Capítulo XVI

Volvido um mês sobre os sucessos descritos, Afonso de Teive e Palmira que
nunca mais se chamou Teodora viviam num palacete ao Campo Grande, por
ser entrada a sazão estiva.
O interior esplêndido da casa sobreexcedia o exterior majestoso. Nas
cavalariças escarvavam, arrifavam e relinchavam os cavalos de trem e de
passeio. No pátio, os lacaios limpavam e bruniam os arreios e as equipagens.
Sentia-se o respirar da felicidade, como escondida das invejas do mundo,
naquele magnífico aposento. O dono dela gozava-se da fama de opulento
fidalgo do Minho; porém, o tesouro que a pública admiração mais lhe
encarecia era Palmira.
Frequentavam a casa de Afonso de Teive alguns dos amigos que D. José de
Noronha lhe dera, jovens da primeira fidalguia. Ao verem a mulher por quem
Afonso desprezava todas, acharam e disseram, sem lisonja, que ele tinha
sofrido e amado pouco. A expectativa de D. José fora surpreendida pelo
excedente de uma formosura, graças a talento não imaginados. Estes gabos,
porém, proferidos a medo na presença dela, eram tão respeitosos e aferidos
no padrão do melindre palaciano que Afonso de Teive nem por sonhos
aventou a possibilidade de uma intenção desleal do amigo. Palmira, por sua
parte, quando os seus hóspedes e convivas, no mais aceso dos brindes em
lautos banquetes, lhe balanceavam o incensório dos louvores, baixava os
olhos, inclinava a cabeça e mostrava aceitar resignada o incenso, em obséquio
aos turibulários.
Era aquela a atmosfera inebriante dos anelos da morgada da Fervença.
Lembranças de sua vida conjugal em Tibães afastava-as com repulsão.
A imagem de Eleutério fazia-lhe vergonha de si mesma. Tornou-se
desnecessária a leitura ao recreio das suas noites. Preferia, à falta de teatros,
passear a cavalo ao clarão da Lua, ladeada de Afonso e de D. José de
Noronha, a mais intima e feliz testemunha dos prazeres de Afonso. Tinham
noitadas de estenderem a Sintra os seus passeios, ora serenos e
contemplativos, ora em correria vertiginosa, à vontade e capricho de Palmira,
cujo cavalo negro ela denominara...
— Eleutério?! perguntei eu, pensando que adivinhara, quando o meu
amigo chegou a esta altura da história.
— Não, nem tanto... — respondeu Afonso. Chamava-lhe Lúcifer.
— Que desprezo do monarca do Inferno! Parece-me que Palmira não
tinha virtudes para zombar assim da personagem que provavelmente lhe há de
pedir eternas contas da nomenclatura do quadrúpede!
Vamos rio prosseguimento desta celestial felicidade, em que o Inferno apenas
lembrava em virtude do nome do cavalo.
No termo de um ano, Afonso de Teive tinha escrito, a largos prazos,
pouquíssimas canas a sua mãe. Noutro relanço viria mais bem cabido o falarse
da virtuosa senhora e da angelical Mafalda; A promiscuidade faz-me susto
de vituperá-las. Mas é preciso dizer que D. Eulália, em cumprimento da sua
promessa, remetia ao filho as quantias avultosas que ele exigia, e o produto de
uma quinta de sua legítima paterna, logo que Afonso lho determinou. Fernão
de Teive comprara a quinta clandestinamente por intervenção do seu
mordomo. O ouro entrava em torrentes naquela voragem, de onde retornava
em carruagens, em baixelas, em festins, em sedas e brilhantes, em apostas
soberbas no jogo, em extravagâncias de soada fama, em empréstimos aos
comensais. No decurso dos doze meses, apenas Fernão de Teive mandou um
triste memento homo ao reboliço daqueles júbilos. Eram estas palavras unicamente:
Lembra-te, Afonso, de teu tio-avó Cristóvão de Teive.
Afonso sorriu e perguntou a Palmira se lhe via sinais de lepra. A jovial
criatura, informada da intencional alusão, cascalhou umas risadas de que
muito se compraziam os ouvidos do amante, as quais, no dizer de D. José de
Noronha, tinham uma alegria contagiosa, que faziam bem aos infelizes.
Afonso não respondeu ao velho de Fonte Boa; mas, numa hora de solidão em
seu particular gabinete, somou as parcelas hauridas de sua casa, e espantou-se;
calculou a quantia necessária para vinte anos de vida, e descobriu que no fim
de dez anos devia estar morto, para não pedir esmola aos parentes. Levantou-
se pensativo desta operação aritmética; saiu do gabinete; e encontrou Palmira
a lembrar-lhe a conveniência de arrematar um camarote de S. Carlos, que
estava a lanços. Afonso respondeu tristemente: «Pois sim.» Palmira não viu
linha alguma extraordinária no rosto do amante, beijou-lhe os olhos e disse:
«És um anjo!»
