Capítulo XIII

Foi Afonso de Teive para Lisboa. Como ia desgostoso e intratável, rejeitou a
aposentadoria em casa do tio desembargador. Mobilou casa no bairro de
Buenos Aires, na menos frequentada das ruas. Desligou-se do trato das
relações adquiridas em casa do magistrado e evitou novos conhecimentos.
Vestiu de livros as paredes do seu gabinete, propondo-se o recreio do estudo
e o trabalho mesmo de composição, sem o intento de fazer-se conhecido no
mundo literário. Enquanto o espírito se lhe entreteve nos apetrechos de casa e
aconchegos de quem tencionava viver nela os dias e as noites, curtos
intervalos de mágoa o assoberbaram; assim, porém, que o bulício cessou e os
tapetes das elegantes salas não davam rumor de um passo, e Afonso, sentado
à sua banca de estudo, ouvia apenas as cadências do pêndulo do relógio,
condensaram-se-lhe em volta do espírito as nuvens torvas, que se haviam
rarefeito, bafejadas pela aragem da esperança, e nunca tão compressora o
sopesou a mão da tristeza. Os livros atediavam-no; o escrever acendia-lhe o
espírito a um grau penoso de excitação. Todos os seus manuscritos
fragmentários ou desatados, que eu vi treze anos passados, acusavam uma
obstinada paixão, da qual o poeta hauria argumentos contra a Providência que
o desamparara, na batalha consigo mesmo.
Aos vinte e dois anos, aceitar longo tempo e voluntariamente um jugo de vida
assim é virtude imaginária. Para outras civilizações, lá estava o deserto do
anacoreta e a Palestina do cruzado: um e outro se deixavam devorar das
angústias do ermo, ou cortar do ferro islamita; e lá iam encontrar-se no Céu, a
cobrarem o seu património de alegrias infindas, ganho a troco de uma hora de
orgulho satisfeito que mais não é o contentamento desta breve fugida do
ventre à sepultura. Nestes tempos, porém, a tanta luz, a tanto estrondo, em
tamanho desentranhar-se a terra em novos enfeites de si própria, agora, que o
céu se deixa contemplar, já não como paragem de futuras vidas, senão como
estrelado envoltório deste globo cujas delicias nos foram dadas em desconto
do breve tempo que as saboreamos; agora, em suma, que o viver sem gozar é
um triste, se não estúpido, prelúdio da morte, em redor da sepultura, que
loucura é esta de Afonso de Teive que não rompe mundo dentro, com seis
mil cruzados de renda, vinte e dois anos, bizarria de fidalgo e fisionomia
dotada de graças atrativas de todos os olhos?
Era necessário que a sociedade culta delegasse um dos seus ornamentos a
intimar Afonso de Teive para comparecer, réu de lesa-ilustração, à barra do
século XIX. O enviado, escolhido a ponto, foi, como por acaso, encontrar
Afonso na mata da Penha Verde, em Sintra, onde o tinham chamado saudades
das suas árvores de Ruivães.
D. José de Noronha, sujeito de trinta anos, filho segundo de uma casa titular
de Lisboa, cursara alguns estudos da Universidade, contemporâneo de Afonso.
Pertencia à tribo dos trocistas e gozava as honras de caudilho nos distúrbios,
maiores honras ainda de primeiro estômago em digestão de vinho. Contava-se
que D. José de Noronha bebia por um pipo de almude, quando não tinha à
mão o alguidar, taça ordinária das suas libações. Este facto, presenciado com
assombro e inveja, avantajou-o em consideração aos sécios da taberna e
conferiu-lhe voto deliberativo em todas as bargantarias noturnas. Afonso de
Teive, algum tempo associado aos tunantes, declinou de sua estima o ilustre
companheiro, indistinto dos outros, em sua opinião. Separados pela mudança
de costumes, raras vezes se viam, e mais raras vezes se tratavam. D. José
cognominava de renegado o fugitivo sócio e divulgava que o miserável nunca
bebera uma garrafa de genebra sem se embriagar. Equivalia esta denúncia a
uma grave desonra.
Abandonada a carreira dos estudos, por força de sucessivas reprovações, D.
José foi para a família, que o recebeu sem espanto do mau êxito, nem mesmo
pesar. O fidalgo libertino tinha bom património materno e um pai cujo
desregramento de vida absolvia os desatinos do filho.
