Capítulo XVII

Encerrou-se Afonso por espaço de oito dias, inconsolável aos afagos de
Palmira. Os amigos, seus sécios de vida viciosa e soberba de sua culpa, e
contubernais logrativos das suas dissipações, enfureciam-lhe o tormento do
remorso. Furtava-se à vista deles, fechando-se, quando vinham, com o
semblante composto de falso compadecimento, lembrar ao amigo, em luto de
oito dias, que um homem de razão clara tinha obrigação de ser superior a
sofrimentos-comuns e naturalíssimos, tais como a morte de uma mãe. Palmira
ia ao salão receber os pêsames e combinava-se com os cavalheiros admirados
da pusilanimidade de Afonso. «Eu sofro muito», dizia ela a D. José de
Noronha, alquebrando o rosto em desconfortada pena, «ao ver que a minha
solicitude consoladora nada pode com. Afonso. O coração da mulher que
renunciou à satisfação do dever e se imolou aos caprichos transitários de um
homem deve também renunciar ao poderio de desviar de uma sepultura os
olhos dele. Assim se é castigada, quando se é culpada como eu.» A tais razões
proferidas com os olhos no teto, respondia D. José de Noronha: «Eu hei de
acreditar que Afonso deixou de amar apaixonadamente V. Exa quando ele se
confessar um monstro e a honra for banida neste mundo. Eu só compreendo
o esquecimento da honra quando é preciso sacrificá-la a uma senhora como
V. Exa. Ainda bem que há uma só, para se não adjurarem os seus deveres
sociais.» Ora o estilo de Afonso digamo-lo de corrida era muito mais lhano e
correntio.
O filho de Eulália, passado o primeiro mês de luto, disse com suaves maneiras
a Palmira que o seu ânimo estava passando por estranho reviramento, no
tocante a prazeres falsos do mundo; que resolvia diminuir as suas relações e as
suas superfluidades; que tencionava ocupar algumas horas na leitura, em que
felizmente Palmira o acompanharia, revivendo a sua esquecida afeição aos
livros; que aceitava como inspiração de sua santa mãe o desapegar-se de
regalos vãos, deleites de mera vaidade, que perdem seu sabor ainda antes de se
acabarem; finalmente concluiu Afonso: «Vivamos como amantes que
dispensam serem admirados para serem venturosos.»
Palmira sorriu e disse:
— Bem sei... bem sei, Afonso.
— Que sabes tu? perguntou brandamente o rapaz. Diz o que sabes, minha
amiga.
— Compreendo a mola oculta do teu novo programa de vida... É o
cansaço. Já me chamas tua amiga. A mulher que ama, quando lhe dão tal
nome, sabe que é coisa de pouca monta para quem lho dá. Fala-me claro;
sentes o entojo de impressões novas? As cartas de tua prima é que levantaram
em teu espírito essas poeiras de tardia virtude? Nada de refolhos, Afonso. A
minha opinião é que nenhum de nós se constranja. As peias, impostas mesmo
pelo dever, são um infortúnio muito bem conhecido. Fazes-me pena, se o
experimentas. Amas tua prima, Afonso?
— Não amo minha prima respondeu serena e pacientemente o rapaz. Se
amasse Mafalda, decerto não estaria ao lado de Palmira. Estimo-a como irmã;
respeito-a religiosamente hoje, por saber que o último alento de minha mãe o
recebeu ela nos lábios... Porém, que tens tu com minha prima? Que injustas
referências são essas que continuamente lhe estás apontando? Que mal te fez
a triste menina, que vive e morrerá sem outro prazer senão o da sua virtude
mal remunerada neste mundo?
— Virtude!... — interrompeu Palmira franzindo os lábios no sorriso de
ironia injuriosa. Sempre a virtude de tua prima em campo para contrastar
naturalmente os meus vícios M. Pouquíssima generosidade é a tua, Afonso!...
Terei eu de ouvir ainda de tua boca o libelo e a condenação das minhas
culpas?! Pode ser, pode ser, e eu, envelhecida pela experiência de poucas
semanas, não terei de que espantar-me.
— Ofendem-me as tuas injustiças-redarguiu Afonso sofreando a
impaciência-Que direito te dou para tanto?
