Capítulo XV

Afonso de Teive contava os dias, e, no último dia, a hora é instantes em que
devia receber carta de Teodora. Esperou uma semana em alvoroço, e já ao
décimo dia a malograda esperança o atormentava. A incerteza da receção
aliviava-o por momentos; outros, porém, sobrevinham em que ele se
considerava desconsiderado pela caprichosa ou vingativa mulher. O mais
graduado oráculo do seu conselho. D. José de Noronha, racionalmente
opinava que a mulher autora de tais canas por força devia responder; e do
silêncio concluiu que se transviara a resposta enviada. Chegou a confirmação
desta hipótese na seguinte pergunta de Teodora:
Instantemente te rogo que no primeiro correio me digas se me escreveste. Sobejam-me razões
para conjeturá-lo. Estou em ânsias. Esta incerteza martiriza-me mais que o teu desprezo.
Responde-me depressa. Dirige a tua resposta pedida com lágrimas para Barcelos. Calculo o
dia em que ela deve ali estar. frei pessoa/mente recebê-la.

T. P.

Lida a pergunta, Afonso abancou para responder. Posta a primeira palavra,
ergueu-se de salto. Chamou o criado da cavalariça. Mandou pensar os cavalos
para jornada longa. Sentou-se a escrever a D. José de Noronha. Pensou
seguidamente dos aprestos para a partida; e, duas horas antes da saída do
correio, galopava na estrada do Porto. A meia jornada fraquearam os cavalos.
Afonso fez remonta em Coimbra, sem discutir o preço de novas carruagens, e
chegou a Barcelos duas horas primeiro que o correio.
Quando apeou na estalagem de Barcelinhos, encostou a cabeça esvaída à
borda de um leito e adormeceu. Rompia a manhã. A mim me contou ele que,
dormindo uma hora, acordara transido do horror de um sonho. Vira Teodora
em trajes de bacante, revolteando umas valsas lúbricas, e atirando-se ébria, e
torpe de impudicícia, aos braços de um homem. Era um sonho; mas ao
despertar, Afonso sentia abrir-se-lhe o coração a golpes de arrependimento. A
prostração era invencível: adormeceu outra vez, e sonhou que via sua mãe
agonizante nos braços de Mafalda. Acordou espavorido; ergueu-se arrancando
a mãos frenéticas aquela imagem da fronte; o arrependimento era já lançada
de remorso. Abriu o relógio: viu que era ainda tempo de fugir... Diz ele que
fugiria... ai!, eu não creio que ele fugisse, não! Chamara o criado para arrear os
cavalos... eis que, ao cimo da rua, soa tropel de ferraduras, e faz-se rápida
paragem à porta, da estalagem. Afonso descora, vai de encontro às vidraças, e
vê apear a morgada.
O quarto dele era contíguo à sala comum. Já Afonso lhe ouvira os passos
escada acima, e logo a voz ordenando ao lacaio que amantasse os cavalos e
fosse receber as suas ordens. Foi ele manso e manso espreitar pela fechadura.
Respirava em arquejos ao avizinhar-se da porta. Curvou-se, inspirando
sôfrego o ar que lhe saia a sacões do peito. Viu-a. Estava com o braço
esquerdo encostado à mesa central da sala, e a face reclinada para a mão. Com
a direita chibatava, como alheada do que fazia, o pó acamado no roçagante
vestido de casimira verde-escuro. Verde era o véu do chapéu, que, momentos
depois, ela tirou com rápido movimento e rojou ao longo da mesa. Levou
ambas as mãos às fontes, afastando os anéis dos cabelos, que se
encaracolavam rosto abaixo até às espáduas. Demorou-se momentos naquela
postura. Ergueu-se impaciente e passeou de um a outro lado da casa, vibrando
o chicote, e tirando com força pelo trancelim de ouro do relógio. Volveu a
sentar-se, com o rosto voltado em cheio contra a porta, de onde Afonso a
observava. «Poucos traços lhe vi então das feições menineiras com que a
deixara», me disse ele. «Da menina admirável o que ela ainda tinha era o ar
angélico; mas a beleza da mulher deslumbrava as reminiscências da criança.»
Venceu Afonso os ímpetos que o empuxavam para abrir a porta. Esperou,
sem saber o quê; esperava o desencantamento, esperava o dom da palavra
retraído ao coração.
Entrou um lacaio, que ela mandou logo ao correio com um bilhete ali escrito a
lápis. Desde este momento, Afonso já sabia o que esperava: queria vê-la aflita
com a falta da carta. No intervalo, Teodora chamou o criado da hospedaria e
pediu café, O criado, ouvidas as ordens, dirigiu-se ao quarto de Afonso; este
viu-o e afastou-se. Aberta a porta subtilmente, perguntou o criado se Sua
Excelência queria almoçar. Afonso respondeu com um aceno negativo.
Fechada a porta, perguntou Teodora:
— Quem é que está naquele quarto?
— Não sei, fidalga respondeu o rapaz. Afonso repôs-se à fechadura.
Chegou o lacaio.
— Trazes? exclamou ela como assustada.
— Não há, minha senhora.
— Não?! — bradou ela batendo o pé. É impossível! É impossível! Deve lá
estar uma carta!...
— Saberá V. Exa que eu lia lista primeiro, depois fui dentro perguntar ao
homem que dá as canas disse o lacaio, e saiu.
— Inferno! clamou ela estortegando os dedos que estalavam nas
articulações. Maldita eu seja, que tão aviltada me tomei!
Sentou-se a arfar e a chorar, e logo depois levantou os pulsos comprimindo as
fontes.
Pôs depois as mão enclavinhadas junto dos lábios, encostou a barba ao pólex
da mão esquerda, abaixou a cabeça e meditou.

