Capítulo XIX

«No dia seguinte, mandei de Sintra o criado a casa, informar-se dos sucessos
decorridos... Querenas tu... agora penso que tu desejas saber como foi aquela
minha noite... Passei-a na ida para Sintra. Quer-me parecer que parte de
minhas faculdades morais ia atrofiada. Volteavam em redor de minha
inteligência uns corpos, ora negros como o recesso dos abismos, ora ígneos
como as fitas dos coriscos. Nem a memória de minha mãe se mesclava ao
revolutear das minhas conceções desconsertadas. Era a febre, a procela do
sangue encapelada na cabeça. O criado teve o instinto de compreender-me.
Raras palavras me disse com resposta. Algumas vezes senti-me aferrado pelo
seu braço; era quando eu ia despenhar-me do cavalo, sem dar tento da vertigem.
»Contava-me ele depois que eu, a intervalos longos, expedia gritos que lhe
eriçavam os cabelos e vociferava insultos, esporeando freneticamente o cavalo.
»Aqui tens a minha noite: não tenho outras memórias. Apenas me recordo
que aos primeiros assomos da manhã se romperam os diques das lágrimas, e
chorei por muito tempo.
»O criado partiu de Sintra com ordem de colher noticias. Voltou, entregandome
um papel aberto que o escudeiro lhe dera, escrito por Palmira. Era uma
declaração de divida indeterminada, ou que havia de fixar-se pela avaliação
dos objetos de seu uso, que ela, ao sair de minha casa, levava consigo. Deviam
ser vestidos e joias. Palmira, portanto, tinha saído na manhã daquele dia.
»Ao entardecer, quando a tristeza caia do céu, como um luto de almas não já
desditosas, mas ainda raiadas do íris da esperança, confrangeram-se-me em
dor inefável as fibras do coração, dor de saudade voracíssima, saudade de
Palmira, desejo ardente de vê-la, não sei se para cair-lhe de joelhos aos pés, se
para escarrar-lhe no rosto. Nenhum alivio pedido a todas as potências de
minha imaginação, pedido a Deus, e ao amor de minha mãe, nenhum
conforto experimentei. Era a desesperação, que pensa no suicídio. Deitei-me,
confiado na esperança de cair em letargia de sentidos. Revolvi-me sobre
espinhos em incêndio febril. Se algum instante o sopor me desfalecia, pulavame o
coração com tamanho ímpeto que eu espertava convulso, atirando-me
do leito contra a janela, em agonias de estrangulado. O máximo horror das
minhas visões era ela, nos braços daquele miserável, àquela hora. As mínimas
circunstâncias de um espetáculo de devassidão, as mais secretas e lúbricas
minudências se me traçavam patentes a uma claridade infernal. A oração, esse
divino desabafo de enormes aflições. nem esse bem me valia um relâmpago de
sossego à alma. Começava orando, a ansiedade recrescia, a fé desamparavame, e
então sobrevinha o desprezo de Deus, a negação da Providência e um
feroz deleite de blasfemar. Eu amava a mulher abismada, a mulher prostituída!
Eu, Santo Deus, com instintos tão nobres, educação tão religiosa e respeitos
tão profundos à dignidade! Pensava-o eu assim; dava-me eu então os epítetos
usurpados à honra!... Eu que me enfatuara perante o mundo de acorrentar à
minha vaidade a mulher formosa, em cuja fronte a moral escrevera um
estigma, que eu cobria de brilhantes e flores, pensando que a sociedade havia
de respeitá-la assim, e humilhar-se diante da minha afrontadora opulência! Eu,
ver-me esmagado, ousar pedir contas a Deus da iniquidade do seu arbítrio, e
renegá-lo como ente inútil ao remédio da minha desgraça!...
»Mal me entreluziu a manhã, fiz aparelhar os cavalos e voltei para Lisboa sem
propósito feito. Durante a caminhada, o meu velho Tranqueira, enquanto as
carruagens se desfadigavam, acercou-se de mim com os olhos envidrados de
lágrimas e disse a medo: "Meu amo, vamos embora de Lisboa; vamos para a
nossa terra, que Deus e a Virgem Maria dará remédio." Não respondi; mas
pensei. A quietação da minha aldeia convidava-me; porém, entrando em
espírito no interior da minha casa de Ruivães, ouvia com pavor o som dos
meus passos naquelas salas desertas; faltava-me minha mãe ali; o anjo
consolador fugira antes do meu resgate. Acudia-me à lembrança a minha triste
Mafalda, a irmã terna, a meiguice da virgem compadecida; porém, o meu
coração, a porejar o esqualor da sua hedionda chaga, rejeitava os bálsamos de
um afeto purificador.
