Capítulo XXII

Eram atrozmente verdadeiras as informações comunicadas pelo
desembargador Figueiroa sobre a desfortuna de Afonso de Teive em Paris.
Os quinze mil cruzados, produto suposto da quinta de Ruivães, engoliu-os a
voragem do jogo de fundos, à qual o alucinado rapaz se atirou às cegas,
contando com a vicissitude favorável, por ter sido infeliz nas outras.
Resolveu matar-se. Esta deliberação contrabalançou as agonias da pobreza
desesperada. Como via a morte no leve movimento de um gatilho, deixou de
encarar o futuro. Que lhe importava morrer pobre?! Encheu-se de coragem e
deu graças a Deus pela fortaleza que lhe dava. Juntou os objetos de ouro e
pedras que reservara para aquela hora premeditada. Chamou o criado e disselhe:
— Vende isso que aí está. Creio que o valor dessas coisas bastará ao
pagamento do que te devo em dinheiro e soldadas: se algum resto houver a
maior, leva-o para te passares à tua terra.
— E o fidalgo onde fica?! perguntou o Tranqueira.
— Aqui! disse Afonso.
— Pois também eu, patrão! Já agora, tenha paciência; gastei a mocidade em
sua casa; a velhice por cá a levarei nesta endiabrada terra, como Deus for
servido. Guarde lá o fidalgo as suas coisas, que eu não as quero, nem lhe pedi
nada. Para eu viver, basta-me uma carroça e um cavalo estropiado. Arranje V.
Exa a sua vida, que eu cá me irei arranjando.
— Cumpre as minhas ordens, Tranqueira! replicou Afonso com fingida
severidade.
— Perdoará, Sr. Afonso... disse o criado. É a primeira vez que lhe
desobedeço. Eu não recebo nada enquanto o não vir com outro arranjo de
vida.
— Faz o que quiseres... redarguiu o rapaz, embolsando a punhados os
objetos que oferecera ao criado, na intenção de sair para vendê-los.
Tranqueira desconfiou do intento suicida do amo. Apenas esta suspeita lhe
saltou de repente ao ânimo, atravessou-se à porta do quarto, exclamando:
— O fidalgo não é homem, por mais que me digam! Há Deus ou não há
Deus?! Então sua mãezinha esteve a criar um menino na lei de Cristo, para V.
Exa dar esta saída! Pensa que eu não sei o que lá tem na cabeça? O Sr. Afonso
quer dar cabo de si... Pois, ande lá por onde quiser, que eu nem de dia nem de
noite o largo mais... Matar-se, por falta de dinheiro, um rapaz de vinte e cinco
anos, que sabe ler e escrever, e em boa saúde! Isso não o faz homem nenhum
no seu juízo! Quem precisa, trabalha: se não é nisto, é naquilo. E os que
perdem tudo o que têm num fogo, ou no mar, matam-se? Ora, Sr. Afonso, eu
dos anos que tenho ainda não topei homem tão desanimado!... Valha-o a
alminha da Sr. D. Eulália! Quer o fidalgo uma coisa? Eu vou vender algum
desse ouro que aí tem, e vamos para Portugal. Seu tio desembargador mostra
que é seu amigo e o Sr. Fernão de Fonte Boa morreu sempre por V. Exa. Não
se lhe pede dinheiro nem coisa que o valha: pede-se-lhe que o arranjem em
algum emprego limpo. Trabalhar não é vergonha, é honra, fidalgo!... Que me
diz? Que responde ao velho Tranqueira que o trouxe ao colo e aqui está de
joelhos aos seus pés?
E abraçou-se-lhe aos joelhos, com os olhos inflamados de lágrimas.
Afonso levantou-o nos braços trementes de grata comoção e disse-lhe com
transporte:
— Trabalharei, meu amigo, trabalharei... Descansa, que eu não me mato...
A desgraça me irá matando.
Com referência àquelas chãs e firmes expressões do servo rústico me disse
Afonso:
«Eu tinha lido na véspera daquele dia uns livros de insinuante moral, e
consolação a desvalidos, pedindo-lhes crença que me esteasse na desesperada
crise de homem, sem nenhum escape na ceifada negridão de sua vida.
Doutrinas e exemplos de evangélica unção, factos tormentosíssimos de
angústia e admiráveis de conformidade, desde Job até ao maior homem do
mundo na rocha de Santa Helena, nada me impressionara, nada me demovera
do suicídio. Vi uma réstia de luz instantânea refletida no rosto de Mafalda!
Pensei que era o anjo da santa melancolia a despedir-se do precito, que o
repelira. Ainda o apego à existência, exprimindo-se nas frases positivas dela,
me quis mostrar a felicidade possível no casamento com minha prima. Afastei
com tédio de mim próprio este impudor de alma envilecida pela desgraça. O
homem rico não reconhecera a virtude de Mafalda, senão para admirá-la; o
homem desvalido havia de ir depois pedir à virtuosa que o aceitasse como
marido!... Tive medo que outra vez me acometesse o pensamento vil. Dei-me
então pressa em abreviar o termo da luta! Depois disto, como é possível que
as rudes palavras de um criado me abalassem desde a profundeza de minhas
convicções acerca da coragem do homem que se mata? Como logrou ele o
que os livros consoladores não vingaram, nem os estímulos indecorosos a um
casamento rico? Foram aquelas palavras: quem preta, trabalha, ditas pelo
homem que as tirara da sua consciência, como se elas descessem do Céu,
naquele momento, para me serem ditas, não pela página de um livro, mas pela
boca de quem as dizia, chorando.»