— Direito? Queres, por acaso, dizer-me que estou em tua casa?
— Essa pergunta é aviltante, Palmira!... Onde está a tua inteligência, a tua
crítica e, propriamente, a tua vaidade? redarguiu Afonso de Teive.
Desconheço-te, estás a descer sem impulso estranho...
— A descer da tua consideração?-acudiu ela ressabiada.
— Quem o duvida? A mulher de alma nunca faz semelhantes perguntas a
um homem como Afonso de Teive. Queria eu dizer que não te dava direito,
ou causa a ofender-me.
— Bem! tomou ela, amaciada a voz com falso acordo. Aceito a explicação.
Perdoemo-nos reciprocamente e sejamos... amigos, sim?
— Como tu feriste ironicamente a palavra amigos!...
— É que me não toa bem nos ouvidos do coração replicou Palmira
risonha, chegando a face aos lábios do rapaz, que a beijaram friamente.
— Enquanto ao teu novo traçado de vida — respondeu ela — , queres que
se cumpra, em rigor, como está ordenado, sim?
— Ordenado não é o termo próprio. Consulto-te, expus em breve as
minhas razões; mas se te despraz...
— Apraz-me tudo que te contenta, meu Afonso. De hoje em diante
reformam-se os nossos costumes. Vendem-se os trens? Traspassa-se o
camarote? Vamos habitar uma casa modesta... Queres, Afonso? Também eu.
Não escapou a Afonso o tom irónico de tais perguntas. Caiu em si de repente,
e viu-se em começos de castigo. Apagaram-se muitas luzes do altar em que ele
tinha o belo barro idolatrado. Fugiram-lhe para sobre o túmulo de sua mãe os
olhos da alma e viram Mafalda de joelhos na lajem da capela com face apoiada
no mármore do jazigo. As luzes restantes do altar ficaram para lhe mostrar o
odioso da mulher de Eleutério.
Às perguntas retrincadas não respondeu Afonso... Ergueu-se e saiu do seu
quarto. Refugiou-se no mais recôndito do palácio, para chorar a salvo do
oprobrioso sorriso de Palmira. Depois voltou ao seu escritório e escreveu a
Mafalda esta carta, significativa de mudança temporária, se não fundamental,
em seu espírito:
Prima Mafalda. Vai ao pé do túmulo de minha mãe e repete-lhe as palavras
desta cana. A justiça de Deus esmaga-me. Sou eu que vergo debaixo do fardo
de afronta que levantei da lama com minhas próprias mãos. O
arrependimento dos desvarios da mocidade não costuma atalhar tão cedo a
carreira dos grandes desgraçados. Fere-me Deus tão cedo!, é porque me quer
desatar deste jugo de infâmia. Auxiliem-me as orações de minha mãe, que eu
sou fraco. Venham golpes de desengano, bem pungentes, para que se faça o
dia da razão em minha vida. A aurora deste dia já aponta; mas o meu coração
ainda está envolvido em trevas e cheio de amargura. Santas devem ser as tuas
orações, Mafalda. Eu dobro o joelho ante a memória de nossa mãe, ouso
invocar a sua intercessão no Céu; sei que a alma bem aventurada não repele o
mau filho que a crucificou nos últimos anos, quando me ela pedia seio onde
encostar as suas cãs. Mafalda, anjo solitário, que vês com os olhos puros as
estrelas da nossa infância, ora por mim, dá-me a tua piedade, que nenhuma
outra me dá este mundo. Escreve-me, diz ao teu vulnerável pai que me escreva.
Lembra-lhe as pardieiros das Taipas... Diz-lhe que o neto de
Cristóvão de Teive sente já no coração o corroer das úlceras que carcomeram
a pele do emparedado. Amai-me ambos, defendei-me de mim próprio, que o
esteio da religião não pode com o peso de meus desatinos. Teu primo,
Afonso.
Mandou Afonso lançar a carta na caixa postal.
Um quarto de hora depois, entrava Palmira, fremente de raiva, com a carta
aberta exclamando:
— Isto é uma grande miséria e uma grande infâmia, Sr. Afonso de Teive!
A minha dignidade vem pedir que esta afrontosa carta seja reformada.
