar com Teodora pôde conter-me. Que importava? Eu
cuidei que a porção de minha essência, cativa do amor dela, se tinha caldeado
e vaporado ao fogo, de onde eu saíra refundido, e muito estranho ao homem
do outro tempo.
»Surpreendi minha mãe, sentada à sombra da carvalheira da porta, relendo as
minhas últimas cartas, escritas com a ternura da alma iluminada pela alva de
um melhor dia. Ao contacto do peito da virtuosa, senti exuberância de saúde,
de alegria e de unção religiosa. Então me considerei estreado em nova existência.
»Esperava eu que se abrisse a Universidade para ir a Coimbra repetir o 2° ano,
cujas disciplinas nem sequer as tinha visto no índice dos compêndios. Minha
mãe dissuadia-me de voltar a Coimbra, dando como desnecessária a formatura
a quem não havia de ganhar a vida por ela. Eu, porém, desejava instruir-me;
dava-me como necessário recolher ideias que ao depois me aligeirassem no
estudo os anos de toda a vida, que eu designara passar na casa onde meu pai
tinha vivido a sua, com todas as ditas da paz. Minha boa mãe transigiu. A doce
criatura, acusando-se sempre de motora da minha desgraça, obrigara-se a
expiar pela abnegação e condescendência. E, demais, ela temia que, alguma
hora, me reaparecesse a visão de Leça.
»Que pressentimento!
»Dias antes da minha destinada partida, fui às Taipas despedir-me de meu tio
Fernão, que estava em Caldas. Ao entardecer saí com minha prima Mafalda a
passear na carvalheira. Já era escuro quando nos fizemos na volta de casa. Ao
atravessarmos a alameda dos banhos, acercou-se de nós um vulto de mulher
rebuçado numa capa alvacenta. Mafalda apertou-me o braço convulsivamente.
O vulto parou em frente de nós, e disse num tom irónico: "Consintam que os
contemple na sua felicidade: é um prazer dos felizes verem-se admirados."
»Reconheci a voz de Teodora. Mafalda sentiu o tremor de meu braço e
reconheceu-a também de instinto.
»Desviei-me do caminho trilhado para seguir avante. Teodora deixou cair a
dobra da capa, em que ocultava meio rosto, e disse num tom arrogante: "Veja,
Sr. Afonso de Teive! Veja, que ainda sou formosa! O coração está esmagado;
mas a face ainda conserva as graças que poderiam arrebatar maior alma que a sua."
»Deteve-se alguns segundos arquejantes; eu ouvia-lhe o latejar do alto seio no
frémito de seda do comete. Depois, com um gesto de arremesso, lançou-me
aos pés um volume e afastou-se a passo rápido.
»Levantei o objeto arremessado e conheci que eram papéis e um objeto de
mais solidez; deviam de ser as minhas canas. O restante que seria?!
»Mafalda ia murmurando: "Que mulher, Santo Deus! que ousadia!... Eu bem
desconfiava que era ela. Quando tu estavas a dormir esta tarde, vi passar esta
mesma criatura, assim encapotada sobre um grande cavalo, com um criado de
farda. Tua mãe tinha-me dito como a vira em Leça, e meu pai descreveu-ma
tão pelo miúdo, que a adivinhei. Não to disse, e pedi a Deus que te levasse
depressa daqui...." "Não receies, minha boa prima", disse eu a Mafalda, "que
esta mulher na minha vida, já agora, apenas pode ser um estorvo de três
minutos, quando eu passeio nas Caídas." Minha prima replicou: "Não te
iludas, meu primo: esta mulher é a tua sina maldita."
»Sorri-me e fui examinar o pacote. Eram as cartas cintadas com uma fita preta,
e desta fita pendia uma pequena chave; era também uma caixinha de tartaruga
fechada. Entendi que a chave pertencia à caixa. Abri-a; e vi uma trança de
cabelos, com três flores ressequidas compostas entre as madeixas, como se as
estivessem enfeitando. Reconheci as três flores: tinha-lhas eu levado do jardim
de minha mãe, em dia dos seus anos.
»Tirei a trança e, insensivelmente, a contemplá-la, achei que a tinha perto dos
lábios. Circunvaguei os olhos, a examinar que me não vissem. Estava sozinho
e fechado... Beijei os cabelos de Teodora, meu amigo! Peço-te desculpa de não
corar agora: consinto, porém, que, se alguma vez escreveres esta história,
ponhas seis pontos de admiração, quando chegares aqui, e discorras o melhor
que souberes e puderes acerca da miséria do bruto que chora, e beija tranças
de cabelos, do bruto que ri de seu mesmo vilipêndio, do bruto, enfim,
chamado homem.