Desde aquele fatal dia dos cálculos sobre as despesas de vinte anos, Afonso
pensava a miúdo nos dez que restritamente lhe ofereciam os seus presuntivos
cabedais, contando já com o falecimento da mãe. «Infame cláusula dos meus
cálculos!», dizia ele com os olhos a reverem lágrimas de remordente remorso,
treze anos depois.
Palmira, afinal, deu tento da melancolia de Afonso; e antes de consultar-lhe a
causa, perguntou se a não amava já. O interrogatório afligiu o rapaz.
Reconheceu que faltavam naquela mulher as sérias qualidades de espírito para
lhe escutar o motivo de suas abstrações, em meio dos favores da fortuna.
Manifestou Palmira o seu insofrido orgulho. Simulou um recolhimento de
amargura cavilosa. Pranteou-se, perguntando ao Céu, em atitude trágica, se a
expiação começava tão cedo. Afonso acariciou-a, já condoído dela, e revelou,
com desdém de seus próprios temores, a causa mesquinha deles. Palmira
observou-me que a fortuna dela, à sua parte, excedia o valor de vinte e cinco
contos, e propôs-lhe requerer-se divórcio desde logo. O bizarro rapaz recusou
a proposta, ajoelhando em espírito à generosa oferta de Palmira.
Passou a nuvem. Requintaram os gozos e as despesas. Projetaram-se passeios
ao estrangeiro. D. José de Noronha era grande parte e conselheiro nestes
prospetos de recrescente felicidade. Lembrou Palmira a Semana Santa em
Sevilha. Foram a Sevilha, detiveram-se por Espanha dois meses até
pressentirem uns longes de fastio. Voltaram a Lisboa no antegosto de
planeadas excursões à Itália. Afonso de Teive entrou no seu escritório, em
busca de cartas, e abriu primeiro uma das duas de Mafalda, antes que Palmira
o surpreendesse a lê-las. Rezava assim a primeira:
Meu primo. A nossa mãezinha está muito adoentada e causa receios ao
médico de Braga, que vem aqui todos os dias. Não me autorizou a chamar-te;
mas eu, depois de consultar meu pai, resolvi participar-te isto e pedir-te que
venhas ver esta santa. Ela não cessa de chorar e rogar a Deus por nós. Vem
pedir-lhe que, ao sair deste desterro, continue a pedir no Céu por ti, por mim,
e por todos os infelizes. Tua prima, Mafalda.
Era datada esta carta em 6 de Abril de 1852.
A outra, datada em 18 do mesmo mês, continha o seguinte:
Meu primo. Acaba de expirar tua mãe. São cinco horas da manhã. Morreu-me
nos braços. Dava três horas o relógio quando ela disse que havia de expirar
quando raiasse o dia. Assim foi. Falou de ti até à última e ordenou-me que te
mandasse uma carta, que ela escreveu no segundo dia de sua enfermidade.
Admirei que me não respondesses ao menos à que eu te escrevi então. Deus
sabe o que vai na tua vida. A santa lá está no Céu: ela conseguirá o que for
melhor para ti, em conformidade com os decretos do Altíssimo. Aqui está
meu pai a pensar nestes tristes preparativos para o enterro. Já dobram os
sinos. Não me deixam escrever as lágrimas. Adeus. Afonso. Tua prima, Mafalda.
Afonso, concluída a leitura desta segunda carta, bradou: «Meu Deus, meu
Deus!», e caiu de joelhos, escondendo a face nos estofos de uma otomana.
Acudiu Palmira aos gritos. Afonso ergueu-se, com as mãos no rosto e,
abafando os soluços, pôde dizer: «Morreu minha mãe!»
— Chora no meu seio disse ela comovida — , chora meu querido filho!
Tens ainda este grande coração que te abriga na tua angústia.
Estas palavras alancearam mais a alma do meu amigo. Pareceram-lhe um
sacrilégio, uma injúria à memória da mulher cuja vida fora uma enchente de
virtudes. «O coração da adúltera a dar abrigo à dor de um filho!» Era a
consciência que assim lhe gritava, não era ainda o tédio. Era, talvez, a
repugnância de se encostar ao seio da mulher por amar de quem deixara
morrer sua mãe, esquecida, desprezada mesmo, lembrada algumas vezes como
senhora medra da casa, cujo herdeiro ele era.