Entrava o criado com a bandeja. Teodora, estremecendo como atemorizada,
relanceou os olhos sobre o criado e disse-lhe com desabrimento:
— Deixa ficar. Cá me sirvo, O lacaio que almoce e aparelhe.
Neste momento, Afonso abriu a porta e disse com a voz convulsa:
— Um passageiro pede uma chávena do café de V. Exa.
O leitor já sabe, por todos os romances, por todos os dramas e por todos os
actos da vida real, semelhantes, muito ou pouco, a este, o que Teodora fez.
Um ah! ou dois é o nariz de cera para todas as surpresas. fabricadas desde
Homero, ou mais de longe. Adão, quando viu Eva, devia dizer-lhe Ah! A Eva,
quando viu a serpente, se não fugiu, eu vou jurar, sem menoscabo do
historiador Moisés, que, mais ou menos nervosa, exclamou: Ah! A interjeição
é coeva do homem, que nasceu cheio de espantos.
Espanto, porém, igual ao da morgada, se o houve, foi o meu, quando Afonso
me disse que Teodora não expediu do seio interjeição nenhuma, nem ah!
sequer.
— Pois quê?! — perguntei eu com a respiração abafada. Que disse ela?!
— Levantou as mãos, juntou-as sobre o seio postas em oração; depois,
caiu em joelhos, ia cair, quando eu, ajoelhado também, a recebi, a desfalecer.
— Não disse nada, portanto!... E desfaleceu sinceramente?
— Fazes-me essa pergunta como quem conheceu a mulher... — respondeu
Afonso. Asseveras-me que te estou contando factos ignorados?
— Pois eu podia saber o que se passou na estalagem de Barcelinhos?!
repliquei. Eu ignoro dessa mulher tudo, menos o que toda a gente sabia. Vi
Palmira em Lisboa contigo... mas, se tu crês que um homem, acostumado a
fazer romances, é uma espécie de naturalista, que só com um osso recompõe
um animal desconhecido, admite-me que eu tenha adivinhado a alma inteira
de Teodora com os poucos, mas característicos, traços que me deste do seu
carácter. Autorizado, pois, pela tua pergunta, afoito-me a dizer que o desmaio
da amazona foi menos de teatral, porque nem sequer foi precedido da
inevitável interjeição. Assim que me disseste, Afonso, que ela não
desentranhou do íntimo seio um estrídulo ah!, entendi que Teodora era mais
artificial que o próprio artifício, mais teatral que o mesmo teatro.
— A narrativa redarguiu Afonso de Teive vai perdendo a seriedade que
demandava o caso. Cansaço ou enojo, dir-te-ei que me sinto já constrangido
nestas memórias. Acho-me um pouco identificado com a minha vida passada;
repassei o Letes interposto, e olho com saudades para as margens que deixei.
Se, como diz o Dante, nada há aí mais triste que recordar na miséria os
tempos felizes, é pelo menos nauseabundo recordar em tempos felizes
vergonhosas misérias. Todavia, como já agora inexorável romancista, me não
dispensam o remate deste longo prólogo do capítulo final do meu livro que eu
chamaria Amor de Salvação — , concluirei a história e irei depois purificar
meus lábios no rosto de meus filhos.
»Teodora continuou Afonso — , quando quis abrir os olhos, arrancou-se dos
meus braços, exclamando: "Repele-me, que eu sou indigna de ti. Agora
reconheço a minha miséria, agora que te vejo, ó anjo da minha infância, que

