Capítulo II

Sinceramente, não sei corrigir-me do vício das divagações. Há quem defenda e
demonstre que o romance filosófico deve ser assim alinhavado a exemplo de
Balzac, Sainte-Beuve, Stael, etc. Na Alemanha então dizem-me que as novelas
são tratados de metafísica. Se as minhas derramadas e extraviadas divagações
fossem ao menos metafísica! Ser eu, sem dar tino de mim, um escritor subtil,
impercetível, impertinente, medonho e, acima de tudo, sério! Escritor sério!
Quando se agarra a fama pelas orelhas, e a gente a obriga a dar pregão da
nossa seriedade de escritor, a glória vai procurar os nossos livros sérios às
estantes dos livreiros, e lá se fica a conversar delicias com as brochuras
imóveis, enquanto a traça não dá neles e nela.
O universo, e a humanidade principalmente, ganha muito com os romances
sérios: excetuam-se da humanidade os editores. Um meu amigo publicou seis
volumes de novelas de costumes morais a ponto de toda a gente dizer que não
havia tais costumes em Portugal. Recebeu muito abraço de umas pessoas que
tinham ouvido contar que o meu amigo aconselhava aos filhos a obediência
aos pais, aos próximos o mútuo amor e à humanidade o temor de Deus. As
seis novelas eram glosas aos dez mandamentos. Esperava-se a regeneração das
velhas virtudes portuguesas, logo que o espírito público se balsamificasse da
unção dos seis livros. Volvidos porém uns dois anos, as estatísticas iam
delatando em aumento a criminalidade pública. Espanto no meu amigo autor
e desanimação melancólica nos editores! Não obstante, a gente grave
continuava a dizer que o meu amigo, continuando a escrever por aquele teor e
jeito, endireitaria o mundo. Os editores, porém, observando que o mundo se
entortava cada vez mais para eles, recomendaram ao escritor moralista que
vendesse a eles romances e a quem quisesse os sermões. Ora, deu-se o caso de
que este meu amigo era eu em pessoa.
Apesar dos baixios em que foram a pique os meus livros sérios, teimo em ir
neste rumo, discorrendo oportunamente acerca das grandes coisas e dos
grandes factos, como se via do anterior capítulo.
Volvendo a concluir as reminiscências que tenho do antigo Afonso de Teive,
resta-me juntar que o deixei em Lisboa no ano de 1851, e vim para o Minho,
onde me disseram quem era Palmira, falando eu em Afonso de Teive a um
cavalheiro de Braga.
Em primeiro lugar, Palmira tinha outro nome na sua terra. Fora educada num
convento; saíra do convento para casar com o filho do seu tutor, rapaz idiota
e abominável; e saíra de sua casa para a de Afonso de Teive, o qual por um
acaso a vira nos arvoredos do Senhor do Monte, e de se verem à mesma hora
em que ambos, embelezados no rumorejar de árvores e fontes, pediam ao
Céu, ela o homem e ele a mulher do seu destino, resultou amarem-se tanto
loto ali protestaram tacitamente imolar aos deuses infernais o marido idiota-
destino misérrimo que não discrimina entre idiotas e atilados. Estas
informações saíram-me com o tempo inexatas em muitos acidentes.
Não adiantou mais nada o cavalheiro bracarense; e isto já não era pouco para
o meu espanto.
Nessa mesma época ocasionou-se-me conhecer o marido de Teodora,
melhorada em Palmira. Andava ele na feira de S. Brás, em Landim, a tantos de
Fevereiro, comprando bois e vendendo cevados. Não lhe vi no semblante leve
sombra de dissabor, nem osso descarnado. Vi que ele comia à tripa forra um
chorumento jantar de carnes frias, em que predominavam as galináceas. A sua
direita estava uma mocetona espadaúda, escarlate, alta de peitos e refratária a
toda a ideia de amor fino.
Disseram-me que esta rapariga apreciara devidamente o coração rejeitado por
Teodora e assava com perfeição as louras galinhas de que o marido
abandonado hauria vigor com que resistia briosamente à sua desgraça. Vi tudo
isto, e fiquei satisfeito. A gente folga de ver assim remediadas as enfermidades
da natureza. Quando em casos análogos não há vitima nem algoz e as
personagens se acomodam na livre prática da liberdade dos cultos, bem que o
vício não deixa de ser vício, é contudo consolador observarmos que uma certa
filosofia é a melhor ortopedia para os aleijões de nascença de que a tona
humanidade coxeia à dezanove séculos.