A sociedade recebeu-o prazenteiramente, deu-lhe a primeira linha na coorte
dos elegantes e vitoriou-o com alguns troféus de conquistas, cominadas no
Código Penal e gloriosas nos salões. D. José absteve-se da ebriedade em
público; é isso verdade; mas indemnizou-se em vícios, que seriam muito mais
nocivos à humanidade se as maiorias compartissem dos ultrajes aflitivos que
vão na intimidade obscura e mesmo na pública exposição das famílias. Não
vem isto para dizer que todas as famílias ultrajadas se aflijam. Em Lisboa,
principalmente, as exceções são tantas que suaria o topete quem quisesse
achar a regra. Lá, haveis de encontrar muito de uma coisa chamada «filosofia»,
ciência que foi necessário inventar-se à medida que umas certas virtudes de
portas adentro deram em saltar pelas janelas e voar por aí fora, não sei para
onde, naturalmente para a Índia, onde as viúvas se queimam em
demonstração de fidelidade aos maridos defuntos. Há de ser isso.
Afonso de Teive reconheceu D. José, que saiu de um rancho de senhoras a
cumprimentá-lo. Eram coisas diversíssimas vê-lo em Coimbra, ou ali em
Sintra ao lado das senhoras da primeira distinção, como lá se diz, e quase
sempre em rigorosa verdade, omitindo-se a qualidade distintiva.
O menosprezo em que o fidalgo do Minho tivera o de Lisboa desvaneceu-se
logo. A compostura, o trajo, a seriedade, os ademanes, aquilo tudo, digamo-lo
assim, aromatizado do palácio e corte, demudou a má opinião de Afonso em
estima atenciosa e quase amigável.
Em breves termos se disseram mutuamente as suas residências,
convencionando-se logo em se encontrarem e conviverem a miúdo.
D. José de Noronha, como da terra; foi o primeiro a visitar Afonso.
Frequentaram-se assiduamente e chegaram a termos de se hospedarem à vez,
e às temporadas de três dias, nas casas um do outro.
Claro é: Afonso contou suas penas, com sincera expansão, ao amigo. Era o
primeiro estranho a ouvir-lhas. Mostrou-lhe as cartas de Teodora,
encarecendo-lhe a beleza, superior mesmo ao génio revelado na escrita. Nada
menos que génio o meu pobre Afonso descobrira nas canas da esposa de
Eleutério Romão. D. José de Noronha, por sua parte, passava do espanto ao
assombro a cada período interrogativo da famosa missiva, que me fez rir e
chorar caso único na minha vida extraordinária.
— E tu pudeste, Afonso disse D. José — , pudeste resistir a esta
mulher?!... És aleijado, ou tens peito de rocha, ou cheiras a santo! Abre-me
bem os refolhos do teu espírito. Esclarece-me este fenómeno. É certo que
nunca respondeste a esta mulher, nem a procuraste?
— É certo respondeu Afonso, quase envergonhado da confissão.
— Ó pobre José! ó malograda Hiêmpsal! Conheces bem a Hiêmpsal... a
esposa do ministro de Faraó! Quantas capas tencionas assim deixar em lindas
mãos!... Ai de ti, Afonso de Teive, que, afinal, saíras do inundo sem capa e
coberto de lama!... Tu não sabes que estás em 1850 e que tens de alijar a carga
de dois séculos, se não quiseres ir a pique, varar no ridículo inexorável com os
homens da tua fortuna e da tua figura. Origeneses fictícios, que nem sequer
ressalvam com o estudo dos atributos divinos a sua ignorância dos atributos
humanos... Pobre Teodora... a formosa mulher, que se rojava a teus pés,
quando tu, por brio mesmo de tua vaidade ferida, devias ter ido beijar-lhe os
cabelos, e não arrancar-lhos. Pobre menina, casada com um homem chamado
Eleutério... que mais?
— Eleutério Romão dos Santos disse Afonso, sorrindo no tom imitante
do dizer galhofeiro do amigo.
Eleutério Romão!... Eu não sei prosseguiu D. José se amaria a esposa de um
homem chamado Eleutério!... Mas, nas condições de cara e estilo em que está
Teodora, amaria, quer-me parecer que amaria, Afonso, obrigando-a a
promover o crisma do cônjuge... Falemos sérios, sérios como rapazes, que
têm o estrito dever de não serem palermas, do contrário seremos vítimas de
todos os Eleutérios. É necessário que escrevas a essa mulher; isso não te priva
de escreveres a outras muitas, visto que estás aqui a ares e tens a balda de
escrever meditações... Que ratão és tu, Afonso! Eu, em Coimbra, achava-te
uma graça! Quando tu publicavas no Trovador umas lamúrias lamartinianas.
