Capítulo IX

Verei se posso repetir, sem inexatidão sensível, o que Afonso de Teive me
contou, com seguimento aos sucessos descritos.
«Nenhum rapaz dos meus anos», dizia ele, «exerceria tão dolorosa violência
sobre o seu espírito. Jurei comigo de nunca mais repetir o nome de Teodora, e
mesmo convencer minha mãe de me ter esquecido dela. Eu não sabia a que
porta do Inferno fora bater, sacrificando-me puerilmente a uns pontos de
dignidade que homem nenhum de anos experimentados conseguiu vingar. Em
presença de parentes, e relações de minha família, atava com arames em brasa
a máscara da minha agonia, contra a qual minha mãe involuntariamente
dardejava insultos. Quando ela me dizia: "Estás esquecido daquela louca, meu
filho!, as minhas orações foram ouvidas no Céu", ou quando meu tio, com
alegres gargalhadas, me aplaudia, dizendo: "Sempre entendi que eras homem,
meu rapaz!", então a minha angústia exacerbava-se, e eu, assim que as
atenções me deixavam senhor meu, ia esconder-me a chorar, a chorar com as
mãos postas; e, muitas vezes, deste inútil rogar à piedade divina, erguia-me
para escrever a Teodora cadernos de papel, que queimava, antes de apagar a
luz, ao entrar o sol no meu quarto. Que noites aquelas!
»Minha mãe deteve-se um mês em Lisboa. Adivinhei-lhe o desejo de me trazer
consigo para a província; mas a obediência não podia levar tão longe a
abnegação. Recordar estes sítios, ver além os horizontes de Braga, pensar que
ainda havia de encontrar fortuitamente Teodora, ou alguém que me falasse
das felicidades dela, isto apertava-me tanto a alma que eu sentia em mim um
desfalecimento de coragem, uma quase precisão de pedir a todos em altos
brados que me amparassem.
»Então pensei em ir para Coimbra, onde esperava eu que mil rapares de todas
as condições e feitios me arrancariam de mim próprio e levariam em suas
folias, ou me habituariam o espírito às consoladoras ocupações do estudo.
»Minha mãe acedeu prontamente à minha vontade.
»Fui para a Universidade, muito escasso de preparatórios, e por isso me
matriculei em Filosofia. Logo aos primeiros dias conheci que fora um erro
confiar nas distrações juvenis de Coimbra. Alistei-me primeiramente na roda
dos homens velhos, gente ridícula; mas de uma ridiculez que não distrai
ninguém. Cada um parecia que trazia dois oráculos na cabeça; antes de
expenderem os seus dogmas, punham-se à escuta da inspiração; e, ao abrirem
a boca, a própria Minerva das escadas latinas pensavam eles que se apeava do
soco para escutá-los. Zanguei destas criaturas infestas e fui-me inscrever na
fila dos literatos militantes, gente de pouco saber, de muitas maravilhas,
questionadora por necessidade de adivinhar a discutir o que não sabia da
leitura, enfim, futuras esperanças da Pátria, que bem sabiam que uma diminuta
ciência, com muita ousadia, basta para atingir os pináculos sociais. Tinham
estes rapazes um jornal. Publiquei sem assinatura uma das muitas poesias que
eu tinha escrito nos arvoredos de Belas, nos tempos em que a imagem
lacrimosa da reclusa das Ursulinas ia lá comigo a ouvir a voz de Deus nas
harmonias da Terra. A poesia Unha a religiosa suavidade de um amor que se
alivia aos santos enlevos do coração virgem. Os literatos disseram que eu
imitava Lamartine e que mesmo o traduzia quase literalmente em algumas
estrofes. Ora eu não tinha ainda lido Lamartine: fui lê-lo, e corei de vergonha
pelo grande poeta comparado comigo. Em todo o caso, desgostei-me dos
meus colegas por se darem uns ares de tolice muito por aí fora dos limites
razoáveis. Passados tempos, dei ao jornal uma outra poesia, fremente de
paixão, arrojada, Vertiginosa, escrita depois do meu desastre. Os meus colegas
avisaram-me de que a academia, lendo a minha ode, declarara que eu traduzira
Vítor Hugo. Fui ler depois Vítor Hugo, e lastimei que os soberanos do génio
estivessem sujeitos às chufas de todo o mundo, sem exceção dos literatos
meus contemporâneos da Universidade.
»Enfadado de uns sandeus, que nem mesmo eram recreativos, bandeei-me
com os trocistas, iniciando-me para isso nas libações homéricas da genebra e
conhaque do Troni. A primeira vez que me embriaguei, recobrando o tino,
envergonhei-me; lembrou-me minha mãe, e chorei. Não impediu isto que me
aturdisse segunda vez. Os meus sócios de delírio diziam que eu, embriagado,
era um rapaz de boa companhia, alegre, sarcástico, irónico, eloquente e
mesmo espirituoso. E, em verdade, das minhas perdas de razão ficavam-me
lembranças de ter visto o mundo de outra cor e de haver idealizado quimeras
douradas por novas e esplêndidas auroras de outro amor. Comecei a sentir
saudades da embriaguez quando, no uso íntegro das minhas faculdades, me
acometiam os terrores da noite infinita do meu coração, horas roubadas ao
tormento dos parricidas, asco acerbo a tudo que em volta de mim revelava
alegria, ódio mesmo à luz que me mostrava os espectros da natureza, em que
noutro tempo a minha alma toda oração, toda absorvida, se evolava em
eflúvios de admiração para o Altíssimo.
»Neste perdimento de dignidade terminei o primeiro ano, com aprovação
plena, e resolvi passar as férias em Lisboa.»