É o que eu sabia e mais nada.
Como Afonso caiu em esquecimento, nunca me deu para perguntar que era
feito dele. As minhas desventuras não me davam férias para farejar as alheias.
Se alguma vez me passou pela ideia a esposa infiel do feirante de bois e
cevados, imaginei-a reconciliada com o marido, e assim duramente castigada
pela Providência. Enquanto ao sedutor, apostaria que ele, depois de ter
desbaratado a casa, andava por Lisboa obscuramente solicitando um lugar de
amanuense de secretaria ou aspirante de alfândega, se é que não tinha ido para
o Brasil, com o seu diploma de bacharel em Filosofia, colecionar conchas por
conta de algum museu de história natural.
Agora vê o leitor o meu assombro justificado! É inquestionavelmente este
homem gordo de barbas intonsas, óculos e tamancos, o Afonso de Teive da
Palmira de Lisboa.
Ele aqui vai subindo as escadas que nos levam à primeira sala. Cá estão em
redor dele e de mim os oito filhos, que fazem bulha como trinta e dois. Creio
que estou no pátio de um mestre-escola à salda da aula. Dois destes ferozes
meninos tiram-me da mão o guarda-sol, abrem-no e fecham-no repetidas
vezes, arremetendo contra os irmãos, que se defendem espancando a murros
as varas da umbela, que gemem e entortam. Afonso gosta dever aquilo, e eu
finjo também que não desgosto, nem que receio de ser esfarrapado por
aqueles inocentes.
Passamos ao seguinte repartimento da casa: era a sala de visitas, mobilada de
alfaias antigas, cadeiras encouradas com chapas reluzentes, grandes bancas de
pau-santo, com gavetas atauxiadas de frisos metálicos e de marfim.
— A decoração diz com as minhas barbas! refletiu o risonho Afonso. —
Aqui é tudo português — acrescentou, mandando inutilmente calar a gritaria
dos meninos, que, a meu ver, legitimavam a raiva infanticida de Herodes. Até
a linguagem é portuguesa de lei: olha que estou falando vernaculamente, meu
amigo. Há catorze anos que tu me convidavas urbanamente a não insultar os
Lucenas e os Sonsas com as minhas francesias. Vem ver a minha livraria; se
não queres primeiramente ver minha mulher...
— Tenho muita honra e satisfação em ser apresentado a tua senhoraatalhei eu.
— Joaquim!-disse Afonso ao filho mais velho-, vai ver onde está tua mãe;
se estiver na cozinha, diz-lhe que temos cá um hóspede, que não exige vestido
de seda. Que apareça como estiver.
O menino saiu aos saltos de cegonha e Afonso juntou:
— Minha mulher é um anjo, cujas asas brancas se não mancham na
felugem da cozinha. Eu gosto que ela por lá se entretenha, senão bate-me
nestes brejeiros, que, como vês, são digníssimos de grossa pancadaria; mas eu
amo estes diabinhos, que zombam de mim, e aturo-os, porque a dizer-te a
verdade já me dói a cabeça quando não ouço esta algazarra. E tu, gostas de rapazes?
— Gosto muito, acho multo galantes os teus meninos; mas, se me dás
licença, dir-te-ei que, em doenças de enxaqueca, o teu remédio não seria tão
eficaz nas minhas como nas tuas.
— Bem sei atalhou Afonso. Falta-te cabeça de progenitor, falta-te ouvido
de pai que converte em música no coração esses berreiros, que nem no
Inferno se poderiam receber como orquestra.
Não se fez esperar a esposa de Afonso.
Era uma senhora para não se descrever em romances e para admirar-se entre seus filhos.
É muito difícil e requer engenho grande tirar as semelhanças de uma mulher
que se apresenta simples, modesta e, logo à primeira vista, imprópria de novela.
— Aqui está, e te apresento minha mulher-disse Afonso; e tomou-lhe dos
braços a criança mais nova, que lhe saltara ao pescoço apenas a vira entrar na sala.
A esposa de Afonso de Teive respondeu acanhadamente ao meu palavroso
cumprimento e tomou nos braços outro filho, que marinhava pelas costas da
cadeira e mostrava a cabeça sobre o alto espaldar de couro.
Como se não ajeitava outra espécie de conversação, falei nos meninos,
gabando-lhes a formosura e a esperteza. Afonso, que parecia não querer outra
coisa, começou a contar-me anedotas das suas crianças entusiasticamente,
algumas medianamente engraçadas e outras que eu não pude ouvir, à conta da
bulha que os pequenos faziam em volta da mãe. No entanto, fiz reparo nela.