que davam ideia de seres um desgraçado, que vivias das brisas do claro
Mondego, e tu, meu patarata, enquanto fazias chorar as meninas com os
versos, emborcavas torrentes de conhaque por uma catadupa esponjosa que
muitas vezes receei que me apeasses do meu pedestal... Patusco!... Falemos
agora sério. Escreve à Teodora, se tens algum resto de pudor... Não me digas
que estás sofrendo por ela, que deixastes por ela tua mãe, que renunciaste ao
amor de um anjo, por causa dela... Não me digas tal, que eu nem posso
admirar-te a virtude nem a parvoíce. A virtude seria medir o espaço que
separa a tua alma do coração atraiçoado de Teodora e interpor nesse espaço
trinta mulheres, contanto que te não privasses da companhia de tua mãe, nem
lhe desses desgostos muito menores que este. Devias adorar tua prima porque
era um anjo e devias desejar a outra porque era um demónio. Que fizeste tu
quando ela casou? Choraste, e com tamanho agravo dos teus brios que
consentiste que o mundo te visse chorar, a ti, rapaz de vinte anos, gentil, rico!
Pondera bem nesta vilipendiosa calamidade, meu caro Afonso. Salta sobre dez
anos de tua existência para diante e diz-me que nojo te há de fazer este
Afonso, quando o Afonso de 1860 achar que tem o mesmo nome e quase a mesma figura!...
E continuou por largo espaço neste sentido.
Escutava o filho de Eulália o discurso de D. José, lardeado de facécias, e, por
vezes, atendível por umas razões que se lhe cravavam fundas no espírito. As
réplicas saíam-lhe frouxas e mesmo timoratas. Já ele se temia de responder
coisa de fazer rir o amigo. Violentava sua condição para igualar na licença da
ideia e, por vezes, no desbragado da frase. Sentia-se por dentro reabrir em
nova primavera de alegrias para muitos amores, que se haviam de destruir uns
aos outros, a bem do coração desprendido salutarmente de todos. A sua casa
de Buenos Aires aborreceu-a por afastada do mundo, boa tão-somente para
tolos infelizes que fiam do anjo da soledade o depenarem-se, chorando.
Mudou residência para o centro de Lisboa, entre os salões e os teatros, entre o
rebuliço dos botequins e concurso dos passeios. Entrou em tudo. As
primeiras impressões enjoaram-no; mas, à beira dele, estava D. José de
Noronha, rodeado dos próceres da bizarria, todos porfiados em tosquiarem
um dromedário provinciano que se escondera em Buenos Mies a delir em
lágrimas uma paixão calosa, trazida lá das serranias minhotas. Ora, Afonso de
Teive antes queria renegar da virtude, que já muito a medo lhe segredava os
seus antigos ditames, que expor-se à irrisão de pessoas daquele quilate. E
verdade que às vezes duas imagens lagrimosas se lhe antepunham: a mãe e
Mafalda. Afonso desconstrangia-se das visões importunas, e a si se acusava de
pueril visionário, não emancipado ainda das crendices do poeta inexperto da
prosa necessária à vida.
Escrever, porém, a Teodora, não vingaram as sugestões de D. José.
Porventura, outras mulheres superiormente belas, e agradecidas às suas
contemplações, o traziam preocupado e algum tanto esquecido da morgada da Fervença.
Mas, um dia, Afonso, numa roda de mancebos a quem dava de almoçar,
recebeu esta carta de Teodora:
Compadeceu-se o senhor. Passou o furacão. Tenho a cabeça fria da beira da
sepultura, de onde me ergui. Aqui estou em pé diante do mundo. Sinto o peso
do coração morto no seio; mas vivo eu, Afonso. Meus lábios já não
amaldiçoam, minhas mãos estão postas, meus olhos não choram. O meu
cadáver ergueu-se na imobilidade da estátua do sepulcro. Agora não me temas,
não me fujas. Pára aí onde estás, que as tuas alegrias devem ser muito falsas, se
a voz de uma pobre mulher pode perturbá-las. Olha... se eu hoje te visse, qual
foste, ao pé de mim, anjo da minha infância, abraçava-te. Se me dissesses que
a tua inocência se baqueara à voragem das paixões, repelia-te. Eu amo a
criança de há cinco anos e detesto o homem de hoje.
Serena-te, pois. Esta carta que mal pode fazer-te, Afonso? Não me respondas:
mas lê. A mulher perdida relanceou o Cristo um olhar de comiseração e
ouviu-a. E eu, se visse passar o Cristo, rodeado de infelizes, havia de ajoelhar e
dizer-lhe: «Senhor! Senhor" é uma desgraçada que vos ajoelha e não uma
perdida. Infâmias uma, só não tenho que a justiça da Terra me condene.
Estou acorrentada a um dever imoral, tenho querido espedaçá-lo, mas estou
pura. Dever imoral... porque não, Senhor! Vós vistes que eu era inocente;
minha mãe e meu pai estavam convosco.