Afonso pediu a Palmira que o deixasse sozinho. Ferida em sua vaidade,
considerando-se inútil em consolar o homem fraco, o homem debulhado em
lágrimas, Palmira cruzou os braços e abanou a cabeça.
O atribulado rapaz não vira aquele gesto; mas ouvira as palavras que o denunciavam:
— Não basta o amor da mulher amante para consolar as saudades de uma
mãe. Eu também a tinha quando te amava, e abriguei-me no teu coração. Que diferença...
Afonso irou-se; mas abafou a cólera num gesto de impaciência. Palmira
compreendeu-o, retirou-se lançando os olhos às duas cartas, que estavam
abertas. Encostou-se à mesa e leu-as sem lhes pôr mão. Lidas, sorriu-se,
remexeu ainda na língua uma ironia infame, não ousou proferi-la, e saiu. E
que a mulher impura muitas vezes espumara o pus do cancro do orgulho, que
doía, na face imaculada de Mafalda, que o rapaz indiscreto algumas vezes, com
fatuidade, relembrava como desgraçada na sua amorável dedicação.
Assim que Palmira saiu, Afonso, a tremer calafrios, deslacrou a carta de sua
mãe. Dizia assim:
Meu filho. Muito há que eu peço a Deus que me despene. Já me cansava a
vida com tão aturado padecer e nenhuma esperança de remédio.
Agora espero que a misericórdia do Senhor me atenda; e, se me diz verdade o
coração, é chegada a hora de eu escrever umas linhas, que te serão mandadas
quando eu tiver passado.
Bem sabes tu, meu filho, que eu. cheia de terror do teu pecado, voltei para
Deus a minha aflição, e nenhuma palavra de censura te escrevi, O que eu
podia fazer para livrar-te estava inutilmente feito. Era tardio tudo que fizesse
depois. A infeliz criatura estava já contigo. Ninguém sem ordem do Céu
poderia remi-la da sua perdição. A minha presença veio o desgraçado marido
de Teodora pedir-me que te movesse a influir no ânimo de sua mulher o
recolher-se num mosteiro. Consultei primeiro a vontade divina e depois a
razão humana. As minhas orações, se pudessem com Deus alguma coisa, lá
iriam à tua alma em abalo de consciência. O Senhor não quis. As pessoas a
quem pedi voto sobre escrever-te, segundo o pedido do homem de Teodora,
todas me disseram que eu ia abaixar a minha dignidade num requerimento vão
e desconforme à natureza da tua desgraça. Abaixar a minha dignidade não me
custava nem humilhava; mas, sem esperança de te mover com as minhas
pobres razões, antes quis orar, e orar sempre a quem tudo podia.
Bem sabes, meu filho, que eu, nem mesmo ao remeter-te num ano o
rendimento de quatro, afora o produto da quinta vendida. nada te disse
respeito à causa dos teus desperdícios, prometedora de tua inevitável pobreza.
Conheci que eu, em tua vida, já nem sequer valia para amiga. muito menos
devia esperar respeito e amor à minha autoridade de mãe. Disse comigo que
era irremediável a tua desgraça, e esmoreci de todo em todo.
Mandou o Senhor para o meu lado tua virtuosa prima. Chorámos ambas; mas
o anjinho, mesmo em lágrimas, consolava a pobre que lhe via a alma em
grandíssimas mortificações.
Agora, meu filho sempre querido, é tempo de te abençoar, de te perdoar as
dores que me deste, e rogar-te que me vejas aos pés do Altíssimo, se a Sua
misericórdia me descontar as agonias nas muitas culpas de minha vida. Não te
mortifique o pesar de me haver deixado morrer sem que a tua vida se lavasse,
pelo arrependimento, do desonroso crime que a disforma. A todo o tempo, se
sentires o voluntário brado da consciência, escuta-o, remedeia-te e foge de ti
mesmo para te encontrares na justiça benigna de perdoador de crimes iguais.
Eu serei então em espírito contigo para te ajudar a reformar o teu ânimo e
alentar em teus desfalecimentos.
Dos desbarates e perdimento dos teus haveres, faz muito por salvar ao menos
esta casa onde nasceste e a quinta que te dará abundante pão na velhice, se
Deusta der, como tempo de merecer o Céu. Aqui nasceu teu pai, e muitas
gerações de santas e honradas pessoas. Salva esta casa, que tens nela a
sepultura de teus pais e avós.
Se alguma vez voltares aqui, e tua prima for viva, estima-a, em paga dos
carinhos que lhe fico devendo, e do beijo de filha que ela me há de dar
quando eu expirar em seu seio. Aqui te lança sua derradeira bênção a tua boa
mãe, Eulália.