Afonso de Teive, com mais coragem do que a necessária para o suicídio,
dirigiu-se a uma casa de comércio de judeus de procedência portuguesa,
residentes em Paris. Conhecera Afonso um mancebo desta família no
concurso das pessoas bem qualificadas. Procurou-o e contou-lhe o seu estado,
oferecendo-se a trabalhar no escritório, segundo sua aptidão. Os comerciantes
aceitaram-no como terceiro-ajudante de guarda-livros com o ordenado de dois
mil francos.
Vendeu Afonso as suas joias e alugou uma mansarda, que mobilou consoante
a escolha de Tranqueira, pobre e limpamente. O criado comprou um cavalo, a
que ele chamava um milagre, e uma carroça, com que trabalhava de carrejão,
nas horas ocupadas do amo. As horas convencionadas, o Tranqueira ia buscar
em marmitas um jantar económico para ambos, todavia asseado e abundante.
Afonso passava em casa as noites, estudando a língua inglesa para poder
adiantar-se na sua carreira, até merecer os seis mil francos de primeiro-adjunto
ao guarda-livros.
Se era feliz assim?
Oh! não: nem tudo que é honroso se há de crer que seja felicidade. A
degenerada natureza do homem quadra violentamente com as mudanças
assim abruptas, com as quedas de tão alto! O magnificente amante de Palmira,
o rapaz blandiciado nas salas do seu palácio do Campo Grande, reclinado por
sobre coxins de seda, inventando regalias com que desanojar a sua ociosa
saciedade, certamente não podia escrever odes à fortuna amiga quando saia de
escrever cifrões no escritório mercantil. O reportar-se também não é ser feliz;
é, no máximo das vezes, um martírio consecutivo de triunfos obscuros;
porém, martírio sempre!
E, depois, Afonso entrava futuro dentro, fantasiando mudanças, quimeras,
paradoxos, que o voltassem a uma felicidade, que ele bem nem mal sabia
definir, ou estremar do que vulgarmente se diz que ela e. Destas vãs e ardentes
consultas ao porvir voltava o rapaz ao refrigério do trabalho, e assim o tempo
ia derivando, branqueando-lhe os cabelos e quebrando-lhe os espíritos.
Em Lisboa era sabida a situação de Afonso de Teive, não que ele a contasse.
Escrevia ao tio Fernão raramente, sem de leve tocar em negócios. Respondia
às cartas de algum raro amigo que o julgava ainda em circunstâncias de lhe
não pedir empréstimo para se resgatar de Clichy.
Neste tempo recebeu ele notícias de Palmira, não solicitadas. Dava-lhas assim
um dos seus comensais de Lisboa:
[...] A mulher surgiu aqui, vinda não sei de onde, pompeando com tanto
esplendor e mais estupidez que no teu tempo, ou. melhor direi, no teu
reinado.
Vi-a em São Carlos, ontem, sozinha na frisa. Disseram-me, porém, que lá, no
recôncavo do camarote, estava um homem gordo, de tez bronzeada e vista de
suíno. Dizem que é brasileiro do Minho, outros diziam que o marido
envergonhado. O D. José de Noronha, desde o banho da cisterna, nunca mais
se endireitou do espinhaço, e vai a tísico irremissivelmente. Não há memória
de uma catástrofe assim nos fastos dos Lovelaces patifes deste nosso quintal
do tio Lopes. O D. António de Mascarenhas assevera-me que Palmira nunca
mais teve uma palavra de consolação para o derreado amante, O teu criado
matou estes amores com tamanha ignomínia, que já não há ninguém que
queira amar mulher em casa onde haja cisterna.. Irei dizendo o que souber da
Lais minhota [...].
Afonso leu glacialmente a carta e não respondeu ao noticiador.
— Que sentimento fez em ti essa nova? perguntei eu.
Afonso encolheu os ombros e disse:
— O sentimento da piedade. Não podia ser amor, porque não há infâmia
de alma que desça até aí. Ódio também não, que o ódio quer vingança, e eu
dava-me já por vingado da mulher a resvalar, no plano inclinado, não sei até
que ordem de abismos. Era piedade que eu sentia, e tanta que, se me viessem
dizer que Palmira, dentro de um ano, perdera a formosura, que vendia, e os
bens, que herdara, e se desgraçara até à extremidade de pedir o pão de cada
dia, eu faria do meu pão dois quinhões, e um mandar-lho-ia sem insulto nem
palavra recordadora do passado.
Esta foi a resposta de Afonso de Teive. Eu acreditei, porque tinha visto o
mundo, e não há nada que não acredite.