»O tumulto das grandes cidades, com o seu engodo atraente da desordem da
vida, quadrava mais à alma sedenta de não sei que filtros de lágrimas e sangue.
Estava traçado o meu plano, quando cheguei a Lisboa. Qualquer resolução
sacode o mais paralisado espírito. Senti-me forte para entrar em minha casa.
Fui ao gabinete de Palmira e abri as suas gavetas despejadas de todas as coisas
de algum valor. A minha razão logrou um momento de lucidez: afigurou-seme rasteira
a índole de uma mulher que, em conflito de tamanha vergonha,
tivera ânimo para se andar por suas próprias mãos enfardando vestidos e
enfeites, no intento de vestir as galas sedutoras de amantes novos. Refugi
como envilecido dos aposentos de Palmira. Fui ao meu quarto. Fiz encaixotar
as minhas roupas. Guardei a correspondência de minha mãe e de Mafalda.
Queimei os restantes papéis, exceto as cartas de Teodora das Ursulinas.
Porquê? Nem eu sei. Queria aquelas memórias da criança que então morrera...
»Chamei os criados e despedi-os. Mandei fechar as portas ao meu Tranqueira
e, nesse mesmo dia, expedi ordens para a venda de carruagens, cavalos e
mobília. Alguns amigos conseguiram rastrear a minha residência obscura num
hotel inglês em Buenos Aires.
»Procuraram-me, e eu não os recebi. A minha vaidade envergonhava-se deles.
Nem a despedaçadora curiosidade de saber o destino de Palmira pôde vencer
o orgulho escarnecido.
»No fim de nove dias, recebi carta de Mafalda, respondendo à minha. Ei-la aqui:
Ambos te queremos do coração, Afonso. Meu pai não diz a teu respeito
palavra de censura: chama-te infeliz, e mais nada. Quando tua mãe dizia em
ânsias: «Perdi meu filho!», o meu bom pai juntava sempre: «Ele virá, minha
irmã, que a sua índole é boa.» Mostrei-lhe a tua carta, e vi-o chorar; pedi-lhe
que te escrevesse, e. ele disse-me: «Escreve-lhe tu, com a bênção de teu pai;
diz-lhe que o amas sempre: eu dou-lhe o amor da minha Mafalda, consinto
que ela o ame; é o mais que posso dar-lhe». Estas palavras escrevo-as por sua
ordem, e desconfio que são inúteis para a tua felicidade. Ainda assim, em
quereres a nossa amizade, primo Afonso, nos dás grande satisfação.
Vejo que vives muito amargurado, desde que morreu a nossa chorada mãe. Se
te mortifica o pesar de não ter vindo assistir-lhe à morte, tranquilize-te a
certeza de que ela te perdoou. Bem sabes que santinha e que mãe ela era. Eu
fui ler à beira da sua sepultura a tua carta. Li-a em voz alta, cortada de
gemidos. Depois orei muito, e levantei-me de ao pé dela tão desoprimida e
satisfeita que tomei por instinto do Céu a minha alegria. Pode ser que esta
carta vá encontrar-te no gozo do alívio que eu senti então.
Bom seria, meu primo, que tu mandasses pensar um pouco nos negócios de
tua casa. Meu pai faz o que pode, e dirige o teu procurador; mas receia de não
zelar os teus interesses como queria por falta de saúde e pela distância em que
vivemos de Ruivães.
Adeus, meu querido irmão. Trata em ser feliz e lembra-te com amizade da tua Mafalda.