»Ia depor as madeixas no cofre, receoso de alguma surpresa, e então vi um
papel dobrado no fundo da caixinha. Era uma cana. Escondi-a sofregamente.
fechei os cabelos, escondi o cofre e as minhas canas no saco de noite e,
palpitante de comoção, saí do meu quarto e fui respirar no escuro de uma
varanda, onde presumia não encontrar alguém.
»Apenas sorvi um hausto de ar, que me chegou ao coração impregnado das
auras balsâmicas da minha mocidade, ouvi um respirar alto e tremente.
»Fui à extrema da varanda e vi minha prima, com as faces entre as mãos,
repuxando ao seio os soluços com ansiada violência. Chamei-a carinhosamente.
Interroguei-a. Quando bem a compreendi, não sei dizer-te
que entranhado compungimento me cortou a alma! Caíram-me nas mãos as
lágrimas de Mafalda... Perguntei-lhe porque chorava. Respondeu-me: "São as
primeiras lágrimas: é por ti que as choro, meu primo. Deus deixa-te perder —
. Não há ninguém que te possa salvar daquela mulher." E, desprendendo-se
das minhas mãos, fugiu a soluçar.
»Eu levantei os olhos ao Céu e disse, em meu espírito, com tenor quase infantil:
»"Não deixeis que eu me despenhe no mesmo abismo de onde a Vossa
misericórdia não tem querido salvar-me!"
»E cuidei que o Céu se abria à minha oração com um milagre.
»A imagem de Teodora passou ante mim; via-a repulsiva, abjeta, vilíssima e
prostituída. Súbito, num disco luminoso, desenhou-se-me o vulto angelical de
Mafalda, com a face em lágrimas, humilde como uma santa e ao mesmo
tempo altiva como a virtude sem nódoa.
»Amei então minha prima; todas as estrelas do céu ma estavam bem-fadando
para mim; todos os rumores da noite diziam comigo um hino ao Senhor que
me descativara das ciladas da mulher fatal, que no descaro mesmo da sua
audácia me fascinara e com aqueles cabelos tecera o baraço de estrangulação
da minha dignidade.
»Fui, fervoroso de ternura, em busca de minha prima. Encontrei-a à cabeceira
do leito de seu pai. Chamou-me o tio para os pés da sua cama. Sentei-me com
inquieta alegria. O velho achou-me outro em olhar, em tom de voz, em ar de
rosto. Queria saber o segredo da transformação. Perguntava a Mafalda se o
sabia. A menina sorria com aquela distinta angústia que lacera a alma sorrindo,
porque as lágrimas só servem para exprimir os sofrimentos comuns.
»Assisti ao chá de meu tio, pedi-lhe a bênção e recolhi-me ao meu quarto.
Minha prima despediu-se de mim sem me fitar no rosto. A sua natural altivez
sofria, depois que a surpreendera chorando, provavelmente. Este resguardo
aumentou a divinização de Mafalda.
»Fechado na minha alcova, abri a cana de Teodora. Está neste maço lacrado,
há catorze anos. Quebre-se o lacre, por amor da autenticidade da história...
Aqui tens. Lê tu, enquanto eu dou folga aos pulmões. Há muito ano que não
falei tanto tempo!»
Li a carta de Teodora, cujo traslado segue:
Quem te disse a ti que eu tinha caído diante de mim mesma, Afonso?
Quando te dei eu direito de supor que o teu silêncio, em resposta a um grito
do coração, me esmagaria os brios de mulher, que, de um sopro, faz saltar de
suas vestes a lama do teu desprezo?
ndo eu te apareci magnífica dedicação, fizeste-te mesquinho tu. As
minhas lágrimas figuraram-se-te o pus de um coração corrompido; e eram
soro do mais nobre sangue.
Não pudeste chegar com a fronte à altura da minha, e apedrejaste-ma!
Quem pensas tu que és, soberbo senhor, que voltas o rosto da tua escrava. e
não sabes sequer usar a misericórdia de dizer à mulher que te ama que não
seja infame, amando-te?!
Neste ponto suspendi eu a leitura, tomei a respiração e disse:
— Esta senhora tem estilo, ou eu não entendo nada de estilos! Que
interrogatório!
— Podes rir, que eu também cá estou mordendo os beiços para não
espirrar uma casquinada na cara do antigo Afonso de Teive disse o meu amigo.
— Mas o estilo tornei sinceramente agradado da leitura — , o estilo aqui
não pode ser a mulher: aqui há, pelo menos, a triple inteligência de três
escritores de melenas sacudidas aos quatro ventos da inspiração! Por Hércules!
Isto, sim, que é mulher... e «aqui há que ver», como diz o Garrett.
— E que ler juntou Afonso de Teive. Continua, se queres. Perfilei as
minhas faculdades inteligentes, e segui a leitura.