Com aprovação plena! — atalhara eu a Afonso de Teive.
«Por que não?», respondeu ele. «As minhas noites eram quase todas
desveladas, depois que me recolhia fatigado das assuadas e distúrbios. Se o
torpor me não adormecia, a visão de Teodora sentava-se em frente da minha
mesa e dialogava comigo, ela no tom escarnicador da mulher ovante da sua
desonra e eu no acento suplicante de quem já não tem que pedir senão
piedade.
»A refugir deste suplício, ferrava com desespero dos livros da aula, relia-os
sem compreendê-los; mas esmagado o coração sob as mãos de ferro da
vontade, conseguia entender, decorar e expor com clareza, uma ou outra vez,
as ideias dos compêndios. Os meus créditos firmaram-se desde que me estreei
vantajosamente numa lição.
»Pediu-me minha mãe que a visitasse em férias, embora me demorasse poucos
dias. Sem me negar aos seus desejos, consegui que ela fosse ao Porto passar
comigo a estação dos banhos de mar. Anuiu a santa senhora.
»Os meus dias corriam magoados, mas serenos, em Leça da Palmeira, onde se
haviam reunido alguns parentes nossos de casas muito distantes umas das
outras. Meu tio Fernão concorreu com minha prima Mafalda, que o jovial pai
me tinha desenhado sem encarecimento. Fora a minha companheira dos
brincos infantis. Viram-na os olhos da minha razão depois à verdadeira luz.
Era bela e triste. A seriedade taciturna de Mafalda, se não fosse vaidade de
raça, seria um dialogar permanente com o namorado anjo da sua inocência.
"Se eu pudesse amá-la!", dizia eu a minha mãe, que se tornara para mim,
naqueles dias menos oprimidos, uma segunda consciência. E minha mãe, com
a suma delicadeza da sua virtude, pedia a Mafalda que me obrigasse a falar,
que me fizesse ler alguns livros recreativos em voz alta. Instado por minha
prima, escolhi a leitura da Noite do Castelo ou as Ciúmes do Bardo. Comecei
a ler pelo livro; porém, à segunda página, dei de mão insensivelmente ao livro
e declamei de cor com tamanho entusiasmo, e com a voz tão vibrante de
lágrimas, que minha mãe rompeu em soluços e minha prima empalideceu de
assustada da minha intimativa. Aqui tens tu um lance que eu não posso agora
relembrar sem rir! O que tudo isto me parece, visto daqui, do alto dos meus
tamancos, e através destes óculos de três degraus!
»Minha mãe impediu a continuação da leitura e Mafalda nunca mais desejou
ouvir-me. Observei mais arrefecida, e menos atenciosa, minha prima, desde
aquela explosão de ciúmes, por conta do poeta Castilho. Isto inquietou-me tão
de leve que nem a vaidade me magoou.
»Estávamos em Setembro e eu já tinha entrouxado as malas para voltar a
Coimbra. Fui despedir-me dos sítios onde as horas me tinham sido mais
tranquilas, na soledade. Velejei num barquinho rio acima e aproei à ribanceira,
de onde se avistava o arruinado e já em parte desfigurado conventinho de
extintos franciscanos. À sombra de um arco manuelino, que tinha sido a
portaria do arrasado templo, meditei nos frades, no convento, no refúgio dos
desamparados do mundo, nas lápides profanadas que mãos ímpias arrancaram
de sobre as cinzas de muitos corações, extintos com o segredo de sublimes
torturas. Meditei, e maldisse a civilização, que fechara os áditos da paz quando
a guerra sacudia as suas serpes mais inexorável; maldisse a ilustração, que
aluíra a enfermaria dos empestados do vício, quando a peste ardia mais
devoradora. A minha angústia era ainda imensa, porque eu não podia
dispensar-me de Deus, e dos homens, que apontavam o caminho do melhor
mundo.
»Descendo o rio, lá ficavam ainda os olhos e as saudades nas ruinarias do
convento. Desembarquei na ponte, onde minha mãe me estava esperando.
Detive-me a passear com ela pelo braço e a referir-lhe as minhas ideias sobre
os conventos. A virtuosa senhora rejubilava-se ouvindo-me e dizia, em raptos
de contentamento, que eu estava da mão do Senhor e que, apesar do mundo,
havia de trilhar sempre os vestígios de meus religiosos avós, alguns dos quais
tinham morrido mártires da fé nas pelejas dos soldados de Cristo contra os
Maometanos. Ouvia eu aprazivelmente a crónica de meus ascendentes,
gloriosamente mortos na África e no Oriente, quando vi ao longe, na estrada
do porto, à saída de Matosinhos, em direção à ponte, uma senhora cavalgando
um alentado cavalo, ao lado de um cavaleiro menos cuidadoso das arremetidas
garbosas do seu.
»Minha mãe assestou a luneta e murmurou: "Valha-me Nossa Senhora dos
Remédios!... Se me não engano..."
»"Quem é?", atalhei eu. Minha mãe demorou a resposta. Os cavaleiros, no
entanto, avizinharam-se a galope. Antes de conhecê-la, adivinhou-a o coração,
que me repuxou à cabeça uma onda de sangue... Era Teodora, Teodora,
deslumbrante de formosura, gentil como as magníficas quimeras do pincel
inspirado, visão que me não parecia para olhos turvados de verem as fealdades
desta vida... Não te espante o ardor desta linguagem. Eu fiz agora pé atrás
vinte e quatro anos da minha vida, e senti-me reviver naquele momento...
Agora, espera um pouco... Deixa-me tomar fôlego, recordando minha mulher
e meus filhinhos.»