»Respondi logo a esta carta, participando a minha prima que ia sair para Paris,
no propósito de assentar ali a minha residência. Expressões afetuosas
escassamente lhe disse as vulgares, as necessárias à formalidade de relações
entre primos que se estimam. E que eu via em mim o aviltado homem que
estava sendo, e de Mafalda mesmo tinha eu um certo pejo, vaidade ainda, a
vaidade do homem que se julga desapreciado aos olhos de uma mulher, que o
vê rejeitado de outra, embora vilíssima, embora repulsada da sociedade de
mulheres aptas para honestamente avaliarem o merecimento do homem
desprezado. Eu não queria nem podia, coberto de infâmia por Palmira, ir
acolher-me ao amor de Mafalda. E depois, e sobretudo, meu amigo, bem que
eu quisesse, não poderia amá-la então como a teria amado quinze dias antes,
insuspeitoso da lealdade de Palmira. Sabem os experimentados, poderás tu
sabê-lo, que é uma exceção de almas fúteis a passagem rápida de uma afeição
a outra quando nos pesa o opróbrio de uma perfídia. O coração está lanhado,
a fronte não ousa erguer-se para a mulher do amor de salvação, a dignidade
geme sob o peso de vilipêndio, que pensamos ler nos olhares afrontosos de
todo o mundo, olhares que por vezes exprimem compaixão. Mas o que é em
casos tais a piedade, senão injúria?!
»Escrevi ao meu procurador ordenando-lhe a venda de todas as minhas
propriedades, salvando a casa e quinta de Ruivães. Na volta do correio,
avisou-me ele de que havia comprador pronto; e, poucos dias depois, recebi
ordens de pagamento de trinta mil cruzados. Com estas ordens, vinha carta de
meu tio Fernão de Teive. Dizia assim:
Tua prima está enferma, por isso te não escreve; e eu, também adoentado e
tristonho, mal posso escrever-te. Recebemos a nova da tua mudança para
Paris. Vai com Deus, Afonso. Pode ser que a tua felicidade lá esteja. Folgo de
te ver ir desligado da personagem que, segundo me dizem, foi afinal o que era
rigoroso que fosse. Diante da mulher perdida todos os homens são iguais.
Quereres tu o privilégio que o marido não teve seria um absurdo do teu
orgulho. Teodora está em Braga promovendo o divórcio a fim de levantar-se
com o seu património. O Eleutério, por intervenção de um meu compadre,
quis que eu entrasse como ouvinte e conselheiro em suas coisas. Aceitei o
convite como quem tem pouco que fazer, e passa as suas horas na cama a
agasalhar a gota. Sou o depositário do borrador das cartas que ela te escrevia,
sedutoras em verdade, e dignas de irem à estampa. Onde foi esta mulher
aprender tanta palavra?! Estou em dizer que anda aqui muito amor de
dicionário; e os sucessos posteriores levam-me à crer que era ainda pior o
amor da criatura. Aqui estou eu a falar contigo à laia de rapaz! E o caso é que
a dor do calcanhar esquerdo espalhou.
O teu procurador avisa-me que vendeu as tuas quintas de Leirós e Gestal.
Para te não dizer coisas tristes, e evitar que torne a dor do calcanhar, ponho
aqui ponto. Mas sempre te direi, como irmão de tua mãe e teu amigo deveras,
que. exaurido o teu património, tens a minha casa. Se eu morrer e ainda bem!
antes desse dia (dia, talvez. inevitável!), deixarei dito a Mafalda que seja sempre
o que tua mãe e eu fomos para ti: o coração devotado sem condições. Adeus.
Quando tiveres vagar, escreve-me de Paris. Teu tio, F. de Teive.
»Alegrou-me a nova da ausência de Palmira de Lisboa. O dragão do ciúme
desencravou-me as garras do peito. Que estúpida alegria! A suspensão da
perfídia que importava ao desagravo do meu orgulho? Quão lastimáveis e
ridículos somos, se uma vez perdemos o norte da legitima, da decente
probidade! Nenhum liame de sã moral resiste a cancro do coração. Até o
regenerarmo-nos tem para nós um certo ar de baixeza de ânimo, cena de
comédia que faz rir o mundo.
»E eu, ansioso de um mundo novo, fui para França. Que pensas tu que eu ia
procurar em França?»
— O método mais fácil de gastar os trinta mil cruzados respondi eu.
— Não me lembravam os trinta mil cruzados; ia procurar uma mulher; ia
procurar o amor de salvação.
— E encontraste-o em França?
— Encontrei.
— Vejamos.