A senhora teria trinta e oito anos e formosura, por força natural, já decadente.
Trajava roupas largas, talhadas sem esmero, de droga ordinária; a beleza das
formas corporais denunciava-se, apesar do trajo descuidado. Semblante
assinalado de tanta doçura e bondade não sei que o haja. Poderia chamar-se
tristeza de santa àquele mavioso rosto pálido, quebrantado, e não sei quê de
sonhador; a expressão, porém, dos olhos brandos, do sorriso quase
impercetível, do colo um pouco inclinado em postura humilde, era nela a
alegria exuberante de santa, sim, mas santa como esposa, santa como mãe,
santidade de coração e alma repartidos entre Deus, esposo e filhos.
Pouquíssimas palavras lhe ouvi na meia hora que se deteve connosco.
Conheci-lhe a inquietação cuidadosa no relancear de olhos ao marido.
— Bem sei disse ele. Vai, vai, que estás a pensar nas rabanadas e nos mexidos.
E ela, sorrindo, disse:
— Ainda me não apresentaste ao teu amigo como uma sofrível intérprete
da arte de cozinha.
— Intérprete! exclamou ele. Tu és mais! Tu inventaste a ciência da
cozinha, que ê muito mais sublime que arte. A tua modéstia é que te não deixa
vir à luz do mundo, deste mundo cujas aspirações confinem todas para a
gastronomia, com um tratado que, ao mesmo tempo, me desse orgulho de ser
teu marido, a quem tu deves esta vida retirada, sem a qual te faltaria espaço e
remanso para as tuas especulações, em resultado do que vamos hoje cear as
mais ambrosíacas rabanadas que ainda os deuses coaram em suas celestiais
gargantas. A aldeia, meu bom amigo continuou Afonso voltando-se para mim
com solene e galhofeira seriedade-, a aldeia dispensa ao espírito investigador
um curso completo de ciências. A poesia do estômago, esta mais que todas
poesia humanitária, não se dá nas cidades; lá come-se materialmente,
aqui dáse ao espírito a presidência em todas as matérias assimiláveis. Estou com o
nosso admirável Castilho nestas memorandas palavras: «Longe de mim negar
puerilmente às cidades suas vantagens sociais; digo só que para a poesia se não
fizeram elas; e que, se nessa frágua algum engenho poético resiste, se aí canta,
nunca há de ser tanto, nem tão bom, nem tão inocente, nem tão perfumado,
como seria sem dúvida nos campos.» E a poesia que é? — acudiu Afonso
cortando-me o riso com que eu celebrava o desconchavo da citação-, o que é
a poesia senão aquele estado diáfano e sublimado da alma, que se está
engolfando e gozando num invólucro sadio, depurado de ruins vapores, e
puro de toda a exalação crassa de um estômago derrancado, azedo e
saber; e que a ciência construtora dos seletos alimentos do sangue é a que
mais de perto se relaciona e ata com a arte de exprimir cadentemente os afetos
da alma. Logo...
A esposa tinha saído quando esta abstrusa parlenda ia em meio, com ameaças
de longo fôlego.
Eu estava ouvindo, como quem sonha, Afonso de Teive. Andavam já a
formigar-me suspeitas de que o homem estava o seu tanto ou quanto
embrutecido na aldeia; e posto que a defesa do paradoxal consórcio entre
estômago e poesia viesse absolvida por um sorriso faceto, nem assim me
descapacitei de que o espírito de Afonso havia sofrido profundas comoções
que de todo em todo o transfiguraram, ou lhe transfiguraram os objetos do
mundo exterior. Eu não podia convencer-me de que a felicidade alterasse
daquele modo o génio e maneiras de um homem, que eu jamais ouvira
preconizar as regalias do estômago. Crer que o bem-estar da alma procedia de
uma brutificação dela mesma e que o encontrar esse bem obrigava a desatar-se
a gente da convivência de sujeitos policiados, de mulheres inspiradoras e das
magnificências da arte, enfim, de tudo que todos buscam sofregamente,
parecia-me absurdeza e falsificação no carácter de Afonso de Teive.
Preparei-me, pois, para devassar o secreto reviramento que transformou em
poucos anos o espírito menos propenso que eu vira à paz dos campos e ao
absoluto apartamento da sociedade.
Estava a ceia na mesa. Que enorme ceia comemos e que estrondoso ruído
fizeram os meninos!