Afonso lançou mão da carta e recuou horrorizado da vilania de Palmira.
Secou-se-lhe a garganta e lábios ao queimar de um hálito de cólera que lhe
calcinava o peito. Não pôde falar. Saiu do quarto, chamando a brados o criado
a quem incumbira a remessa da carta. Já não era criado de Afonso o miserável
que vendera o sigilo do seu amo pelo ouro dele mesmo; fugira bem
remunerado. No entanto, Palmira esbracejava de sala em sala, soltando gritos
pavorosos. Afonso, congestionadas as fontes de sangue, e o coração em
arrancos no peito, fincava os dedos nas carnes da face, tapando os ouvidos
para não ouvir os clamores da mulher cuja fúria recrescia à proporção do
desprezo com que os próprios criados lha escutavam.
Afonso de Teive saiu aforrado como quem foge; foi lançar a carta por sua
mão; divagou horas no mais desfrequentado dos arvoredos do Campo
Grande. Aí sentiu orvalhos do céu esfriar-lhe o afogo da febre. Olhou ao céu
com as mãos erguidas, e disse: «Oh, minha mãe!» Ao cair da noite, voltou a
casa, e viu no pátio o gig de D. José de Noronha. O seu lacaio particular,
antigo criado de sua mãe, acercou-se cautelosamente dele e disse:
— Fidalgo, não se aflija... Tenha ânimo, fidalgo, e não deixe fazer o ninho
atrás da orelha.
O chulo da frase ofendeu-o, e a intenção misteriosa ainda mais.
— Que queres dizer, animal? perguntou Afonso.
O criado coçou-se, fechando os olhos, e respondeu:
— Lá em cima está o Sr. D. José de Noronha.
— Que tem isso? Não o tens aqui visto tantas vezes? Responde.
— Tenho, tenho, e Deus sabe se cá por dentro me não tem dado guinadas
de lhe partir na cabeça o gig.
— Porquê? Vem cá... Entra nesta loja comigo... Fala claro! dizia Afonso
com sufocada veemência. Que desconfias tu de D. José?
— Desconfio, fidalgo, que a Sra. D. Palmira não é fiel a V. Exa.
— Mentes!, mentes! bradou Afonso. Prova-mo, senão mato-te.
— Não há de matar, se Deus quiser. Sr. Morgado — disse tranquilamente
o Tranqueira, — nome que merece ser lembrado. Faz favor de tomar ar e
ouvir com sossego. Estes negócios hão vão assim de afogadilho. Dê tempo ao
tempo.
— Não é tempo ao tempo, é já, imediatamente. Diz o que sabes,
Tranqueira, que se me fende a cabeça.
— Fidalgo, aí vai o que sei. O criado que fugiu esta manhã, sem que eu lhe
pudesse pôr os dez mandamentos, foi cá metido pelo lacaio da senhora e era
lá muito colaço dela. Uns dias por outros, pisgava-se do serviço o rapaz, e
andava por lá quatro horas. Antes de ontem, tirei-me dos meus cuidados e fuilhe
na pista muito à socapa. Levei-o de olho até à Rua de Santa Bárbara, e lá
esgueirou-se-me. «Querem vocês ver que o Diabo as arranja?», disse eu cá cos
meus botões. «Estará ele metido em casa de D. José de Noronha?» Meu dito,
meu feito! Dai a menos de três credos saia o malandro de casa do tal
suplicante, e vinha, anda que anda, por ali fora. Saí-lhe eu de uma travessa e
disse: «Tu de onde vens, António?» O patife engasgou-se, e nem pra trás nem
pra diante. «Tate!», disse eu, «aqui há tratantada. Se ele fosse a coisa boa,
diziao.» Pus-me a considerar no que havia de fazer. «Eu, se lhe digo que o vi sair
de casa de D. José, espanto a caça, e fico por mentiroso, dizendo o que vi a
meu amo! Que hei de eu fazer? Embucho o que sei; tomo à minha conta
espreitar a ama... a ama!, que a leve o Diabo, que quem me paga é o fidalgo-,
espreito, e se pilho a melgueira em termos, esbarronda-se o negócio, e meu
amo dá cabo deste ladrão que o veio desonrar a sua casa.»