eu deixei fugir para o seio da mulher digna, da mulher pura, da criatura
perfeita para quem tu nasceste!"
— Há aí muito estilo interrompi. A mulher compunha! Vê-se que leu e
aproveitou. O deputado de Braga é que tinha olho de D. João de Marana para
as mulheres de letras. E depois?
— Eu venci o espaço que ela deixara recuando e abracei-a. Neste
movimento senti nas faces o contacto dos caracóis desfeitos. Osculei-a na
fronte...
— Gosto atalhei do comedimento honesto da palavra... Osculei-a... Sim,
senhor... Assim é que um pai de oito filhos conta a história dos seus beijos. E
ela também te osculou?
— Sofregamente, doidamente, segurando-me a face pelos cabelos.
— Isso também é de rigor teatral. A mulher conhecia a cena! Perdoa as
interrupções. De propósito as faço para te dar azo a inspirares fôlego novo,
visto que já te afadiga o conto. Mais tarde...
— Rebentou-me a bolhões do peito a eloquência da paixão. Era uma alma
virgem que se abria. Abria-se um tesouro intacto de onde nem sequer tirara
uma palavra para mentir a outra mulher. Ela entrecortava-me, sorvendo-me as
expressões dos lábios, ou abafando-mas no seio palpitante e ardente como o
arquejar estuoso do vulcão. Este lance febril, de minutos no viver de meu
espírito, absorvera uma hora, segundo a vida do tempo...
— E depois acudi eu começaram a tratar de assuntos circunspectos com
discreta serenidade.
— Contou-me ela que o marido, com ar de tirano tolo...
— A frase é dela, tirano tolo? perguntei.
— É. Desgostar-me-ia o tom zombeteiro com que ela me falava do pobre
homem, se eu não estivesse...
— Corrompido conclui. Querias dizer isto?
— Era isso verdadeiramente. Dizia, pois, ela que o marido lhe falava em
correspondências de Lisboa, mordendo o beiço, ou esgaravatando nos
pavilhões dos ouvidos, costume dele, quando os ciúmes lhe faziam prurido
nas orelhas.
— Disse-to assim ela? interrompi com a mais ingénua irritação.
— Disse-mo assim, com pouca diferença, meses depois, quando eu estava
mais corrompido que ela para provocá-la às originalidades da sua veia
sarcástica: do que me confesso em opróbrio meu. Delineámos o nosso futuro.
Foi ela quem o programou. Iríamos para longe. Propôs Lisboa, ou Madrid, ou
Paris. Quis Lisboa, no intento de requerer divórcio. A fuga teria execução
antes de oito dias. Eu ficaria em Barcelos, disfarçado, oculto durante o dia. A

meia-noite apearia a um oitavo de légua de Tibães. Teodora estaria no seu
gabinete de estudo, e as vidraças coariam a luz da sua lâmpada, companheira
das lucubrações intelectuais, insuspeitas ao marido. Referendado o programa e
rubricado com um ósculo (repara que me não descomponho) ouvi estropeada
de cavalo na rua. Momentos depois...
— Querem ver que chega Eleutério! atalhei com alvoroço e alegria parva,
se não cruel.
— Eleutério Romão dos Santos, em pessoa, tropeando nas escadas que
subiam para a sala, onde nós estávamos tranquilos como Paulo e Virgínia
(perdoai-me, santas almas, a comparação!) nos rochedos da Ilha de França!
Agora tu, Calíope, ensina-me a contar o sucesso estranho!... Eleutério viu
ainda o desencadearam-se os braços de Teodora do meu pescoço. Parou,
estacou, empederniu-se, estupidificou-se no limiar da porta.
— E Teodora? Narra-me da esposa surpreendida; que fez ela? perguntei
com inquieto empenho.
— Teodora, pendidos os braços, fitou Eleutério com sobranceria, deu dois
passos, postou-se diante de mim e disse, voltada para o marido: «Que me
quer? A minha alma é livre.»
— Esperava outra coisa eu! Isto parece-me estupidamente imoral. É caso
novo é feio esse! E tu, que fizeste tu?
— Nada.
— Dos três é quem andaste melhor. Parabéns! E ele, o marido, que fez
depois? Que respondeu à Pantasileia?
— Respondeu que lhe ia dar cabo da casta, e tirou uma luzente podoa de
dois gumes do bolso interior da judia.
— Uma podoa! Outra novidade! E arremeteu com ela?
— Quando ele sacou do ferro, passei para a frente de Teodora.
— Desarmado?
— Desarmado: as pistolas estavam no meu quarto. Mas a Pantasileia
virgiliana, como tu apropriadamente a denominas, repeliu-me com uni braço e
mostrou na extremidade do outro uma pistola abocada ao peito do marido.
— Novidade terceira! acudi eu, quase suspeitoso da logração do conto. Tu
não estás inventando, Afonso?
— É inepta a pergunta; mas perdoável. Não invento, meu amigo. Conto
verdades que me entristecem. Recordar-me agora do gesto consternado do
marido dela punge-me deveras. Tremia-lhe o ferro na mão ameaçadora, e já o
rosto se lhe estava banhando em lágrimas. Desceu o braço quebrantado por
agonia mais lacerante que a ira e fitou em mim os olhos chamejantes. De mim,
relanceou-os à mulher; e, desafogando a custo as palavras, disse: «Castigada te
veja eu, e Deus me vingue!»