Abafaram-me numa jaula; eu queria amar-vos fora dos violentos ferros,
deixei-me matar diante da vossa imagem por um sacerdote do vosso culto. O
vosso sacerdote, Senhor Deus da Justiça, praticou uma imoralidade,
levantando sobre as faculdades desta alma esmagada o patíbulo do meu
coração. Foi imoral o dever, que me legislaram em vosso nome, Senhor E eu,
sem vociferar contra o mundo, que me arroxeia a gonilha no pescoço, a vós
ajoelho, Deus dos réprobos das alegrias deste mundo, exorando-vos que me
deis um amigo. »
E o que eu diria ao Deus da adúltera e da Madalena, Afonso. E o Senhor
piedoso havia de ouvir-me, e de tua alma fulminada pela inspirativa
misericórdia do Justo dos justos sairia um gemido piedoso por a mulher
desamparada. SÊ MEU AMIGO!
Recusava-se Afonso a deixar ver a carta: era, porém, uma descortesia sonegála,
entre rapazes, que francamente haviam ali relatado, à competência, as
façanhas amorosas dos últimos quinze dias.
— Homem indigno da nossa estima! — exclamava D. José de Noronha.
— Grande cínico! podes tu negar aos teus amigos dois minutos do inocente
prazer de ouvirem o estilo de uma Sevigné provinciana, que, para ser mulher
da época, só lhe falta afeiçoar-se a um homem que lhe rasgue os horizontes de
um destino esplêndido!? Venha a cana!
— A carta! a carta! exclamaram todos, empunhando os copos.
— Um brinde à formosa das montanhas! bradou D. José.
— Depois de lida a epístola! — emendou um comensal.
— Antes e depois!-redargiu o proponente do brinde, e juntou: — Â saúde
de Teodora, bela e espirituosa, amada e amantíssima, pura quanto pode sê-lo a
mulher que nos braços de um marido reserva para o homem amado a
virgindade do coração!
— A saúde de Teodora! — conclamaram todos, excetuando Afonso, cujo
aspeto arguia tristeza.
Seguiu-se um brinde entusiástico ao ditoso Afonso, que sobrepunha a
formosa minhota a quantas lisboetas de tez e olhos árabes lhe tinham
oferecido a alma num sorriso.
Afonso agradeceu, com um gesto de mal dissimulado dissabor.
Reiteraram os convivas o pedido da carta. Afonso hesitava ainda. O mais
ébrio daquela mocidade patrícia, representante dos mais ilustres apelidos da
época heroica de Portugal, ousou tomar a carta de sobre a mesa e abri-la com
estrondosos aplausos dos outros. Afonso de Teive estendeu impetuosamente
o braço e tirou a carta da mão do hóspede.
— Isto é um insulto a todos! exclamou D. José de Noronha.
— Não é insulto replicou o de Ruivães — , é preito a todas as mulheres, e
com especialidade às desgraçadas.
Disse e incendiou o papel na chama do castiçal em que acendiam os charutos.
O tom amargo daquelas palavras comoveu os convivas, que, por bom acerto,
se encontraram todos de índole sentimental, quando as vaporações alcoólicas
lhes enublavam a porção intelectual, que era neles diminuta, como de direito
heráldico. D. José, compondo o rosto de uns vislumbres de retidão e bom
discurso, perorou acerca da probidade de Afonso e, em nome dos comuns
amigos, agradeceu a lição e levantou novo brinde ao hospedeiro novo que tão
digno era da estima dos homens como da confiança das mulheres.
Este capítulo não dispensa uma nota ilustrativa, respondendo
temporariamente à crítica ilustrada que me perguntar como pude eu pôr em
traslado uma carta queimada à luz do castiçal, minutos depois que Afonso a
lera. É porque o rascunho desta carta, escrita com entrelinhas, emendas e
borrões, escrita por Teodora, estava ainda em poder de Afonso de Teive em
Dezembro do ano próximo passado. Oportunamente se dirá como Afonso de
Teive se apossou do rascunho. Então a crítica verá que poucas coisas sucedem
na vida tão naturalmente.
Relevem-me essas demasias de escrúpulo: que eu dificilmente consentirei que
a má-fé me apanhe em flagrante inverosimilhança.
Assim é que eu quisera que se escrevesse a história pátria com este timbre e
rigor de verdade. Por míngua de desvelos análogos na averiguação dos factos
históricos é que nós ainda não sabemos bem quantos filhos bastardos fizeram
os nossos monarcas; falha que desluz algum tanto o panegírico das virtudes
dos reis portugueses. Aprendam os historiadores.