Afonso, além da voz do Tranqueira, ouvia um zunido e fisgadas dentro do
crânio, como se lá se contorcesse e mordesse o cérebro um enxame de vespas.
O criado continuou:
— Antes de ontem à noite apareceu aqui o D. José. Fui em palmilhas atrás
dele. Vi-o entrar na sala do tapete azul, e retirei-me assim que vi V. Exa entrar
também com a senhora. Desde então não voltou cá senão agora; mas como lá
está com ele outro amigo, acho que não tem dúvida, e por isso vim para aqui
esperar o fidalgo. Aqui está o que eu sei, meu amo. Bote lá as suas contas, e
deixe-me dar uma carga de lenha no tal menino, se for preciso.
Afonso pôs a mão direita sobre o ombro do Tranqueira e disse:
— Obrigado, teu amo agradece-te os cuidados que tens com a sua honra.
Recomendo-te que não digas uma palavra a tal respeito. Ouves, Tranqueira?
— Então isto fica em água de bacalhau? perguntou o criado, abrindo e
fechando as mãos.
— Já disse, nem uma palavra. Os teus cuidados agora passam para mim.
— Bem me fio eu nisso!-murmurou à lacaio na ausência do amo.
Afonso entrou no seu quarto; viu-se a um espelho; espetou que o rubor da
excitação se descorasse, compôs o semblante e passou à sala onde estavam
Palmira, D. José de Noronha e um particular amigo deste.
Palmira, no sofá, tinha os braços em cruz sobre o seio e a face inclinada sobre
eles. D. José de Noronha folheava sobre a jardineira as Mulheres, de Walter
Scott. O amigo estava sentado na poltrona contígua ao sofá. Cortejou Afonso
os dois cavalheiros, depois de estender a mão a Palmira, com tão demasiada
cerimónia que lhe não roçou as pontas dos dedos. Esta ação, depois da luta da
manhã, pareceu naturalíssima à esposa de Eleutério. Depois, achegou-se
serenamente de D. José, observou a Piora Mac-Ivor do romancista escocês,
concordou com D. José na primazia da gentileza desta heroína, disse poucas
mais palavras, e pediu licença para recolher-se, obrigado por uma fortíssima
enxaqueca. Tudo isto com um natural irrepreensível.
Entrou Afonso no gabinete de Palmira. Havia ali uma secretária de mogno,
com espelhos, cravejada de gavetinhas moldadas pelo feitio dos antigos
contadores. Tiradas as gavetas da primeira série, encontravam-se uns falsos de
segredo, conhecido dele, que fora o primeiro possuidor da engenhosa alfaia.
Instigado pela suspeita, tirou Afonso pelos botões da gaveta central: estava
fechada, e as duas laterais abertas. Concluiu que a do meio segredava uma
revelação. Procurou um ferro jeitoso com que fazer saltar a fechadura: serviulhe
a ponta de um punhal. Cedeu a frágil lingueta estalando. Tirou Afonso a
gaveta, que continha joias; levou o dedo ao impercetível botão que abria o
falso, e tirou dois macetes de cartas e uma solta. Abriu esta e leu as primeiras
linhas. Uma sombra de dúvida seria estupidez máxima Dizia:
É preciso cuidado com o lacaio de A. Encarou-me ontem de certa maneira:..
Emprega o nosso António na espionagem de alguma suspeita. Amanhã vai
comigo o D. A. M.; se for propicia a ocasião, ele sairá a tempo, etc.
Passou Afonso ao seu quarto para deliberar meditando. Que lance para
meditações! Dai a pouco ouviu o rugir das sedas de Palmira. Lançou-se
apressado sobre o leito, com a fronte entre as mãos.
— Estás melhor? disse ela maviosamente.
— Não.
— Pensei que estarias deitado. Que hás de tomar, meu filho? disse ela,
inclinando-se ao rosto de Afonso. Que tomas de ceia?
— Nada.
— Estás ainda muito irado contra mim? Replicou ameigando-o.
— Deixa-me, que me custa falar. Vai à sala, se está lá gente.
— Irei, sede nada te sirvo aqui, e para além do mais te importuno. Ainda lá
estão aqueles maçadores.-. Logo voltarei a saber de ti.