— Não esperava eu que ele dissesse isso. Há concisão e angústia suprema
nesse apelar a Deus refleti eu condoído, não obstante tê-lo visto, como fica
escrito, no arraial de S. Brás de Landim, anos antes, em jeito de muita
felicidade, e grande frescura de Animo e coração. E continuei no meu
impertinente interrogatório, tendo em vista que o leitor fosse bem informado:
Eleutério, depois, saiu, ou que fez?
— Chorou, embebeu as lágrimas no lenço, e disse: «Eu não te obriguei a
ser minha mulher. Se casaste, foi porque quiseste. Se tinhas outra inclinação,
não dissesses a meu pai que me querias.»
— Que impressão fizeram em ti essas palavras tão simples e sinceras?
perguntei.
— Má impressão! respondeu Afonso de Teive. Péssima impressão! Desviei
involuntariamente os olhos dela: a razão saiu por momentos do seu chiqueiro,
e teve dó da alienação da minha pobre alma. Eleutério, por último, rematou
assim: «Não tenho mulher. Vou para minha casa, e vai tu para a tua.» E saiu.
Teodora voltou-se para mim, atirando a pistola sobre a mesa, e disse: «Estou
livre. Aqui me tens, Afonso. Aqui está a tua Palmira, com o virgem coração
que lhe conheceste, mais valioso do que era, mais depurado dos instintos
maus, graças aos trabalhos que me angustiaram a vida. Queres-me assim,
Afonso?... »
— Abraçaste-a fervorosamente, convulsamente interrompi eu.
— Não: disse-lhe com uma falsa graça no rosto: «quero-te assim;
partiremos hoje mesmo para Lisboa.» «E os meus fatos, as minhas joias?»,
perguntou ela. «Tenho brilhantes que eram de minha mãe.» «Deixa-os. Terás
brilhantes, se eles forem precisos à tua felicidade!» «A minha felicidade!»,
exclamou Teodora, ajoelhando-se-me de mãos postas, «a minha felicidade é
uma choça contigo, no ermo, no isolamento de todos os prazeres da
sociedade.» Ergui-a com amor. Tocou-me o contraste daquela humildade com
a arrogância da resistência ao marido.
»A esta procela de comoções violentas seguiu-se um intervalo de silêncio
morno, concentração porventura dolorosa em que os nossos olhares
mutuamente se interrogavam. Eu via minha santa mãe e a puríssima imagem
de minha prima. Teodora não sei o que via: pode ser que estivesse lendo a
página negra do seu destino, voltada pela mão do Senhor. Eu de mim
esforçava o contentamento no rosto: os olhos viam-na embelezados; o
ambiente escaldante que ela aquecia com o seu hálito coava-me lume até às
medulas dos ossos; mas o formidável grito da moral repercutia-se no senso.
intimo da minha queda. Desgraçadas e atrozes ligações as que começam
assim! É que a sentença da justiça divina foi já lavrada.
»Teodora abriu a janela da sala e aspirou com força; encostou-se ao peitoril
com os olhos cravados nos cabeços da serra da Tranqueira.
»"Em que meditas, Palmira?", perguntei-lhe eu.


»"Em minha mãe, que era virtuosa como a tua", respondeu ela. »Esta dor
nobre, tão singelamente revelada, fez-me bem ao coração. Comoveu-me
aquele dizer de mulher, no tom da maviosa feminilidade que soa tão brando e
compadecedor nas almas de rija têmpera, como era a minha. Falámos de
nossas mães, e com tantas carícias de expressão saudosa, que terminámos,
beijando um do outro os olhos cheios de lágrimas.
»No mesmo dia, por volta da tarde, saímos caminho de Lisboa.»