A contas, homem de ferro, que endureceste o teu frágil barro de outro tempo
ao fogo de baixas paixões, a contas com a mulher desprezível!
Que fazias tu quando eu me estorcia de saudades de ti e dores do meu
cativeiro, dentro das grades das Ursulinas?
Quando soubeste que a tirania me fechava a sete chaves numa cela e me
media os átomos de ar, que eu respirava a furto, que fazias tu para resgatar os
quinze anos de uma mulher que queria o sol das flores, das aves, dos
mendigos, do último ver-me que se arrasta e cumpre o seu destino debaixo
dos olhos de Deus?!
— Parece-me refleti eu que esta senhora arredonda ambiciosamente os
períodos, meu caro Afonso; e, se me dás licença, direi que há estilo de mais
neste período!... Estou mono por te perguntar que impressão te fazia isto há
quinze anos!...
— Lê, e no fim falaremos disse Afonso. E eu li:
Não respondas. A vil, a abjeta, a desgraçada, é generosa. Não respondas. Ri e escuta.
Abandonada por ti, enganada, não sei por que nem com que fim, por tua mãe,
achei-me fraca para cruzar os braços e esperar a morte. A borda do abismo. vi
uma tábua de salvação. Sabia que, segurando-me nela, as mãos se rasgariam
em chagas incuráveis. Sabia-o; mas agarrei-me à tábua de salvação. Escutei a
desgraça; que não tinha outro anjo, nem outro demónio que me aconselhasse.
Escutei-a, e aceitei o marido que ela me deu. Perdi-me para a vida da alma;
mas encontrei a vida dos olhos e dos ouvidos, e do seio, onde me roía a
serpente da soledade e do desabrigo.
Vi árvores, vi estrelas, ouvi os cânticos da Terra e os amorosos murmúrios da
natureza festiva. No centro do mundo era eu a única mulher sem mãe, sem
pai, sem amigo, sem coração que se abrisse às cinzas do meu. Não importa.
Via o Sol no firmamento; e, para além do Sol, a infinita luz dos que bem
disseram a mão do Senhor, que, à sua vontade, desdobra um crepe de trevas
sobre os corações, que, em inocência, não ousam interrogá-lo como Job!
— Demais a mais refleti eu — , lida nos livros sagrados!... Posso, sem
indiscrição, perguntar se a autora desta carta morreu ou vive escorreitamente?
— Espera que a concatenação dos factos te elucide respondeu Afonso.
Prossegui, lendo, com espanto maior que o meu costume, se acerto de topar
coisas escritas por pessoas de juízo duvidoso:
Transbordou um dia a amargura de minha alma. Não sabia onde me levava a
vertigem. Corri léguas. As árvores que gemiam um som, as fontes que tinham
uma voz, os trovões que estalavam do céu de bronze, as catadupas que
bramiam no despenhadeiro, tudo me dizia o teu nome. Corri as montanhas
que nos viram meninos; reconheci a fraga onde nossas mães se sentavam; orei
à cruz de pedra que está na quebrada da serra. E não te vi. Dois meses te
procurei, sem balbuciar o teu nome. E, quando há um ano te avistei encostado
ao ombro de tua mãe, a voz do meu orgulho de desgraçada disse-me: se ela
quiser que tu te percas por ele, amanhã não terás honra, nem família, nem
marido, nem criatura sobre a Terra que te não insulte.
E escrevi-te, Afonso! Aquele papel era uma renunciação, aquelas palavras
queriam dizer dá-me a perdição como salvamento; dá-me a infâmia como
glória; o mundo vai apedrejar-me, e eu cuidarei que ele me aclama virtuosa;
todas as devassas me julgarão indigna delas; eu, contente da minha desonra,
estenderei benignamente a mão a todas as miseráveis que ma cuspirem.
E tu, Afonso? Como me julgaste morta para a virtude, aproximaste-te do
cadáver, puseste-lhe sobre o peito um pé, calcaste, viste-lhe nos lábios o
sangue do coração, e escarraste-lhe!
Voltei do outro mundo. A mulher que viste há pouco era um fantasma. Os
cabelos negros que adornaste com três flores naqueles formosos quinze anos
caíram-te aos pés. As flores vêm aradas do fogo do inferno. O fantasma
voltou às suas labaredas, para nunca mais te crestar o riso dos lábios com as
chamas dos seus olhos. Vai tu ao Céu e pede a Deus que me deixe adorar-te
na eternidade das penas. Pede-lhe que me dê eternidade para a expiação e
eternidade para o amor Adeus.»
Não sei bem dizer de onde me vieram as lágrimas. Sei que terminei a leitura da
carta já quando os olhos mal discriminavam as letras.

Como a gente, às vezes, chora!...
Era o estilo!